Capítulo 1
Estamos em uma avenida feita de corações partidos
Mas isso não me assusta agora
Estou vivo como um relâmpago
Mesmo que colidamos como um trovão
Nada ficará em meu caminho
Continuarei lutando
Mesmo que meu mundo caia
Navegando com meus pés longe dos freios
Eu nasci destemido
-Unafraid, Mikaela Coco
O movimento das portas foi suave e inaudível, tão sincronizado com os passos que um passante seria capaz de supor que eram automáticas. O pub, entretanto, não utilizava esse tipo de tecnologia vulnerável. Eram os olhos humanos dos seguranças musculosos e seu julgamento rápido o que decidia se as portas se abririam ou não e, para aqueles dois clientes, não existia uma única porta no mundo que não seria aberta imediatamente nem um segurança ousado o suficiente para barrar sua entrada.
Ethan Fraser, no auge de seus 27 anos e do topo de seus 1,82m de altura, mantinha um olhar sério enquanto caminhava dois passos à frente, abrindo caminho pelo espaço que continha a pista de dança e um pequeno palco ao se encaminhar à área privativa do pub.
Atrás dele, com imponentes 1,90m de altura, Raoni Rehan seguia o melhor amigo parecendo mais relaxado, com uma das mãos no bolso do paletó escuro de boa qualidade feito sob medida e seu olhar baixo analisando o ambiente no segundo em que colocou os pés nele.
Era um hábito do jovem herdeiro observar seu entorno e se certificar de que não havia ameaças. Um hábito raro em seu mundo. Afinal, o que poderia ameaçar os filhos da elite de Londres? Com seus pais comandando as empresas mais lucrativas do país e mais de 60% da economia de todo o Reino Unido, além de boa parte da economia mundial, uma ameaça àqueles jovens ou qualquer um próximo a eles era algo tão raro quanto ouro puro de Ofir.
Ao menos era assim que todos pensavam, com exceção de Raoni. O jovem sabia que ameaças sempre existiam, principalmente em um mundo onde a ganância era tão natural quanto a respiração e os joguinhos perigosos, tão fulcrais e inevitáveis quanto. Nesse âmbito, apenas era necessário tomar mais cuidado para colocar as ameaças em prática.
Normalmente, tais intenções surgiam por meio de jogos políticos, negociações econômicas e relações sociais e, como um Rehan, Raoni cresceu aprendendo que os seus não eram livres de defeitos nem isentos da possibilidade de se tornarem alvos. Eram apenas protegidos demais, poderosos demais para que qualquer tentativa simples e ingênua tivesse êxito. Para conseguir algo daquele mundo, era necessário muita lábia e poder, mas esses elementos frequentemente podiam ser encontrados onde menos se espera.
Subestimar a inteligência alheia é cavar a própria cova, Raoni lembrou-se das palavras de Katiúscia Macêdo, orientando a si mesmo pelo que poderia ser a enésima vez para nunca baixar a guarda. Sua personalidade o incitava a ir além do treinamento já rígido e abrangente que recebia do pai desde criança, prova disso sendo o fato de que seu rosto divinamente esculpido não demonstrara sequer por um segundo o rumo sombrio que seus pensamentos tomaram.
Ethan seguiu naturalmente até uma mesa perto do bar, com o amigo em seu encalço a passos tranquilos. O terno branco de Fraser, sobre uma camisa social preta com dois botões abertos, contrastava com os ternos e camisas escuros à sua volta, inclusive com o preto imaculado vestido por Raoni, e chamou a atenção de Logan MacAskil, sentado em uma banqueta próxima ao balcão do bar.
Graças à movimentação, o jovem loiro levantou os olhos do rosto do homem com quem conversava e sorriu ao distinguir seus dois melhores amigos caminhando em sua direção. Levantou-se da banqueta ao observá-los sentarem a uma mesa privativa próxima e foi até eles.
— Tente se soltar um pouco, Ethan. É desconfortável vê-lo tão sério — Logan ouviu Raoni dizer ao se aproximar da mesa.
— Apesar de não dar para perceber isso pela expressão dele — comentou o jovem MacAskil enquanto apontava para Rehan, solidarizando-se com o estado de espírito de Fraser, que realmente não ficava sério com frequência.
Raoni sorriu, estranhamente satisfeito pelas palavras do amigo confirmarem que sua expressão relaxada não demonstrava nem mesmo uma vírgula de seus pensamentos.
— Se eu fosse inteligente, nem falaria com você essa noite — explicitou Ethan para Raoni, fazendo Logan levantar uma das sobrancelhas, divertido.
— Todo exagero reflete uma carência não saciada — comentou Raoni com ar intelectual. — Você sabe que a culpa não foi minha. Não fui eu quem te pediu para lidar com ela.
— Foi o seu pai, e você é uma extensão dele — rebateu Ethan com uma careta, mas seus olhos pretos continham um ar de desafio à medida que a irritação o abandonava. — Quase podemos contar as horas até que você receba a Herança.
Raoni freou o impulso de revirar os olhos e apenas deu de ombros em uma atitude que dizia que aquilo também não era culpa dele, apesar de ter se preparado a vida toda para o momento em que Herdaria a posição do pai.
Ignorando a reação falsamente tranquila do amigo circunspecto, os lábios finos de Logan formaram um biquinho enquanto ele ponderava o assunto antes de comentar:
— Não dá para dizer que ele está errado.
O primogênito MacAskil achava tão divertido seu papel de comentarista nas discussões entre o exagerado Fraser e o contido Rehan que fizera disso um hábito que já durava anos.
— E você sabe que não gosto de fazer essas tarefas. Aliás, Leif também sabe, mas continua pedindo mesmo assim. — Os lábios estreitos e grossos de Ethan fizeram um movimento de desgosto exagerado, dramático.
Era frequente que ele precisasse exercer alguma tarefa além de sua função como diretor de um dos hotéis Rehan, mas algumas dessas tarefas o faziam sentir sujo, um manipulador que usava os sentimentos das pessoas para benefício próprio. Ou melhor, para benefício dos Herdeiros da Regência.
— A pressão é um privilégio — citou Raoni, controlando-se para não dar de ombros antes de explicar: — Esse é o peso de ser o melhor. — Não era a primeira vez que aquele assunto surgia entre eles. O amigo sabia o motivo exato de ser escolhido tantas vezes pelo patriarca da família Rehan para tarefas como aquela e não precisava de consolo, apenas de tempo para esquecer.
Leif Rehan, 38º duque de Castlewood, Herdeiro Consagrado, patriarca da família Rehan e pai de Raoni, não gostava de perder tempo ou tentar algo duas vezes, por isso escolhia sempre o melhor para cada serviço. Se Ethan tinha tanta aversão a suas tarefas de lidar com pessoas difíceis, talvez devesse repensar seu talento para elas. Ou a demonstração desse talento.
— Esperem. Só para ter certeza de que eu sei do que estão falando... é sobre aquela atriz, a Penelope, não é? — Logan perguntou de repente, fazendo os dois amigos olharem para ele de esguelha antes de tornarem a se encarar. — Conseguiu fechar o contrato de publicidade? — continuou, dirigindo-se a Ethan.
O aceno afirmativo de Rehan foi quase imperceptível.
— Esta tarde — respondeu Fraser. — Então não esperem que eu fique animado esta noite. — Mas a careta que fez em seguida indicava que não estava mais tão zangado, apenas cansado.
— Isso merece uma bebida! — exclamou Logan e deu um tapinha de solidariedade no ombro de Raoni ao se levantar para buscar a bebida no bar, mas suas palavras seguintes foram para Ethan. — Gostando ou não, o que você tem é quase um dom e negócios são negócios.
A bebiba ajudaria a melhorar o humor de Ethan mais rapidamente e Logan estava feliz por ser capaz de proporcionar esse relaxamento aos amigos pagando por elas. Não que os dois não tivessem condições de pagar – afinal, eram todos podres de ricos – nem que Raoni estivesse verdadeiramente incomodado. O mais alto dos três só gostava de implicar com o amigo sentimental e dramático. Aliás, os três gostavam de implicar uns com os outros, trazia certa leveza para os assuntos sérios que ocupavam a maior parte de seu tempo.
— Penelope Stelian já mandou umas vinte mensagens para saber quando será nosso próximo encontro. E mal fazem cinco horas desde que nos despedimos — comentou Ethan, um dedo acusatório apontando para Raoni, que tentava em vão esconder um sorriso.
— Sinto muito — comentou Raoni, sincero. Ele sabia o quanto era penoso aguentar a atenção recebida com alguns serviços. — Mas você pode negar, se te incomoda tanto. Pode negar quando meu pai fizer outro pedido como esse.
Logan se aproximou com copos de uísque para os dois amigos, mas não precisou esperar pela reação acalorada de Fraser:
— Está louco?! Quem consegue dizer não a Leif Rehan?
Raoni soltou uma gargalhada com a explosão já esperada, sabendo que tal poder fazia parte da Herança que receberia em breve, mas foi o olhar sério de Logan, normalmente zombeteiro, que chamou sua atenção.
— Ele está certo, R. Ninguém que não tenha merda no lugar do cérebro se atreveria a negar qualquer coisa ao seu pai — comentou o Herdeiro MacAskil.
Por um instante, Raoni pensou em como tinha planos para aumentar ainda mais tal influência do nome Rehan quando o controle estivesse em suas mãos.
— A única forma de eu me livrar dessas tarefas — começou Ethan com um repentino brilho predatório nos olhos — seria se o próprio Raoni Rehan em pessoa tomasse meu lugar — sugeriu em tom de desafio brincalhão e então deu de ombros. — Só você faria o trabalho melhor que eu.
Raoni podia ter respondido à altura. Teria feito isso se a sugestão viesse de outra pessoa, afinal armas para se defender de qualquer possível insinuação não faltavam no arsenal Rehan, mas tratava-se de Ethan Fraser e a única outra pessoa presente era Logan MacAskil. Ambos eram seus melhores amigos e as únicas pessoas em quem Raoni confiava plenamente no mundo (contando com seus próprios pais). O Herdeiro Rehan sentia que podia demonstrar como verdadeiramente se sentia para aqueles dois, sem medo, então finalmente abandonou a fachada de seriedade relaxada para se expressar com uma careta.
Sua reação provocou a primeira gargalhada de Ethan naquela noite, comprovando que o mau humor já nem estava mais presente.
Se Ethan se sentia incomodado pela atenção que atraía em nome dos Herdeiros da Regência, para Raoni, era o mesmo que dormir em uma cama de agulhas. O Herdeiro Rehan já atraía naturalmente mais atenção do que achava ideal para sua sanidade, só por sua altura e aparência. Se tivesse que fazer o trabalho de relações públicas, se sentiria sufocado, de uma forma que o próprio estado de alerta constante não era capaz de deixá-lo.
Raoni fazia questão de manter apenas a atenção que lhe fosse conveniente.
Após alguns instantes, quando Ethan e Logan finalmente se acalmaram o suficiente para parar de rir, este pegou seu próprio copo e levou até os lábios finos.
— Pelo visto, ninguém vai trocar de cargo essa noite, então vamos beber e esquecer tudo isso. Como sempre — acrescentou baixinho. — Antes que nosso R aqui decida se tornar ainda mais recluso para evitar que essa sugestão se realize.
Os segundos seguintes se transformaram em minutos à medida que os três amigos aproveitavam a companhia uns dos outros e se deliciavam com a ardência do uísque, fingindo que cada passo em suas vidas não carregava o peso da responsabilidade sobre um mundo distinto e seleto criado séculos atrás.
Naquela noite de clima ameno no badalado pub de Londres comandado pelo líder de uma Família Menor dos Herdeiros da Regência, a Tríade Inicial, ou sua próxima geração, estava quase completa. Apenas um detalhe impedia que essa fosse uma verdade absoluta: Ethan Fraser não era um Herdeiro. Descendente direto de Barnett Fraser, um dos fundadores dos Herdeiros da Regência junto com Aiden Rehan e Cayden MacAskil, sim, mas Ethan não era o primogênito de seu pai, Nikolai Fraser, atual Herdeiro Consagrado Fraser, chefe da família e de todos os seus Negócios dentro e fora da Sociedade.
Ethan era o segundo filho e, por isso, tinha uma relação mais distante do pai, que lhe conferia certa liberdade no dia a dia e em suas amizades – já que não precisava usar cada minuto do seu tempo treinando para assumir os Negócios e a posição de Nikolai – e livrava seus ombros da pesada responsabilidade que Raoni e Logan carregavam.
Com talento inato e ceticismo natural, Raoni Rehan fazia a vida de Herdeiro parecer descomplicada e espontânea, mas Logan MacAskil não tinha tanta facilidade, tendo atingido com esforço o patamar em que era considerado apto a assumir a posição do pai.
Mesmo com tantas diferenças, nada disso foi suficiente para impedir que a amizade dos três surgisse e crescesse, movida por seus ideais parecidos, ainda que muitos tivessem comentado durante anos sobre como seria interessante um trio dos Herdeiros da Tríade Inicial ligado por uma amizade tão forte, sutilmente julgando que fosse Ethan a ter amizade com Logan e Raoni, em vez de seu irmão.
O primogênito Fraser, porém, não tinha muito em comum com os outros Herdeiros da Tríade Inicial e a inflexibilidade de Raoni não permitiu que seus esforços – apesar de parcos – tivessem êxito. Com o tempo, à medida que os garotos cresciam e as personalidades se tornavam mais evidentes, as críticas à nova e estranha tríade perdeu forças até morrer na aceitação.
Ethan viu o irmão mais velho chegar antes de seus amigos. O rosto magro de traços fortes emoldurado por mechas loiras – tão diferentes dos fios negros que o próprio Ethan possuía – e falsamente rebeldes que caíam sobre os cantos dos olhos castanhos de formato oriental prendeu os olhos negros do irmão mais novo por tempo suficiente para chamar a atenção de seus amigos e fazê-los olhar na mesma direção.
Aos olhos do irmão mais novo, Quinn Fraser tinha uma presença marcante que poucas coisas ou pessoas conseguiam ofuscar. A atenção de todos no pub se voltou para o Herdeiro por um instante, afastada logo depois pelo olhar arrogante e levemente incomodado do recém-chegado, exceto, claro, a de Raoni e Logan, que não seriam – nem deveriam se prestar a ser – intimidados pelos olhares ácidos de Quinn.
Como Herdeiros eles mesmos, Raoni e Logan ocupavam o mesmo patamar na hierarquia dos Herdeiros da Regência e, consequentemente, em seu reflexo fora dela e tinham incorporado a altivez inerente a suas posições, com o único detalhe de que a família Rehan tinha conseguido, mesmo após mais de dois séculos, manter uma parcela maior de influência, diretamente ligada ao seu controle sobre o Negócio que unia os Herdeiros da Regência e suas famílias. Quem olhasse para Raoni Rehan naquele momento, porém, não seria capaz de perceber tais nuances em seu semblante neutro, apesar de sustentar tranquilamente o olhar sobre Quinn. Já Logan tinha uma sobrancelha levantada enquanto observava o irmão do amigo ocupar uma cadeira bem no centro do salão, com seus próprios amigos cercando-o como se fossem mais guarda-costas que amigos.
Logan demonstrava com aquela única sobrancelha arqueada a pergunta que passou pela cabeça de Raoni no instante em que reconheceu o jovem loiro: o que teria levado Quinn Fraser até um pub como aquele em uma noite como aquela?
Apesar de pertencerem ao mesmo grupo de ricos e poderosos que se unia voluntariamente em negócios lucrativos e projetos beneficentes e à Alta Sociedade criada pelas relações sociais desse grupo, os interesses que o trio de amigos e Quinn Fraser tinham em comum poderiam ser contados nos dedos de uma única mão e ainda sobrariam dedos, e isso incluía os locais frequentados por eles.
À medida que a noite prosseguiu, porém, e ninguém da mesa privativa fez menção sequer de cumprimentar o grupo recém-chegado com algo mais que um aceno de cabeça, o questionamento foi devidamente esquecido, relegado a um canto escuro do cérebro de Raoni para ser revisto e analisado mais tarde, como fazia com todo novo traço de comportamento que percebia em qualquer conhecido. Era mais um hábito cultivado por anos em segredo.
Quinn, por sua vez, não compartilhou da regalia de relaxar facilmente. Seus nervos afloraram no momento em que avistou o irmão mais novo acompanhado dos outros dois Herdeiros da Tríade Inicial. Não porque fosse algo incomum, mas porque os amigos de seu irmão eram causa constante de sua própria dor de cabeça, ao menos recentemente.
Logan e Raoni sempre tinham sido Herdeiros de suas Famílias, é claro, e tanto Quinn quanto seu pai tiveram que aceitar o fato de que o Herdeiro Rehan era tão inflexível em suas vontades que não quis se aproximar de Quinn a níveis pessoais para criar uma amizade. Como todo o Reino Unido bem sabia, ninguém controlava Raoni Rehan, nem mesmo o rígido duque, Leif Rehan. Então não eram as amizades de seu irmão que lhe causavam problemas, nem mesmo as atitudes deles, mas sim os acontecimentos ao redor deles e suas consequências.
Nikolai Fraser se preocupava com poder e influência ainda mais do que se preocupava com a própria saúde e, nas últimas semanas, vinha infernizando a vida de Quinn sobre a influência que Raoni ganharia – além da que o jovem circunspecto já possuía – ao assumir o lugar do pai ainda naquele ano, antes mesmo de receber o título centenário de duque. Quinn era lembrado diariamente que não haveria chance de se comparar a Raoni no momento em que isso acontecesse, mesmo que, sendo um ano mais velho, Quinn já devesse ter conquistado sua fatia do bolo, uma fatia tão forte a ponto de se igualar a qualquer outro da tríade.
A seguir, no ano subsequente, como se não bastasse que Raoni recebesse a Herança, Logan MacAskil seguiria pelo mesmo caminho, Herdando tudo o que o pai comandava, deixando Quinn como único Herdeiro da Tríade Inicial a não receber sua Herança por mais dois anos ainda. Deixado para trás, relegado, sem poder ou importância diante dos novos Consagrados.
Não havia nada que Quinn pudesse fazer, porém. A regra dos Herdeiros da Regência que impunha a Sucessão dos Negócios assim que o Consagrado completasse 50 anos fora elaborada décadas antes, por Brooke Rehan, quando esta percebeu que seu pai não tinha sido o único duque a cair doente pouco depois dessa idade nem o primeiro membro da Sociedade a perecer antes de completar o 60º aniversário. Brooke se certificara de tornar praticamente impossível que a regra fosse desconsiderada ou deixasse de existir, obrigando todos os próximos líderes de Famílias a passar o controle de seus negócios para seu sucessor no mesmo ano em que completassem 50 anos, em uma Cerimônia de Sucessão sofisticada e grandiosa.
Quinn não tinha culpa por Leif Rehan já ter completado a idade indicada, sendo obrigado pela lei da Sociedade a marcar a data da cerimônia em que se aposentaria oficialmente em nome de seu filho, anos antes do próprio Nikolai Fraser; assim como não tinha culpa por Leif não ter tido pressa para gerar um herdeiro, o que fez com que Quinn, primogênito Fraser, fosse um ano mais velho que Raoni, assim como Logan.
Além disso, nenhuma força conhecida por Quinn era capaz de impedir a Cerimônia de Sucessão de Raoni ainda naquele ano ou a de Logan no ano seguinte, o que, para Quinn, indicava que não havia motivo algum para seu pai ficar tão transtornado com o assunto, afinal, a lei era essa há décadas e nada poderia ser feito. Sem contar que, quanto ao poder e à influência superiores dos Rehan com relação aos Fraser, a supremacia secular não podia ser anulada, a menos que algo grandioso – e iníquo – fosse feito.
O jovem Herdeiro, porém, obrigou-se a deixar aquele assunto de lado. Tinha ido até ali, um pub que raramente frequentava, exatamente para impedir que as palavras de seu pai continuassem atormentando-o por mais tempo ininterruptamente. Já bastavam as horas de discussão ao longo do dia.
O pub estava razoavelmente cheio agora e outros clientes continuavam entrando. Apesar de Quinn e seus amigos normalmente escolherem não passar seu tempo ali, o local era um dos preferidos dos Herdeiros da Regência. Era fácil reconhecer rostos de várias idades espalhados pelas mesas e pela pista diante do palco.
Por atrair aqueles indivíduos, porém, o lugar tinha se tornado conhecido fora de seu mundo também e muitos eram os rostos desconhecidos para Quinn, mas este tinha certeza de que os seguranças permitiam apenas a entrada de clientes assíduos ou figuras conhecidas, ficando de olho em qualquer cliente novo.
Por isso o indivíduo que entrou com olhar duro não causou agitação. O homem já tinha estado ali antes e foi reconhecido pelos seguranças e pelo barman, seu cabelo revolto e os olhos acusadores não incitando qualquer alarme.
Dirigindo-se ao balcão, o recém-chegado abriu caminho até estar cara a cara com o barman, mas, quando falou, sua voz soou alta o suficiente para chegar até Raoni, sem qualquer traço da sutileza esperada no local:
— Onde está o vendedor?
— O que disse? — perguntou o barman em um fio de voz, parando o que estava fazendo e voltando-se para o recém-chegado, parecendo genuinamente confuso pela pergunta estranha.
— O vendedor de drogas, onde ele está?
O funcionário piscou. O gesto pareceu absolutamente natural, mas Raoni, cuja atenção já tinha sido desviada para o balcão pelo tom usado pelo recém-chegado, franziu levemente o cenho antes de voltar a ficar sério, seus olhos observando a cena cuidadosamente enquanto o barman se recompunha.
— Não sei do que está falando, senhor. Se quiser uma bebida, eu posso...
— Eu não quero a porcaria de uma bebida! — vociferou o recém-chegado e conseguiu afastar alguns dos clientes mais próximos quando deu um soco no balcão. — Quero o traficante de drogas que trabalha aqui!
— Senhor, por favor, acalme-se. Aqui não tem nenhum...
— Não me venha com essa! — Enquanto o barman tentava, em vão, controlar o cliente histérico, Raoni se moveu minimamente na cadeira, seus olhos passeando pelo ambiente em busca de rotas de fuga antes de se voltarem para o balcão outra vez. — Eu sei que vendem drogas aqui — continuou o recém-chegado e, ao perceber o olhar calculadamente perdido do funcionário, prosseguiu: — Como eu sei? Meu irmão vem frequentando este lugar há meses e está cada vez mais viciado. Eu tentei ajudar, levá-lo para uma clínica de reabilitação, mas ele conseguiu entrar em contato com seu traficante mesmo assim. O mesmo traficante que trabalha aqui e que o levou para esse caminho! Agora meu irmão está internado à beira da morte por causa de uma overdose de seja lá o que for que ele comprava aqui e que teve tanto medo de ficar sem que quase se matou!
Muitos clientes do pub demonstraram ultraje, outros, surpresa, alguns até se solidarizaram com o homem desesperado diante deles. Raoni não esboçou reação. Mais do que com a história triste de um viciado, ele estava preocupado com o que poderia acontecer a seguir. Não estava disposto a apostar sua segurança na consciencia de um homem revoltado e magoado.
Não era covardia ou arrogância, era sobrevivência.
As drogas traziam consequências, era por isso que tinham se tornado ilegais apesar de permanecerem lucrativas, e havia um ponto em que era necessário trocar a arrogância do dinheiro pelo instinto de autopreservação de quem conhece as consequências dos próprios atos.
Um vendedor de rua, um traficante de pubs e boates, nunca poderia ser rastreado até ele, mas seria preciso esperar até que os ânimos se acalmassem para fazer valer a perfeição da hierarquia dos Herdeiros da Regência.
— Eu sinto muito pelo seu irmão, senhor, mas este pub não tem relação com drogas — o barman tentou falar outra vez.
— Suas mentiras não me interessam! — O homem sacou um revolver que ninguém tinha percebido que estava lá e apontou para o funcionário enquanto seu rosto se retorcia de raiva e seus olhos adquiriam um brilho feroz. — Eu sei o que aconteceu com meu irmão e sei onde tudo começou. Se não me entregar o traficante agora, vou fazê-los sentir o que eu senti.
O barman demorou a responder, seu corpo parecia congelado. Se estava ponderando o que deveria fazer ou simplesmente petrificado de medo, não dava para saber; o fato foi que a demora enfureceu ainda mais o homem armado. Seu braço fez um arco para trás e seus olhos se fecharam com força. O primeiro tiro saiu a esmo, assim como os seguintes, com a mão armada balançando de um lado para o outro, disparando sem mirar.
Seguranças, do pub e pessoais, aproximaram-se com bravura e tentaram conter o atirador, que apenas se revoltou ainda mais, aumentando o ângulo em que seu braço se movia.
— Corram! — ordenou Raoni para seus amigos e não perdeu tempo, indo em direção a uma das paredes, por onde era possível chegar à área dos banheiros.
Rehan se espremeu em um canto da parede, o corpo abaixado em uma tentativa de se proteger, e respirou fundo ao se certificar de que Ethan e Logan estavam ao seu lado.
— Senhor Rehan! — ouviu uma voz sussurrada chamar. — Venha por aqui.
Raoni olhou em volta, procurando a fonte da voz, e encontrou um de seus próprios seguranças meio escondido atrás de uma parede, quase tão absurdamente calmo que ajudou a controlar seus próprios pensamentos agitados.
— A situação está calma lá fora, senhor. Tem uma saída por aqui, venha.
Lembrando-se que seus seguranças eram treinados para conhecer todas as entradas e saídas de qualquer lugar a que ele fosse, Raoni se moveu, ainda abaixado, e seguiu o segurança para fora do pub pela porta de serviço.
Os tiros ainda podiam ser ouvidos, mas o segurança guiou seus protegidos para longe com calma e olhos atentos.
— Entre no carro, senhor Rehan — pediu Greene, o segurança, ao mesmo tempo em que um carro da polícia se aproximava com a sirene ligada e cantando pneu ao frear bruscamente. Alguém tinha chamado a polícia antes mesmo que os tiros começassem, pensou Raoni.
Antes que ele pudesse fazer o que o segurança pediu, entretanto, uma policial desceu da viatura e se dirigiu a eles:
— Com licença, senhores, conseguem me informar a situação atual no pub? — A mulher olhou para o segurança com ar sério e franziu o cenho enquanto aguardava pela resposta.
— Houve uma discussão e, em seguida, disparos — respondeu Greene rapidamente, ainda tentando fazer os jovens entrarem no carro que os aguardava.
— E o senhor só tirou esses dois de lá? — O tom de voz da policial era afiado, mas não foi isso que chamou a atenção de Raoni.
Esses dois...
O Herdeiro olhou para trás, encontrando apenas Ethan, que acompanhou seu olhar com uma expressão de espanto. Onde estava Logan?
Raoni não ouviu a resposta do segurança, nem mesmo se importou se ele respondera ou não. Seus ouvidos começaram a zumbir, todo o barulho à sua volta parecendo insignificante diante da preocupação crescente pelo amigo que ainda estava dentro do pub.
Com a recusa do patrão a entrar no carro, Greene se juntou ao motorista e aos policiais para controlar a situação e encaminhar os feridos até a ambulância que chegou pouco depois. Nem Raoni nem Ethan perceberam a passagem do tempo enquanto viam cada cliente deixar o pub, alguns gravemente feridos, outros com ferimentos leves, mas felizmente a maioria apenas nervosos.
Todos, exceto Logan MacAskil.
Raoni esperou, os olhos fixos nas portas do pub enquanto Ethan vasculhava a rua à sua volta à procura do amigo. Era improvável que não o tivessem visto passar, mas ainda possível. Então os dois perceberam que ninguém mais saía do estabelecimento e os policiais levavam coisas para dentro do pub agora que o atirador já estava devidamente algemado dentro da viatura.
Raoni se moveu em um rompante, aproximando-se da policial com determinação ferrenha.
— Ainda falta uma pessoa. Onde está Logan MacAskil?
Os olhos da policial encontraram os dele com um misto de pesar e resignação.
— O senhor o conhecia? — perguntou ela e viu os olhos castanhos mudarem.
Ela teria engolido em seco pela beleza diante de si se não fosse a situação em que se encontravam, mas foi inevitável admirar a transformação daqueles olhos exóticos enquanto o homem percebia exatamente o que as palavras dela significavam.
A determinação firme se transformou em choque por um instante tão efêmero que a mulher não teria percebido se sequer piscasse, para logo depois dar lugar a uma tristeza profunda antes de se apagar em uma expressão neutra que só os melhores atores conseguiam atingir.
— Tem certeza? — foi a pergunta simples dele.
— Sinto muito, senhor.
Raoni assentiu, indicando que compreendia, e se afastou. Ouviu vagamente quando a detetive pediu que se mantivesse acessível para um interrogatório futuro e percebeu que Greene trocava algumas palavras rápidas com ela. Nada daquilo importava para ele naquele momento.
Logan MacAskil estava morto. Raoni teria que contar a Ethan, é claro, e faria o melhor para consolar o amigo, além de ter que lidar com as consequências disso para seu mundo. Acima de tudo, porém, ele tinha acabado de perder um amigo próximo.
Percebendo que não seria capaz de controlar as lágrimas silenciosas que já lhe inundavam os olhos, entrou no carro para escondê-las dos curiosos que o observavam mesmo em um momento como aquele e, assim que Ethan ocupou o lugar ao seu lado, ordenou que o motorista partisse.
(4827 palavras)
Conheçam Raoni Rehan
Olá, pessoal!
O que estão achando até aqui? Comentem aqui para eu saber o que acharam. Aceito críticas (construtivas), sugestões, perguntas, elogios, surtos, tudo.
A partir do próximo capítulo, vou estipular uma meta para que eu possa publicar mais dessa obra, então conto com a colaboração de vocês pra conseguir atingir a meta e e trazer cada vez mais capítulos pra vocês.
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