38 - Testimony
Depoimento.
HARRY
Eu já estava há uns trinta minutos na sala de espera do hospital. Queria dar o máximo de privacidade e conforto possível para Olivia e sua família, mas ir embora não era uma opção. Eu queria estar aqui, perto dela, mesmo que seja em outro cômodo. David tinha chegado e se juntado a elas há uns dez minutos atrás, ele me avisou para esperar pois iriamos pegar o depoimento de tudo o que ocorreu com a Olivia ainda hoje, mas antes precisava de um tempo a sós com sua família. O que era compreensivo. E se devo ser honesto, me dava até um pouco de inveja, eles eram uma família tão amorosa e cuidadosa, enquanto o meu pai era quase o oposto disso.
Ele se importava comigo, dava para ler isso nas entrelinhas de tudo o que ele fazia por mim. No entanto, esse tudo era sempre distorcido, possessivo e indesejado. Era impossível não pensar que na maioria das vezes ele me via como um boneco, um fantoche que ele pode controlar e impor suas vontades. Quando eu faço algo ruim, ele reclama, quando eu faço algo bom, nunca é bom o suficiente. E quando eu desobedeço... coisas ruins acontecem. Meu amor por ele era algo inegável, ele me tornou o que eu sou hoje, porém, meu medo também era.
– O que está acontecendo? Por que está aqui fora? – Andrew perguntou, se sentando ao meu lado.
– Estou dando a eles um momento em família. Olivia foi e encontrada e está bem, eles merecem um pouco de privacidade.
– Você tem razão.
– Tenho? – Virei a cabeça para olha-lo.
– Sim. Privacidade é importante. – Reafirmou.
– Então por que eu não posso tê-la? – Ele franziu a testa. – Ela me contou das ligações e mensagens ignoradas. Por que você não me avisou quando eu explicitamente te perguntei se alguém havia me contatado?
– Aqui não é o melhor lugar para falarmos sobre isso.
– Vai ter que ser aqui. Olivia está bem, Liam está morto. Assim que pegarmos o depoimento da Olivia e fecharmos esse caso, acabou para mim.
– Como assim "acabou"?
– Acabou. Eu não quero mais conviver com você. Nem no trabalho, nem na minha vida. Você ainda é meu pai, podemos nos reunir nos feriados e comemorações, mas fora isso. Não dá mais. Eu não aguento mais.
– Você está fazendo isso por causa dela?
– Não! Por sua causa. Você está sempre tentando me controlar.
– Eu só quero o melhor para você, filho.
– No fundo, eu sei. Mas eu tenho vinte e três anos, acho que posso fazer minhas próprias escolhas sozinho.
– Tudo bem. Depois só não diga que eu não avisei.
Típico dele. Agir como se soubesse tudo. Porém, não houve tempo para eu lhe responder, pois a porta do quarto se abriu e David nos chamou para entrar. Era a hora de sabermos o que houve. Liguei o gravador e o coloquei no móvel ao lado da cama de Olivia.
– Eu não estava mentalmente bem. Tinha acabado de ver o meu pai biológico, e precisava de um escape. Decidi beber um pouco, Luke me deu uma bebida que disse ter pegado com Liam, e eu comecei a passar mal. Ele chamou a Taylor e fomos para o banheiro, depois de um tempo ela saiu e não voltou mais. Pedi a ajuda de Niall para acha-la e ele me contou sobre a saída pela parede. Assim que saímos, ele foi atacado e uma pessoa mascarada, que eu logo descobriria que era Liam, me levou até um córrego. Taylor estava lá, desacordada, e ele falou que a mataria se eu não fizesse tudo o que ele mandasse, então eu fiz. Coloquei as algemas e ele me colocou na mala do seu carro.
Taylor, abraçou Olivia de repente. Ela tinha lágrimas nos olhos e falava algo que eu não conseguia distinguir bem o que era.
– Está tudo bem agora. Não foi sua culpa. – Olivia a confortou.
– Vamos deixar que ela termine o depoimento. – David falou, cuidadosamente puxando Taylor de volta para o seu lugar.
– Ele me levou para uma cabana. Eu fiquei algemada na cama todo o tempo. Em algum momento ele me apagou com clorofórmio, mas eu consegui ver ele falando no telefone com alguém. Dizendo que estava ficando sem tempo, ou algo assim.
– Como você conseguiu ligar para a polícia? – David perguntou.
– Ele pensava que eu estava dormindo e deixou o celular em cima da cama. Eu conseguir trazer até minhas mãos com os pés e liguei.
– Você foi incrível, filha. Graças a você a polícia conseguiu rastrear a ligação e te achar. – Susan falou, claramente orgulhosa da filha. – Finalmente esse pesadelo acabou e Enigma está morto.
– É aí que tá... eu não acho que ele esteja.
– Como assim? – Perguntei.
– Antes dele deixar o celular na cama ele estava em uma chamada com alguém, perguntando quando essa pessoa apareceria e o que ele deveria fazer. Eu não acho que ele seja o Enigma, apenas um ajudante, ou parceiro.
– Mas essa ligação pode ter significado qualquer coisa. Pode nem ter haver com isso, pode ter sido algum familiar ou amigo. – Andrew comentou. – Isso não é prova o suficiente.
– Tem outra coisa... – Olivia começou, de repente ficando completamente desconfortável. – Em todos os casos, todas as outras garotas que morreram, ele nunca fez nada além de mata-las, certo?
– Sim, esse é o perfil dele. Nunca há nada além das facadas na barriga. – David concordou. E eu temi o rumo que isso estava levando.
– Liam... ele... – Ela não conseguia terminar. Ou sequer olhar para mim. Lagrimas se formaram em seus olhos.
– Ele tocou em você? – Perguntei. Esperando, ou melhor, implorando aos céus que a resposta fosse não. Pois se fosse sim, eu teria que trazer Liam de volta a vida apenas para mata-lo novamente. De uma forma mais lenta e cruel dessa vez. – Ele violentou você, Olivia?
Senti uma mão no meu ombro e olhei pro lado. Era Andrew. Ele não precisou dizer nada, apenas com o seu olhar eu pude perceber que estava me deixando levar pelas minhas emoções e me alterando. Respirei fundo, tentando me acalmar, e voltei a olhar para Olivia bem quando obtive uma resposta.
– Ele tentou. Passou as mãos pelas minhas pernas e quase... tirou minha calcinha. Mas eu o acusei de não ser o Enigma e ele me deu um tapa. Foi quando ele notou que seu celular tinha sumido e tentou me levar para outro lugar, mas vocês chegaram. – Ela enxugou as lágrimas que escorriam pelo seu rosto. – Eu realmente não acho que isso acabou, não completamente pelo menos.
Ela não havia se machucado. Respirei um pouco aliviado. O filho da puta ainda tinha tocado nela, e só esse pensamento me enchia de raiva. Porém, o pior não havia acontecido, ele não havia deixado um trauma ainda maior nela, um trauma do qual muitas garotas não conseguiam superar. Olivia finalmente olhou para mim, e eu sorri levemente. Precisava mostrar que estava tudo bem, que eu estava aqui se ela precisasse. Toda a raiva e negatividade que eu ainda sentia não tinha lugar aqui.
– Acho que foi o suficiente, certo? – Susan perguntou, abraçando a filha. – Ela precisa descansar.
– Claro. – Andrew concordou. – Se lembrar de algo mais, é só nos chamar.
– O que acha do que a Olivia disse? – Perguntei quando já estávamos do lado de fora do hospital.
– Não sei. Pode ser verdade, ou ela pode ter entendido errado, imaginado.
– Sim. Mas Liam possui álibis para algumas das mortes, então talvez outra pessoa tenha o ajudado.
– Sim. Vale investigar um pouco mais, antes de fecharmos o caso. – Atravessamos a rua e paramos em frente ao carro dele. – Quer uma carona?
– Não, eu vou de táxi mesmo.
– Boa noite, filho.
– Boa noite.
O observei entrar no carro e dar partida, então caminhei até o ponto de táxi logo ao lado. Cheguei no apartamento em uns cinco minutos, já que ficava ali perto. Não havia mais viaturas estacionadas em frente ao prédio, ou policiais guardando o lugar. O que era um alívio. Entrei no apartamento e me deparei com Shawn no sofá.
– Ela está bem?
– Aparentemente sim. Mas os médicos fizeram alguns exames por segurança. O resultado ainda vai sair.
– Que bom. – Ele sorriu e apontou para a mesinha de centro onde havia uma sacola do restaurante japonês da cidade. – Eu comprei sushi, está com fome?
– Bastante!
Me juntei a ele no sofá, e ele abriu a sacola, me entregando um hashi.
– O caso vai ser fechado?
– Ainda não sei. Olivia acha que Liam tinha um ajudante, por isso temos que investigar mais.
– E o que você acha?
Boa pergunta. O que eu achava de toda essa situação. A única coisa que eu consegui pensar nas últimas horas foi em Olivia e apenas ela. Não tive tempo de assimilar ou analisar nada.
– O perfil que eu tinha do Enigma era que ele era um homem por volta dos seus trinta e cinco aos quarenta anos, frio e calculista. Um completo psicopata. Liam não aparenta ser isso. Se realmente há outra pessoa nessa jogada, acho que seria um ajudante de Liam, mas sim, o contrário.
– Faz sentido. – Concordou, inclinando a cabeça para trás e enfiando um pequeno temaki inteiro na boca.
– Você vai ficar para me ajudar? – Questionei, lembrando que ele tinha vindo para Londville como um favor para mim e não tinha intenção de ficar por muito tempo.
– Vou ver com o chefe, como esse caso está quase no final, talvez ele me coloque de volta no que eu estava em Nova York.
– Espero que fique. Está sendo bom rever você, amigo. – Sorri, pegando um maki de salmão com o hashi e o levando a boca.
– Igualmente. – Ele devolveu o sorriso.
No quarto, depois de ficar horas conversando com Shawn na sala. Tomei um banho e me sentei na cama para rever mais uma vez os arquivos naquela pasta. Minha possível mãe biológica, Anna Jolie que se tornou Anna Styles. Ela era linda. E assim como todas as outras vítimas, parecida com Olivia... ou Olivia e as vítimas eram parecidas com ela. Se Anna foi realmente a primeira, ou uma das primeiras vitimas do Enigma, isso colocaria ele em uma faixa etária dos quarenta e poucos anos. Mais ou menos como eu havia pensando. Fazia sentido, mas como? E por que?
Talvez o meu pai, Daniel Styles, pudesse me responder essas e mais perguntas. O arquivo informava que ele havia sido condenado e estava preso em uma prisão em Cheshire, na Inglaterra. No entanto, esse arquivo aparentava já ter alguns anos e essa informação talvez tenha mudado. Por isso, liguei para Noah, um colega de trabalho em Nova York, e pedi que ele procurasse por tais informações para mim. Eu precisava descobrir onde ele estava e lhe fazer uma visita. Tentar descobrir algo sobre esse meu passado que estranhamente poderia estar ligado a todas essas mortes e o Enigma.
No dia seguinte de manhã, fui para o hospital, mas ao invés de ir até a ala onde ficavam os quartos, passei no necrotério a pedido do legista, John, nenhum parente havia se apresentado para assinar os papeis da liberação do corpo de Liam, por isso John havia ligado para a Universidade e perguntado quem eram as pessoas que ele mais convivia, ainda assim, foi uma surpresa quando eu encontrei com Louis lá.
– Harry. – Ele me cumprimentou quando virou para o lado e me viu. Ele estava de frente para a mesa onde o corpo de Liam estava deitado.
– Oi. Eles te ligaram? – Ele assentiu. – Você não precisava vir. Não acho que o fará bem.
– Não. Eu precisava sim. Ele foi meu amigo por seis meses, e durante todo esse tempo escondia quem ele realmente era. Um assassino que tentou matar a Olivia! Eu precisava vir e ver ele morto. – Sua raiva era clara.
– Nenhum familiar se apresentou. Você o conhece a mais tempo do que eu, já viu ele com algum parente?
– Não. Nunca o vi com ninguém. Mas ele falava bastante no telefone com o pai dele. Eu perguntei uma vez e ele me disse que o pai morava em outro estado com uma nova família. E ele tinha vindo para Londville para ficar com uns parentes por parte da mãe. Mas não sei mais do que isso.
– Isso já ajuda bastante. – Garanti.
O celular de Liam seria levado para um especialista para conseguirmos recuperar o máximo de coisas possíveis do aparelho quebrado. Talvez o numero do pai esteja gravado lá, ou pelo menos as ligações mais recentes. Assim teríamos uma pista de quem era nas ligações que Olivia havia testemunhado.
– Que bom. Eu tenho que ir agora.
– Você vai visitar a Olivia?
– Na verdade eu acabei de sair de lá, passei a noite com ela. Susan estava exausta, e se recusava a dormir durante o tempo que Liv estava desaparecida, então meu pai praticamente a obrigou a ir para casa descansar ontem à noite. Eu estou indo agora, e Taylor ficou para passar a manhã. Porque? Surgiu algo novo ou tem mais alguma pergunta sobre o caso?
– Na verdade, não, eu só queria saber como ela está indo. Se está bem.
Louis e eu havíamos conversado e ele havia entendido o meu lado. O porquê de eu ter mentido, não voltamos a ser amigos como antes, mas estávamos bem com isso. Eu não tinha nenhuma intenção de revelar meus sentimentos para ele, não antes de revela-los para Olivia, e em seguida seus pais.
– Ah, sim. Tudo bem então, até mais. – Fizemos um breve aperto de mão e ele saiu.
Olhei para o cadáver de Liam. Estava extremamente pálido, em um tom cinza, e limpo. Ao contrario da ultima vez que eu o vi, coberto de sangue e com um horrível buraco de bala na testa.
– Bom dia. – O legista passou pela porta. – Desculpa, tive que atender uma ligação. Você deve ser Harry. Para onde Louis foi?
– Embora. Não acho que ele esteja disposto a ajudar.
– Você está?
– Também não.
Ele suspirou, um pouco frustrado.
– Bem, não conseguimos localizar nenhum familiar e precisamos de alguém para nos dizer o que fazer com o corpo. Saber se terá um enterro...
– Não. – O interrompi. – Pode cremar.
– Certeza?
– Absoluta. Ele não merece um enterro.
– Você assinará os papeis, então? – Pensei um pouco sobre e em seguida assenti. Ele me entregou uma prancheta onde estavam os papeis da liberação do corpo. – Pronto. O corpo será levado para o crematório e você poderá pegar as cinzas hoje a noite.
– Tudo bem. – Meu celular começou a tocar, olhei para a tela, vendo o nome de Noah e me despedi do legista, deixando o necrotério. – Então, conseguiu o que eu pedi?
– Infelizmente não, o que você tem é tudo o que temos. A maioria dos arquivos internacionais foram perdidos em um incêndio há oito meses sem serem digitalizados.
– Não há outro jeito? Qualquer jeito?
– Bom... você pode ir para o país de origem e recorrer aos policiais que investigaram o caso na época.
– Ir para a Inglaterra? Você endoidou?
– Você que pediu por qualquer outro jeito. Não coloque a culpa em mim, eu fiz minha parte. – Se defendeu.
– Claro, claro. Obrigado por tudo, Noah.
– Disponha. Tchau.
Desliguei o celular e encarei a porta do quarto em que Olivia estava ficando, subitamente percebendo que eu tinha muito o que pensar e decidir.
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