Capítulo 24.1
Carta.
Ninguém conseguiu dormir aquela noite. Todos viraram o dia acordados e alertas.
O diagnóstico do painel saiu, e descobrimos que ele não havia sido hackeado, o invasor apenas usou a digital de Jonas para conseguir abrir a porta. E pelo ângulo estranho e invertido em que a impressão digital ficou na tela, o invasor fez isso quando o Jonas já estava morto, ou no mínimo, morrendo no chão.
Havia tanto sangue no corredor, que foi preciso chamar um analista de respingos de sangue de Westville para determinar o que exatamente havia acontecido. O primeiro golpe foi direto na garganta, espirrando sangue para todos os lados na parede, então, vieram os famosos golpes na barriga, que ajudaram a formar a poça de sangue que ficou em volta do corpo... assim como parte dos intestinos que caíram para fora. Doentio.
Enquanto sobre a Rosa, ainda não tínhamos uma causa de morte, será preciso uma autópsia e até mesmo um teste toxicológico para determinar o que exatamente aconteceu no quarto. Não havia um arranhão sequer em seu corpo, e isso era estranho demais.
Já havia amanhecido. O meu pai havia deixado o apartamento bem cedo para ir até o aeroporto buscar Andrew, o aeroporto SBY ficava um pouco longe, eram mais ou menos duas horas de viagem de carro para ir e voltar de lá. Agora, os dois, junto com Harry, estavam discutindo como e de que horas aconteceria a transferência para o esconderijo federal oficial. Carros fortes, camburão, e até mesmo um helicóptero estava sendo jogado na conversa, tudo para manter a minha segurança.
Taylor e eu estávamos sentadas no sofá com as nossas malas, apenas esperando que a acalorada conversa terminasse. Taylor, obviamente, queria apenar ir para o novo esconderijo, enquanto eu... tinha outros planos.
— Um helicóptero, então. É mais seguro. — Andrew concluiu.
— E nada discreto. — Harry acrescentou, como se discordasse.
Os três voltaram a conversar, e dois minuto depois, chegaram a outra conclusão.
— Um carro blindado. — Disse David. — É seguro e discreto o suficiente para sairmos daqui.
Andrew e Harry assentiram, concordando. Os três viraram na direção do sofá, prontos para darem suas ordens, quando eu levantei a minha mão.
— Eu tenho algo a falar.
— O que foi? Algo está doendo? — Meu pai se preocupou, olhando para o meu pescoço.
Minha pele era bem sensível para machucados, e do jeito que eu fui estrangulada então, tudo ficou mil vezes pior. Todo o meu pescoço estava roxo, e eu usava um cachecol para tentar disfarçar isso.
— Não. Eu estou bem. Eu só.... não quero ir. — Revelei, ganhando expressões confusas e preocupadas logo de cara.
— Como é que é? — Andrew soltou.
— Sinto muito, mas você não tem que querer em uma situação como essa, filha. — Meu pai foi mais controlador.
— Por que não? — Harry perguntou, realmente confuso e querendo me entender.
— Eu virei o dia pensando sobre isso, sequer consegui dormir ou tirar isso da minha cabeça, mas... vocês já se perguntaram por que esse ataque aconteceu?
— Onde você quer chegar, Olivia? — David perguntou, um pouco impaciente. Eu já havia aprontado tanto que era até compreensível ele não querer me escutar.
— Por que o Enigma arriscaria tanto em vir até aqui assim do nada? Com um agente na porta, policiais disfarçados no perímetro, um painel com impressão digital, entre várias outras coisas que poderiam ter estragado tudo. — Comecei falando. — Ele nunca fez isso antes, nunca foi tão descuidado, sempre foi meticuloso.
— Está sugerindo que não foi ele, então? — Andrew cerrou os olhos, tentando compreender o meu ponto.
— Não. Estou dizendo que ele está sem tempo. O ataque foi ontem à noite, estamos no sábado de manhã, e na terça-feira agora é o meu aniversário de dezoito anos. É fato que ele só vai atrás de garotas com a minha exata aparência, mas elas também sempre possuem a mesma idade, dezessete anos. Se eu completar dezoito, eu não vou mais estar dentro desse padrão...
— E por isso ele arriscou tudo ontem. Pois ele sabe disso. — Harry completou minha linha de pensamento, com um olhar levemente impressionado. — Você pode estar certa.
— Mas e o Jonas? — Meu pai estranhou. — Ele definitivamente não é o padrão e ainda está morto.
— Enigma já matou outras pessoas, em sua maioria homens, em algumas outras cidades, chamamos isso de "casualidades" nos registros, pois não é o foco principal dele. — Andrew falou. — Ele mata essas pessoas, mas apenas para tira-las do seu caminho e assim, conseguir matar quem ele realmente quer. Suas vítimas de verdade são sempre as mesmas, e nos últimos três anos ele nunca matou nenhuma jovem loira com menos ou mais de dezessete anos. Ele nunca foge do padrão.
— Então, tecnicamente... se conseguirmos deixar a Olivia segura até ela completar os dezoito anos... acabou? — Meu pai perguntou, esperançoso.
— É provável. — Harry concordou. — O que acha, pai?
— Acho que é um tiro no escuro. Mas definitivamente é algo que deve ser tentado. Bem pensado, Olivia. — Ele parabenizou, e eu assenti, aliviada por eles terem concordado comigo.
— Mas isso não explica o porquê de você não querer ir. — Meu pai retornou àquele ponto.
— O Enigma já atacou esse apartamento, mas foi em um evento único. O agente Chase estava em Nova York, Harry estava longe, Rosa... faleceu, entre vários outros fatores. No final do dia... ele apenas teve sorte. Se nós formos para outro local, ele pode ter essa sorte novamente. Já se ficássemos aqui... — Deixei a frase no ar.
— Acho que o que a minha irmã está dizendo é... qual a chance de um raio cair duas vezes no mesmo lugar? — Taylor me apoiou.
— Eu ainda não estou convencido. — Meu pai balançou a cabeça.
— É, mas eu acho que elas podem ter um ponto, Xerife Thornhill. — Andrew falou. — Pense comigo, ele conseguiu entrar nesse prédio apesar de haver vários policiais disfarçados do lado de fora, cortou a garganta do agente Jonas, que é um ex-soldado militar altamente treinado, como se não fosse nada... apenas para entrar e se amedrontar quando a Taylor, uma garota de setenta quilos...
— Sessenta e cinco. — Taylor o corrigiu rapidamente.
Andrew olhou para ela por dois segundos, e decidindo ignorá-la, continuou o que estava dizendo.
— ... Apenas para se amedrontar por causa de uma garota sem treinamento algum?
— Isso é realmente estranho. — David concordou. — Mas não significa que a gente não precise tirar elas daqui.
— Mas... e se tirá-las daqui for a real intenção dele? — Harry o interrompeu. — E se tudo isso não passar de um plano maior dele para que facilitássemos ainda mais o seu caminho? Afinal, como Andrew disse, ele poderia ter feito o mesmo que fez com Jonas com a Taylor e com a Olivia, mas ele não fez. Ele nem tentou, apenas a estrangulou em uma possível tentativa de apagá-la e levá-la para o verdadeiro local onde ele mata suas vítimas, que não vamos esquecer, é sempre com uma faca, e não, uma gravata.
— Tudo bem... — Ele finalmente cedeu. — .... Mas qual seria o plano?
— Simples. Elas ficam aqui. — Harry deu de ombros. — Antes ele tinha o elemento surpresa, mas agora, nós sabemos que ele sabe e ele sabe que nós sabemos. Então, se ele quiser mesmo a Olivia, ele vai ter que tentar novamente, e aí sim estaremos prontos.
Meu pai desviou o olhar de Harry para a porta, a poucos passos à sua frente, e então, olhou mim e Taylor no sofá, claramente preocupado. Dúvida e insegurança eram claras em seu rosto, afinal, o plano era arriscado. Basicamente, estávamos sendo colocadas como isca para ver se o Enigma iria ou não tentar novamente. Ele queria dizer não. Era óbvio isso. Por isso, antes que ele concluísse alguma coisa, eu decidi falar algo.
— Eu acho que é um bom plano, pai. Você disse à Taylor que poderíamos confiar no Harry por ele ser do FBI, e acho que... é a sua vez de fazer isso. Confiar no Harry e no Andrew.
Ele ficou em silêncio por alguns segundos. Seus olhos divagaram por todo o apartamento, pensativos, e então, ele tomou uma decisão.
— Tudo bem. — Concordou. — Mas esse local vai estar cheio de policiais vinte e quatro horas por dia!
— Pode ser cinco, dez ou até mais policias se quiser, mas eu tenho certeza de que esse é o caminho certo. — Harry garantiu, estendendo sua mão na direção do meu pai.
— Bem... eu espero que sim. — Ele aceitou a mão de Harry, o cumprimentando de volta, então, se virou para fazer o mesmo com Andrew, como se dissesse "estou confiando minhas filhas a vocês".
— Ótimo, lá vou eu arrumar tudo isso de novo. — Taylor "comemorou", arrastando suas malas pelo corredor de volta para o quarto.
— O que faremos agora? Vamos apenas esperar? — Meu pai perguntou.
Era até um pouco cômico, ele, um homem de quarenta e nove anos, e xerife há quinze anos, perguntando a Harry, de apenas vinte e cinco, como prosseguir.
— Sim. Se quiser também, pode trazer a sua família para visitar. Temos que mostrar que não estamos com medo.
Meus olhos se abriram em esperança.
— Eu ficaria incrivelmente grata e feliz, pai. Ainda mais se o senhor pudesse trazer a Patty também. — Pedi.
Conseguia até imaginar o jeito que ela surtaria de medo e desespero quando eu contasse o que tinha acontecido ontem à noite... apesar de saber que ela provavelmente surtaria ainda mais quando eu contasse sobre o quase beijo.
— Vou tentar... Há dois policiais perto do elevador agora, e uma viatura em frente ao prédio, no entanto, eu irei mandar mais uma viatura e outros policiais por segurança. Assim como uma equipe de limpeza. — Ele apontou para a porta do apartamento.
O corredor ainda estava coberto de sangue, apenas o corpo de Jonas havia sido removido, assim como o de Rosa.
— Não, precisa, Xerife. Edward mesmo limpa. — Andrew ofereceu. — Temos que mostrar que não estamos com medo, mas também não precisamos correr riscos ao trazer mais pessoas para cá. Temos que afunilar o nosso círculo de confiança.
— Tem certeza disso? — Meu pai fez uma careta.
— Sim, sem problema, Xerife. — Harry concordou, depois de pensar por alguns segundos. — Meu pai tem razão.
— Tudo bem, então. — David veio até mim, me dando um abraço apertado. — Eu vou buscar algumas roupas e volto muito em breve.
— Roupas?
— É claro. Se vocês vão ficar, eu ficarei aqui com vocês. — Assegurou. E eu assenti depois que ele me deu um beijo na testa.
— Até mais, pai.
— Qualquer coisa, é só ligar.
Ele foi até a porta ainda um pouco receoso, mas no final, atravessou a poça de sangue e seguiu pelo corredor, deixando-me com Andrew e Harry na sala.
— Eu também vou buscar alguns pertences no hotel e volto em breve. — Anunciou o mais velho, tocando levemente o braço do filho. — Desculpa pelo lance do sangue.
— Tudo bem. Foi melhor assim mesmo. — Harry apenas concordou, observando o seu pai também deixar o apartamento.
Assim que a porta foi fechada, eu olhei para ele, que já estava me olhando, e soube na mesma hora que se eu não falasse nada, ficaria um clima estranho entre nós, principalmente depois do quase beijo e do abraço. Por isso, decidi seguir com o plano de apenas esquecer o que aconteceu e trata-lo da forma mais normal e profissional que eu conseguisse.
— Precisa de ajuda para limpar? — Ofereci, sem saber bem o que falar.
Ele olhou para a porta do apartamento agora já fechada e pensou por alguns segundos.
— Não acho uma boa ideia você chegar perto daquele corredor. Depois de tudo o que aconteceu durante a noite, acho que você deveria apenas descansar.
— Eu sei.... Mas acho que não vou conseguir dormir tão cedo, então... — Dei de ombros.
— Limpar litros de sangue de um corredor certamente não vai te ajudar a esquecer o que aconteceu, Olivia. De fato, só vai piorar a insônia.
— Você tem razão. — Concordei. — Mas eu posso ao menos te ajudar pegando os materiais?
Ele pensou um pouco e assentiu. — Você pode pegar o alvejante e as luvas na cozinha, enquanto eu vou pegar algumas toalhas no banheiro, tudo bem?
— Sim.
Fui até a cozinha e peguei o galão de alvejante que ficava no armário embaixo da pia, assim como luvas de borracha amarelas e a escova de uso geral. Ali também havia um pequeno balde azul escuro, e eu o enchi com água para se caso ele precisasse. Quando eu voltei para a sala, Harry já estava lá, arregaçando as mangas da sua camisa social branca até a altura dos cotovelos, enquanto um empilhado de toalhas brancas o esperava no sofá.
Ele agradeceu e foi até o painel da porta para digitar a senha e abri-la. O corredor vermelho entrou em meu campo de visão, mas eu evitei olhar na direção. Ao invés disso, observei Harry colocar as luvas, e então, ir para o corredor com uma toalha em seu ombro, o alvejante em sua mão direita, e na outra, o balde com água, e agora também, a escova dentro. Ele deixou a porta aberta ao passar, e eu aproveitei isso para pegar o resto das toalhas e ir me sentar no chão, bem ao lado da porta. Desse jeito, eu não precisaria ver o corredor, mas ainda estaria perto o suficiente para lhe entregar uma toalha caso precisasse.
Confesso que, o que tinha acontecido era algo extremamente desconfortável e bem triste de se pensar. Eu não conhecia Jonas. Mal havia falado com o cara, no entanto, ele estava aqui para me proteger. E agora... ele estava morto. Era impossível não pensar em tudo o que ele possivelmente deixou para trás e não me sentir no mínimo um pouco culpada.
— Ele tinha família? — Perguntei, tentando não focar no som da escova sendo usada contra o chão do corredor.
— Acredite, você não quer fazer isso. Só vai piorar a situação.
— Acho que a resposta é um sim, então. — Suspirei, me sentindo pior, assim como ele havia previsto.
— Não é culpa sua, Olivia, poderia ter acontecido em qualquer outro trabalho. É a vida. Pessoas morrem todos os dias. Especialmente nessa linha de trabalho.
— Mas aconteceu por minha causa. Não é fácil encarar isso, sabe? Eu fico pensando e repensando... — Não consegui continuar, pois lágrimas escaparem pelos meus olhos, assim como um soluço pela minha garganta.
Encarar tudo isso que estava acontecendo comigo ultimamente era terrível. Completamente assustador. A maioria do tempo eu tentava não pensar muito sobre isso, ou tentava me distrair para não chorar ou ficar paranoica, contudo, quando a realidade batia, como agora, lágrimas eram a única coisa que eu conseguia produzir.
Harry parou de limpar ao me ouvir chorar, e por um breve momento, eu pensei que ele iria aparecer ali na porta, perguntar como eu estava, ou até mesmo... me abraçar. Mas isso não aconteceu. E o devaneio logo passou, assim como o choro.
Ouvi quando ele voltou a esfregar a escova contra o chão novamente, mas dessa vez, eu não comentei mais nada, apenas fiquei ali em silêncio lhe fazendo companhia.
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