Natal Sobre Duas Rodas
– Eu já te falei que eu não vou! – Yan frisou aumentando o tom de voz, não aguentando mais aquela discussão.
– Os natais se passam em família! – A mãe do adulto de vinte e nove anos rebateu, não se dando por vencida.
Yan passou as mãos pelo rosto, tentando controlar a paciência que já estava quase no fim. Alisou os pelos da barba rasa para baixo, e respirou fundo, o coração disparado no peito e as palavras queimando na garganta.
– Mãe—
– Eles são sim a sua família, Yan! Pare de dar desculpas.
– Eles não são a minha família, nunca foram e nunca serão! – Ressaltou tais palavras aumentando a voz, não controlando a raiva. – E. Eu. Não. Vou!
Declarou, por fim, correndo para fora de casa e subindo na bicicleta, pedalando para longe dali.
Sofia passou a mão pelos cabelos grisalhos, lágrimas escorrendo dos olhos da mulher. Cobriu os olhos com o antebraço esquerdo deixando que os soluços levassem a dor presente em seu peito. Caminhou até a porta que o filho havia deixado aberta e, após fechá-la, voltou para a sala, encarando o retrato do falecido esposo.
– Oh, Igor, seria tão mais fácil se você estivesse aqui... – Lamentou, pegando o objeto e abraçando-o contra o corpo.
Já bem longe da casa, as pernas de Yan começavam a queimar assim que o adulto entrou em um caminho de terra. As lágrimas molhavam o rosto do homem e se misturavam aos fios da barba, o pulmão clamava por oxigênio e os pensamentos excessivos impediam Yan de raciocinar de forma correta.
Continuou pedalando, quebrando os galhos com as rodas e desviando de todos os obstáculos que a floresta que adentrara sem perceber lhe proporcionava. O suor fazia com que os fios castanhos e lisos grudassem na testa e, quando pingavam nos cílios, as grandes írises azuis do adulto sumiam com uma tentativa de não deixar com que o suor ardesse em seus olhos.
De repente, brecou, o pneu derrapando na terra e deixando uma linha funda no solo. Voltando à consciência do que estava acontecendo, olhou ao redor, o peito subindo e descendo inalando grandes rajadas de oxigênio. Se encontrava no meio de enormes árvores do pântano, uma área desconhecida para ele.
– O que—
A voz sumiu ao notar o veículo que estava montado.
– Aaa! Que isso?! – Perguntou-se, a voz trêmula. Passou a perna pelo acento e se afastou da bicicleta, o barulho dela caindo despertando sensações que há muito tempo não sentia.
Com as pernas bambas de tanto pedalar, Yan sentou-se no chão, cruzando as pernas como índio e, apoiando os cotovelos nos joelhos, a cabeça pendeu para frente. Tentando normalizar a respiração, Yan aproveitou o descanso para pensar em como sair dali. Ele não reconhecia o local e logo iria escurecer, o céu em tons alaranjado decretava isso.
Um suspiro escapou da boca do moreno antes de se levantar. Bateu as mãos na calça para tirar o excesso de terra e voltou para a bicicleta, as mãos trêmulas ao tirá-la do chão. Com o coração apertado, começou a empurrar o veículo, começando a explorar a floresta em uma tentativa de descobrir o caminho de volta para a estrada.
Após voltas e mais voltas, sempre acabando indo para o mesmo lugar, a noite chegou e Yan continuou dentro da floresta. Um raio cortou o céu e um trovão ressoou ao longe, preocupando o adulto.
Sem lanterna, sem capa de chuva, sede e fome, pensou o moreno, lamentando-se para a vida. Olhou para o chão, tentando focar para enxergar algo. O tênis esgarranchou em mais outro galho, levando o adulto para o chão em um tombo. O sexto, somou no pensamento.
Entretanto, antes que pudesse entrar em desespero, uma luz amarela no meio daquele tamanho de natureza chamou a sua atenção. Os cantos dos lábios do rapaz se ergueram em um breve sorriso e usou o que restava de forças para caminhar até onde aquele pontinho estava vindo – só esperava que não fosse um vagalume!
O aro da bicicleta ficou preso em algo, obrigando o adulto voltar alguns passos para que conseguisse libertar o veículo. Alguns repuxões no escuro e estava livre para poder continuar. Mais alguns passos, outras luzes começaram a aparecer. Azul. Amarela. Verde. Vermelha. Rosa e até mesmo roxa. Um arco-íris estava espalhado pelo gramado daquele enorme campo e, quando os olhos do adulto focaram onde se encontrava, percebeu ser uma casa.
Cabana, para ser mais específica.
O telhado de telhas avermelhadas estava todo decorado com a corda iluminada, cheia de cores. Decorações natalinas se encontravam na porta principal e até mesmo nas janelinhas rústicas nas paredes de tijolinhos vermelhos e antigos.
Na varanda – coberta por um telhado – haviam duas cadeiras de madeira, acompanhando o ar rústico do resto da casa.
Outro raio cortou o céu e, no instante em que um trovão ressoou pelos ares, uma mulher saiu correndo pela porta da frente.
– Minhas roupas! Oh, céus, não podem molhar! – Lamentou-se a jovem, curvando-se de frio e apertando ainda mais o casaco no corpo.
Estático por saber que aquela cabana era habitável, Yan começou a seguir todos os movimentos daquela mulher com os olhos, admirando a forma como ela se movia com precisão naquele solo desnivelado.
De longe, o moreno apenas conseguiu enxergar os cabelos loiros e curtíssimos da mulher, batendo um pouco acima da nuca. Estavam penteados para o lado, mas o vento fez com que ficassem bagunçados em menos de cinco segundos ali fora.
A mulher sumiu das vistas de Yan durante alguns minutinhos e, quando apareceu outra vez, estava com algumas roupas no ombro. Fora então que, notando estar sendo observada, a loira olhou em volta, curiosa.
– Quem é você?! – Perguntou ríspida quando notou a silhueta do moreno em meio às árvores. Ela deu alguns passinhos para o lado e capturou um pau de vassoura para a própria defesa. – Apareça! – Ordenou.
Ainda receoso e confuso sobre o que estava acontecendo – além de estar tonto de sede – Yan empurrou a bicicleta para o local aberto, podendo ser visto com mais clareza pela mulher a alguns metros de distância. Notando o rosto perdido do adulto, a loira abaixou um pouco a guarda, adquirindo uma feição mais pacífica.
– Qual seu nome? – A mulher perguntou.
– Yan. Yan Teixeira. – O outro respondeu um pouco tímido.
Um raio cortou o céu e só então a loira pôde visualizar melhor o rosto do moreno à sua frente.
– Daqui a pouco vai chover e é só por isso que vou te deixar entrar! – Alertou. – E meu nome é Clarice.
Um pouco aliviado, o adulto de olhos azuis tornou a empurrar a bicicleta até a varanda, apoiando-a na parede perto das cadeiras de madeira. Os tênis de Yan faziam um barulho de borracha quando pisavam naquele piso branco e bem limpo que, ao que parecia, estava presente em todos os cômodos.
Mesmo com certa simplicidade, a casa era muito bem decorada e organizada. Um sofá azul marinho de três lugares, uma mesinha de centro e uma enorme estante de livros estavam abrigados na sala. Um pouco mais adiante, uma mesa de madeira, quatro cadeiras do mesmo material compunham a pequena sala de jantar, anexada à cozinha que, por sua vez, possuía um fogão à lenha, um armário preso em uma parede e uma pia de porcelana envelhecida com o tempo.
Clarice reapareceu por uma porta e soltou um risinho ao ver que Yan ainda estava parado em frente à porta de entrada. A adulta caminhou até mais perto do homem e crispou os olhos.
– O que você faz aqui no meio do nada?
– Perdido. – Respondeu simples.
Com um biquinho, a mais baixa balançou a cabeça, aceitando aquela justificativa.
– E o que fez o senhor ficar perdido?
– Não percebi onde estava indo. Eu... Acabei sendo tomado pela emoção.
Um trovão ressoou pelos ares e a loira se encolheu de susto, um gritinho escapando de sua garganta.
– E o que você faz aqui sozinha? – Quis saber, Yan. – Com medo de trovão e tal.
Clarice coçou a garganta e alisou a saia do vestido amarelo bebê que vestia, tirando a blusa de frio e a jogando no sofá.
– Todo Natal eu costumava vir aqui com o meu irmão. – Caminhou até a cozinha e abriu o armário do canto esquerdo. – Mas ele não está mais aqui, então é por isso que estou sozinha.
– Ah, sinto muito. – Os olhos azuis desceram para os pés, uma tristeza começando a crescer em seu coração.
– Fica tranquilo, não é isso. – Um riso da adulta. – Ele foi viajar com o namorado. – Deu de ombros. – Cretino, me trocou. – Xingou capturando a caneca e colocando-a embaixo da torneira da pia.
Yan arregalou os olhos, surpreso.
– Vai mesmo permanecer aí? – Clarice olhou para o rapaz, ainda estático na frente da porta. – Pode ficar à vontade, não vai ser hoje que você irá voltar para sua casa, mesmo. Teremos que conviver um com o outro por essa noite, pelo menos.
Yan piscou tentando entender o que estava acontecendo e então caminhou para a cozinha, encostando o quadril na mesa e cruzando os braços em frente ao peito.
– Café ou chá? – Clarice indagou olhando para o homem.
– Chá.
A resposta do mais alto fez com que o cenho da mulher se juntasse em confusão.
– O quê?
– Nada. – Ela deu de ombros capturando a lata de Chá Matte e colocando três colheres na água fervente do fogão à lenha. – Do que mais você gosta?
– Desculpe? – Yan ergueu as sobrancelhas, pensando não ter entendido direito.
Clarice passou a mão pelos cabelos, jogando-os para o lado que estava antes de o vento ter bagunçado e voltou-se para o adulto, tão confusa quanto ele.
– Do que mais você gosta? – Tampou a lata e guardou-a de volta no armário.
– Chá com açúcar. – Respondeu; os cantos dos lábios se repuxando para o primeiro sorriso desde que se encontraram.
– Ok.
A loira tirou a caneca do forno e, ao coar em duas xícaras, entregou o potinho de açúcar para o mais alto, dando-lhe uma colher também.
– E você? Do que gosta? – Ele perguntou, curioso também.
– Café. – Pegou a caneca de chá e caminhou até a sala. – E sem açúcar. – Completou, sentando-se no sofá e erguendo as pernas.
Seguindo a mais baixa, Yan sentou-se na outra ponta, uma distância respeitável para alguém que acabara de conhecer.
– O que te deixou tão... Emocionado para que não percebesse ter se perdido numa floresta? – Clarice indagou após um curto gole no chá.
– Ahm... – Yan suspirou, pensando em como começar. – Briguei com a minha mãe.
– Desculpe, mas quantos anos você tem? – A loira virou-se para o moreno, curiosa.
– Vinte e nove.
– Certo... – Balançou a cabeça devagar, voltando a fitar a xícara que tinha nas mãos. – Então você brigou com a sua mãe. Posso perguntar o motivo?
– Você não acha que está sendo intrometida?
– Você está na minha casa, sentado no meu sofá, tomando meu chá na caneca do meu irmão. Não, não estou sendo nem um pouco intrometida. – Rebateu rápido, como se a resposta estivesse querendo sair a qualquer momento.
Os olhos azuis de Yan se encontraram com os verdes de Clarice, surpreso.
– Me desculpe. – O homem pediu.
– Sem problemas. – A loira balançou a cabeça em concordância.
– Ahm... Tá. Eu não sou muito familiarizado com a família do meu pai. – Começou, apertando mais a caneca entre os dedos. – Devido a algo que aconteceu no passado. – Engoliu o nó que começara a crescer na garganta. Clarice tentava desvendar o sentimento do adulto ao seu lado e entender o porquê de seus olhos terem ficado marejados de repente. – E minha mãe sempre me obrigou a ir com ela passar o natal com eles, sendo que, o ano inteiro, eles não se lembram da gente.
Uma pausa para que Yan pudesse respirar fundo e não deixar com que a tristeza tomasse seu peito.
– Então acabamos discutindo. E eu... Saí de casa.
– Acho que sei o que aconteceu com o seu pai... Sinto muito por ele.
– Obrigado.
– E eu não posso discordar com você sobre não querer passar o natal com pessoas que não se importam com você e sua mãe. – Clarice olhou para Yan, cujo mesmo já estava a encarando. Um sorriso simpático surgiu nos lábios rosados da menor e Yan retribuiu. – Mas não concordo com o fato de você ter abandonado a sua mãe sozinha justo no dia vinte e quatro.
– Eu estava estressado. – Justificou-se.
– Voltava para a sua casa ou—
– Eu moro com ela!
Clarice engoliu as palavras, surpresa. Sem mexer um músculo, ambos continuaram se fitando por um bom tempo, as xícaras esquentando as mãos frias naquela noite chuvosa.
– Então você tem vinte e nove anos nas costas e ainda mora com a sua mãe? – Questionou a mulher.
– E daí?
– Nada. – Deu de ombros, mudando a direção do olhar e bebericando o chá. – Só é novo para mim. – Piscou duas vezes para a estante de livros à sua frente. – Enfim, você saiu de casa para se acalmar e, sem perceber pegou a bicicleta, pedalou até o infinito e além e cá está você. – Concluiu. – Passando a véspera de natal no meio do nada com uma completa desconhecida em uma noite chuvosa. – Completou.
– Uhum.
– Que interessante! – Clarice comemorou, gargalhando. A primeira gargalhada da noite.
Yan franziu o cenho, virando-se para a mulher.
– Qual é? Não é todo dia que algo inesperado assim acontece! – Justificou-se. – Eu adoro viver minha vida da maneira mais diferente possível e, se você for um estuprador e fizer alguma gracinha comigo, eu até vou ter no meu diário que matei uma pessoa. – Sorriu para o homem. Levantou-se do sofá e deixou a xícara de chá na mesinha de centro. – Fala sério, isso é incrível! Você sabe alguma canção de Natal?
– O quê? – Yan gargalhou. Era muita informação em apenas uma fala.
– Canção de Natal!
– Só a Noite Feliz, já que tive que apresentar com a escola na oitava série. – Ambos riram.
E então, desafinadamente afinado, os dois começaram a cantar para a chuva que caía do lado de fora.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro