Capítulo único
8.02.2022
Januária, Minas Gerais
Oi,
Depois de tantos anos, aqui estou eu, escrevendo enfim a carta que vivi guardando nas emoções de minha mente e na prosa de meu coração.
Preciso esclarecer o passado para seguir em frente.
Não sei se esta carta chegará até ti, talvez até chegue, até aí à Serra da Estrela, a terra onde nasci, cresci e te conheci e por isso nunca esquecerei.
Eu não era assim tão nova, tu sabes. Tinha plena certeza que era lésbica e por isso tu foste uma confusão, um tornado inesperado que chegou e tirou tudo do lugar, bem dentro de mim. Eu sabia que tinha atração por outras meninas, mas amor, esse sentimento tão banalizado hoje em dia, eu ainda não conhecia.
Eu ainda não parei de falar com o sotaque de Portugal, eu não parei de compor, de tocar e de cantar, mas nalgum momento de minha estadia aqui, eu parei de conseguir lembrar da tua voz, parei de sonhar contigo, parei de lembrar cada traço de teu rosto detalhadamente, mas eu nunca parei de pensar em ti e de pensar como é estranho que tu tenhas sido o meu primeiro amor, porque tu és... um rapaz. Bem, hoje em dia, com certeza és um rapagão.
Sabes, eu acho que é esta mania de a gente se rotular, mesmo quando não queremos ser colocados em caixas, mais especificamente no estoque da minoria. Eu tinha-me colocado nesse estoque há muito tempo e para mim era simplesmente ridículo pôr em causa meus sentimentos por ti, mas agora eu sei o que era.
Era amor.
Aquele amor que cega e é indefinido. Porque tudo contigo era indefinido. O que deveria ser para alguns o padrão, o aceitável, para mim era o oposto, como se eu tivesse o tempo todo que exaltar a minha orientação sexual diferente e negar que estava pensando em ti, o dia todo, sem cessar.
Se me arrependo de alguma coisa?
Arrependo. Arrependo de ter ido embora sem nunca te dizer aquilo que sentia por ti.
Estou aqui, do outro lado do continente, me arrependendo profundamente de me ter definido tão cedo como algo que eu não sou.
A tua melhor amiga lésbica, vulgo eu mesma, não era lésbica.
Não.
Eu não gosto de meninas.
Eu não gosto de meninos.
Eu gosto de pessoas.
Pessoas como eu, como tu, como qualquer um.
Pessoas baixas, altas, magras, loiras, morenas, gordas, magras, heterossexuais ou não.
Eu gosto de pessoas, na sua amplitude, sem ter que dar ênfase a um só tipo de gente, a um só tipo de corpo, a um só tipo de parecer.
Hoje eu sei que não preciso de dar... ênfase, ao que quer que seja a minha orientação sexual.
Disseram-me que eu sou panssexual.
O que eu acho sobre isso?
Eu acho que dão nome para tudo. São rótulos, cada vez mais rótulos nos definindo, nos diferenciando, nos metendo em caixinhas.
Como não sentir pressão para nos definirmos como alguma coisa?
Eu só soube que te amava, quando deixei os rótulos para trás das costas. Dei um basta nisso tudo. Juro que dei.
Senti pena por não estar mais aí, para enfim me jogar nos teus braços e saber como será o sabor da tua boca.
Os rótulos fizeram-me perder a oportunidade de viver o que sentia, mas acredita, eu sentia. Eu sentia muito mesmo.
Lembras-te quando descíamos aquela subida íngreme da serra de bicicleta? Nossa, Luís, tu quase nos mataste aos dois, pois no momento em que caíste em cima do capô do senhor Marcolino, o meu coração quase me saiu pela boca. Tu saíste intacto, mas eu tinha o coração disparado de preocupação e mesmo assim eu não sabia que era amor.
E aquela vez que inventamos de nos esconder no jardim da dona Graciete e quase levamos uma sova de vassoura? Tu quase me beijaste na boca. Ou fui eu que quase te beijei a ti?
Ou fomos os dois?
Nunca saberemos o que saíria daí, porque a dona Graciete pegou-nos.
Talvez se eu tivesse contado essa aventura à minha mãe, ela não me tivesse trazido para aqui, na esperança ilusória de me curar de uma doença que não existe.
Nessa terra, onde a serra sente e respira, eu era feliz, porque não importava o que as pessoas tacanhas pensavam de mim. Eu tinha-te a ti e isso fazia toda a diferença.
Aqui, eu tenho outras possibilidades, mas falta-me o mais importante, tu.
Então, só quero que saibas, que quando eu tiver o meu diploma na mão, eu vou voltar para a serra.
Não espero um romance, ou ser correspondida, mas quero ver-te e me lembrar daquele menino que me pegou ao colo quando parti a perna na serra.
Saber se mantêns esse menino vivo dentro de ti.
Talvez tenhas alguém e anseies um futuro com essa pessoa e está tudo bem. Eu apenas quero que tu saibas, sem cobrança alguma, que tu foste o primeiro amor da minha vida.
Um beijo por tudo isso.
Um abraço pela saudade.
E os meus mais sinceros cumprimentos. Na próxima a gente se vê.
P.S.: Que a serra esteja coberta de neve!
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Fim
865 palavras
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