0.4 : A PRAIA
Tinha algo de errado na Praia, algo além das festanças, drogas e mortes. Lugares como aquele nunca permaneciam seguros por muito tempo.
Era o tipo de lugar onde, caso você baixe a guarda, será apunhalado não só pelas costas, mas por todas as direções possíveis.
Yuta conseguia estar mais desconfiado que Natsuki. Tudo na Praia o incomodava: as pessoas, a forma de pensar do Chapeleiro, o jeito que olhavam para eles, a falsa harmonia e a milícia, que, pelo menos naquele dia e meio em que estavam ali, não havia notado a existência deles.
Eram seis da tarde, e uma grande festa havia começado, já que alguns iriam partir para jogar. A Praia era uma bagunça generalizada: música alta, armas, drogas, bebidas e tudo mais que se pode imaginar em um lugar que impõe aos membros apenas três regras fúteis, junto com o bônus de "faça a merda que quiser, desde que obedeça às regras".
Isso trouxe a Natsuki um vislumbre do que a boate onde trabalhava costumava ser. Chamavam o estabelecimento de Gomorra ─── o nome já era autoexplicativo. Se pudesse, explodiria aquela boate com todos os gângsteres dentro.
Seu trabalho era apenas ser recepcionista,, para quitar uma dívida caríssima que ela e mais quatro amigos contraíram ao dar um golpe no proprietario da boate. No entanto, ela se destacou e logo foi parar na administração, o que no início parecia bom, já que, ganhando mais, não precisaria trabalhar de forma escrava lá por muito tempo. Chegou até a guardar parte do salário para si mesma.
Mas tudo mudou quando o dono saiu do país e contratou um novo gerente ─── um amigo dele ─── para cuidar de tudo. Se a boate já era ruim antes, ele conseguiu piorar umas cem vezes.
Além de tirá-la da administração e colocá-la de volta na recepção, ele gostava de torturar os funcionários, principalmente os quatro jovens que tiveram a brilhante ideia de roubar seu amigo e agora não tinham outra opção senão trabalhar naquele lugar.
Seu corpo reagiu de forma diferente ao ter esses flashbacks. Normalmente, ela apenas ficava zangada e rabugenta, mas agora suas mãos tremiam e suavam, enquanto sua respiração acelerava.
Com as mãos trêmulas, Natsuki pegou um cigarro do maço que estava no bolso. Contudo, a tremedeira fez com que o isqueiro apagasse três vezes seguidas, e ela não conseguiu acender o bendito cigarro.
─── Biquini legal. ─── A voz calma de seu amigo a tirou daquele transe, enquanto ele pegava o isqueiro de suas mãos e o acendia para ela. ─── Você tá bem?
Natsuki não respondeu, apenas o olhou de relance.
─── Descobriu algo?
─── O líder da milícia se chama Aguni, é um cara careca. Ele é bem próximo do Chapeleiro, mas, assim como seus subordinados, é uma bomba-relógio. Alguns membros destaques na praia são chamados de executivos, Chishiya, aquele baixinho sabichão, é um deles e isso com certeza não me surpreende.
─── Você é um fofoqueiro master. ─── Ela brincou, bebendo o último gole de seu uísque. ─── E o que a gente faz agora?
Ele ficou um tempo em silêncio, encarando o ar enquanto refletia sobre os próximos passos. Apenas ficar ali, sem planejamento ou ambição, estava fora de questão. Seria como simplesmente aceitar a situação atual ─── e eles não eram assim.
Yuta estava em constante evolução; permanecer irrelevante na Praia não fazia parte de seus planos. Sua ideia principal era ser promovido. Já Natsuki aceitava as coisas como eram ─── o que for para ser, será, e dane-se.
─── Temos que elevar nosso nível para termos influência e acesso a armas ─── explicou Yuta, finalmente olhando para Natsuki, que levantou uma sobrancelha e exibiu um sorriso brincalhão. ─── O que foi?
─── Entendi o que você quer dizer. ─── Ela gargalhou, segurando o cigarro entre os lábios. ─── Executivos e milicianos. Vai dar um trabalhão.
─── Mais uma coisa.
─── O quê?
─── Não faça besteira. Você não é o Che Guevara nem a Matilda. Então tenha paciência e tenta não se opor ao Chapeleiro. Não quero que você acabe morta antes de descobrirmos como sair desses jogos.
─── Sim, chefe. ─── Ela riu, apagando o cigarro na superfície do balcão. ─── Então o plano é entrar na milícia e se tornar membro executivo?
─── Tipo isso.
─── Beleza. ─── Suspirou, levantando-se e se espreguiçando. ─── Vou ver como as coisas funcionam.
─── Natsuki, espera. ─── Ele se levantou e seguiu a garota pela multidão. ─── A gente tem que se organizar antes!
─── Relaxa, sabichão. A gente tá numa festa. Vai lá puxar assunto com algum executivo, vou ir dar uma volta.
Seus olhos observavam cada movimento que eles faziam, estudando Natsuki como quem tenta montar um quebra-cabeça com peças faltando.
A primeira impressão que Chishiya teve dela foi a de uma garota estúpida, cometendo tolices por razões igualmente idiotas ─── como a maioria das pessoas. Mas depois de ter sido empurrado por ela contra um assassino sem sequer hesitar para garantir sua vitória, sua visão mudou drasticamente.
Natsuki não era uma boa pessoa, mas tampouco era má. Ela era simplesmente um ser humano com um instinto de sobrevivência aguçado, disposto a fazer o necessário para continuar viva, mesmo que isso significasse sacrificar outros. No entanto, havia algo curioso em sua lealdade. Enquanto era impiedosa com desconhecidos, demonstrava uma feroz lealdade a Yuta, seu parceiro, que era mais fraco. Para Natsuki, a prioridade era clara: sua própria vida e a de Yuta. Todo o resto não importava. Para Chishiya, isso fazia dela uma aliada em potencial ─── desde que pudesse manipulá-la a seu favor.
─── O que será que eles estão falando? ─── perguntou Kuina, observando a dupla de longe. ─── Eles são bem suspeitos.
─── Olha quem fala. ─── respondeu Chishiya, franzindo o cenho ao ver Natsuki e Yuta se levantarem e desaparecerem na multidão.
─── Eu poderia tentar falar com ela. ─── sugeriu Kuina, cruzando os braços. ─── Talvez ela se lembre de mim.
─── Seria mais fácil conversar com uma parede.
─── Então o que você quer fazer?
Chishiya suspirou, erguendo os olhos para o céu, frustrado. Ele ainda não tinha um plano concreto para trazer Natsuki para o seu lado. Quanto a Yuta, ele não ligava ─── achava-o sem graça e dispensável. Mas, para alcançar seus objetivos, sabia que seria necessário usá-lo, já que Natsuki não parecia dar ouvidos a ninguém além dele.
─── Que droga. ─── murmurou, colocando as mãos nos bolsos do moletom semiaberto. ─── Vou dar um jeito naquela pedra no sapato.
─── Se quiser, posso fazer isso. ─── disse Kuina, com um sorriso travesso. ─── Ele faz o meu tipo.
─── Muito gentil da sua parte, mas não, obrigado. Vai se divertir um pouco, deixa que eu lido com eles.
─── Pode deixar.
Os dois se separaram, cada um seguindo seu objetivo. Para Chishiya, encontrar Yuta foi fácil. Ele estava no interior do hotel, na sala de jogos, conversando com Kuzuryu, o Número dois da praia. Era tipo um segundo Chapeleiro, só que bem menos biruta.
Kuzuryu era conhecido por ser reservado, um mistério para quase todos na Praia. No entanto, parecia genuinamente interessado na conversa com o jovem. Chishiya, curioso, se encostou em uma parede próxima, o suficiente para ouvir sem ser notado.
Yuta estava falando sobre os executivos e milicianos. Sua lábia fazia parecer que só queria entender melhor o lugar onde se metera. Porém, quando o assunto recaiu sobre Aguni, Niragi e Último Chefe, seu interesse ficou evidente. Kuzuryu explicou que, para entrar na milícia, era essencial impressionar Aguni e saber lidar com seus dois subordinados mais famosos ─── e perturbados.
─── Se quer chamar a atenção da milícia, jogue um jogo com eles. ─── interrompeu Chishiya, caminhando até os dois. ─── E sobreviva.
─── Vou nessa. ─── disse Kuzuryu, desinteressado, antes de se afastar.
─── Do que você está falando? ─── perguntou Yuta, franzindo as sobrancelhas. ─── E você costuma sempre bisbilhotar?
─── Você queria informações, e eu tenho informações. Só estou ajudando. ─── respondeu Chishiya, com um sorriso falso. ─── Mas, claro, as chances de você morrer são bem altas. Sua amiga transtornada provavelmente sobreviveria. Ela massacrou dois homens grandes e me usou como isca sem pestanejar. Já você... estava escondido, não é? Terminou aquele jogo de paus todo ferrado. E aposto que só sobreviveu ao de Copas porque foi o Anjo e contou com sorte.
─── Vai se ferrar.
Chishiya não conseguiu conter um sorriso satisfeito. Ele adorava provocar, e o efeito em Yuta foi exatamente o que esperava: o rapaz ficou visivelmente irritado. Chishiya se afastou, deixando a decisão nas mãos de Yuta. Se ele aceitasse o desafio, seria uma oportunidade perfeita para observar suas fraquezas ─── e, quem sabe, confirmar se ele era tão manipulável quanto parecia.
Agora, só restava esperar.
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