Por Todas As Vidas
| AVISO DE CONTEÚDO: descrição gráfica de violência e mortes |
O vento quente e seco chicoteava as feições de Link, aumentando o desconforto causado pelo uivo da deslocação do ar nos ouvidos e pelo calor generalizado. Sob si, Myriu estendia e recolhia as asas num compasso ritmado, servindo-se das correntes para os impelir aos dois para diante. No seu encalço, o restante do esquadrão de Trekaris com cavaleiro voava em estreita proximidade, sendo intervalados por criaturas que nunca se associaram a um humano.
À distância a que se encontravam do chão e à velocidade a que voavam, não conseguiam distinguir mais do que um árido manto dourado se olhassem para baixo. Porém, quem olhasse para cima a partir do chão não teria dificuldades em distingui-los, de tão limpo que se encontrava o céu.
Um assobio e um vulto do seu lado esquerdo chamaram a atenção do General. Aproximando os joelhos sobre a curta sela que cobria as costas de Myriu e agarrando com mais força a pega central, o jovem esticou a cabeça sobre o batimento de asas da companheira, tendo o cuidado de se manter o mais baixo possível para não afetar o aerodinamismo do voo.
A sua prima, Yda Solatus, princesa de Histalia por direito divino, acenava na sua direção antes de apontar para baixo. Era o sinal de que estavam prestes a passar o ponto crítico no território do Deserto a partir do qual poderiam ser alvo de ataques antiaéreos. Link agradeceu com um gesto de mão e gritou uma sequência de sons para a sua comitiva, pedindo atenção para qualquer eventual ameaça.
No horizonte, o esboço da cidade de Mewar começava a ganhar contornos acima do mar de areia, tão dourada como se um astro gémeo do sol se tivesse desfeito em pequenas partículas para dar origem àquela paisagem. Mesmo à distância se notavam os pequenos montículos de barro, tecido e madeira ressequida que antecediam a gigante muralha a enclausurar a capital do Império do Deserto. Para lá dela, cúpulas e pináculos em pedra clara faziam a sua aparição, quais ossadas de um gigante esquecido sob o calor do sol.
Segundo os registos, Talora, o curso de água que nascia nas montanhas de Histalia e penetrava o deserto para alimentar toda a região, devia envolver as muralhas com os seus meandros, trazendo frescura e azáfama num clemente abraço azul, tão contrastante com o branco e cróceo envolvente. Todavia, mesmo num voo alto das costas de um Trekari, pouco mais se encontrava do que os vestígios mirrados do que um dia poderia ter sido um grande rio no centro de um leito sulcado, agora praticamente seco. Os canteiros que outrora acolheram plantações que alimentavam grande parte da nação estavam vazios, repletos de daninhas ressequidas, servindo apenas para evocar memórias de tempos áureos.
Para os ouvidos mais atentos, um silvo discreto antecedeu o grito de agonia de um Trekari. Link, agarrando a sela com força e preparando os joelhos para as manobras evasivas, olhou em volta, alarmado. Depois, sentindo a sua conexão com Myriu mais viva do que nunca, mergulhou no lago interior que servia de interface, emergindo do outro lado, com a sua visão medíocre ampliada pela vastidão da perspetiva da criatura na qual voava. Através dos grandes olhos topázio que não lhe pertenciam, Link espreitou para a imensidão de areia a muitos metros de distância, vendo um Trekari macho, sem cavaleiro, despenhar-se numa onda de poeira antes de ser violentamente atacado por homens e mulheres protegidos por túnicas. Os seus ouvidos, agora mais poderosos, ouviram o choro de dor da criatura sagrada ao ser cortada e trespassada antes de, assoberbado, cortar a ligação sensorial.
Ainda não estavam a sobrevoar a cidade e já se encontravam vulneráveis.
— Que compreendam as contradições que Banna vos impôs! — berrou, vendo pelo canto do olho o Trekari abatido levar cinco soldados inimigos para o seu leito de morte apesar do sangramento massivo causado pela lança espetada no seu ventre. — Por Histalia!
— Por Histalia! — ouviu-se em resposta.
— Dispersar! — gritou Yda, mergulhando num voo picado com Drasha, a sua Trekari, antes de rodopiar.
Link emitiu uma nova sequência de sons antes de Myriu acelerar, ordenando à sua equipa voar desordenadamente até ao Palácio que ele sabia estar no centro de Mewar. Nunca antes tinha visitado a cidade nem existiam em Histalia registos que descrevessem a sua estrutura e a sua disposição. Porém, Yda e o esquadrão que esta tinha liderado com Tahel numa investida surpresa antes de Link acordar tinham sido capazes de, através das visões das suas montadas, captar detalhes essenciais ao plano agora em marcha.
Mais setas e arpões foram disparadas do chão a seguir à primeira, a alturas naturalmente impossíveis, com ímpetos e explosões que só a magia que corria nas veias dos habitantes do Deserto poderia produzir. Guinchos e urros foram carregados pelo vento, enquanto criaturas e cavaleiros tentavam a todo o custo sair ilesos da saraivada apontada cegamente aos ventres intrusos.
O General imitou o seu esquadrão, prendendo a correia em torno da cintura à sela da sua Trekari antes de agarrar no arco que carregava nas costas. Os homens e mulheres sob o seu comando eram temidos como exímios arqueiros, capazes de acertar nos seus alvos até durante as mais complicadas acrobacias aéreas. Ele, pelo contrário, era sobretudo um excelente espadachim, tendo uma mira pouco acima do razoável para alguém da sua posição.
A mão esquerda mergulhou na aljava presa à sela onde Link raramente se sentava, retirando uma leve flecha de longo alcance. Os outros cavaleiros, arqueiros natos, tinham um conjunto de flechas de diferentes pesos e alcances à sua disposição. Para ele, as de longo alcance serviam. Todas as outras seriam desperdiçadas nas suas mãos pouco hábeis.
Com o indicador e o dedo do meio da mão esquerda ele segurou a flecha, retesando o arco, enquanto a direita assegurava a linha de tiro. Myriu, à semelhança de outros Trekaris nas proximidades, precipitou-se num voo mais próximo do solo, pendurando Link de cabeça para baixo a meio de uma acrobacia. Os dedos enluvados soltaram o projétil, que atingiu um soldado inimigo na lateral do tronco, quase de raspão, antes de criatura e cavaleiro retomarem um voo a direito.
Libertando um pouco da tensão dos pés presos nos estribos da sela e dos joelhos fletidos, o jovem olhou para trás. As flechas dos seus subordinados tinham sido mais certeiras que a sua, chegando a atingir alvos tão impossíveis como globos oculares ou até mesmo a ceifar vidas de um só tiro.
Se a situação não fosse tão séria, Link poderia ter feito troça da sua própria aselhice.
Mais adiante, Yda e Drasha pareciam abrir caminho por entre a formação inimiga, guiando um grupo de Trekaris sem cavaleiro para Mewar, onde seriam mais úteis do que num combate de longa distância. Tentando manter uma cadência de tiros adequada, Link instigou Myriu a segui-los. Ainda que a sua principal função, num momento tão precoce da batalha, fosse servir de distração ao exército do Deserto, a fim de permitir a aproximação da cavalaria e da infantaria a partir de formações rochosas próximas da cidade, a verdade é que o seu esquadrão só teria vantagem em plena metrópole, onde os edifícios dificultariam o uso de ataques antiaéreos e os Trekari, habituados ao confinamento das suas galerias, poderiam ser mais ousados.
Entre os batimentos das poderosas asas de Myriu, as flechas de Link conseguiram ferir mortalmente dois inimigos, no meio das dezenas que atingiu, antes dele se desfazer do arco, prendendo-o na sela ao lado da aljava, retirar a luva e libertar a correia da cintura. Diversas criaturas passaram por si em voos velozes, agitando o ar ao cruzar os muros da cidade ao mesmo tempo que uma estrondosa trombeta de guerra os acolhia, anunciando parte do seu sucesso.
Tinham conseguido adentrar a capital do Deserto, num feito que poucos dos seus homens alcançaram durante o seu sono forçado. Porém, a batalha, que certamente seria devastadora, estava apenas a começar.
Myriu, seguida de perto por Drasha, mergulhou para o topo da muralha, agarrando a cabeça de uma vigia com as garras ao aterrar, cravando pele e osso antes de desfazer o crânio humano no pavimento. Link desembainhou a espada a tempo de cortar o peito de um inimigo com um lenho profundo antes da sua companheira atirar o atacante para longe com uma poderosa cornada, empalando o homem desprotegido nas suas hastes no processo.
Fogo amigável choveu sobre as suas cabeças, liquidando ataques à traição que tinham passado despercebidos. Nas costas de Myriu, que percorria a estrutura de pedra das muralhas com as asas recolhidas, armada com garras, dentes e hastes, o jovem desferia golpes a todos os que se lançavam na sua direção. Não muito longe, Yda fazia o mesmo, com a sua figura bronzeada e de cabelos negros camuflada na pelagem invulgarmente escura e uniforme de Drasha.
Link desviou-se de uma lâmina apontada ao seu pescoço antes de decepar um braço e deixar outra combatente inconsciente ao desferir uma pancada com o pomo da espada devido à falta de espaço. Myriu deu um solavanco e, de repente, o General já não estava nas suas costas. Um corpo tinha chocado com o seu, levando-o a rolar com o seu agressor pela parte baixa da muralha até um telhado adjacente.
De gatas no telhado, a arfar, Link levou a mão à omoplata direita, arrancando o punhal que o homem do deserto tinha ali espetado até ao osso com o ímpeto do salto. Depois, ainda com a lâmina que arrancara do corpo na mão, foi derrubado de novo. O seu atacante tentava fazer uso do seu pouco peso, deitando-o no chão e subindo as mãos gretadas e gastas até ao pescoço, tentando bloquear a traqueia.
Link não cedeu ao instinto de procurar espaço pessoal e uma brecha para respirar melhor. Reunindo a força que conseguiu, agarrou no cabo da arma, fazendo pontaria ao pescoço diante dos seus olhos. A lâmina atravessou a carne de um lado ao outro com surpreendente facilidade, desviada da coluna vertebral pelo ângulo de entrada enviesado. Depois, com generosos esguichos de sangue em todas as direções, ele sentiu uma súbita leveza para respirar antes do saco de ossos fazer pressão sobre o seu corpo.
Demorou uns instantes para afastar o cadáver e sentar-se, normalizando o movimento de ar nos pulmões e a cadência do coração. Os seus olhos demoraram-se no punhal que os músculos retesados tinham retirado da ferida que infligira no inimigo antes de atirar a lâmina manchada de vermelho para longe.
Ao se levantar, teve um vislumbre daquilo que confirmou as suspeitas que se formaram com o formigueiro no seu ombro. Tal como o morto continuava a sangrar como se ainda estivesse vivo depois daquele lenho fatal nas artérias principais do pescoço, também ele iria continuar a sangrar em abundância, por muito que estancasse a ferida na omoplata. A lâmina que o atingira estava amaldiçoada para provocar um sangramento até à morte nas suas vítimas. Muitos dos seus homens tinham perecido assim na sua ausência, com feridas impossíveis de estancar e sangramentos internos depois de cauterizados os lanhos. A não ser que o responsável pelo feitiço naquela lâmina conhecesse o seu fim, a vida de Link tinha as horas contadas.
Chateado mas resignado, o jovem passou a mão esquerda na face, numa tentativa de remover o excesso do espesso líquido que lhe escorria pela cara. O gesto espalhou o sangue pelas suas feições, manchando a pele melanizada, mas impediu que a substância lhe escorresse para os olhos. Se queria ser útil no tempo que lhe restava, não se poderia deixar cegar.
Olhando para cima, Link reconheceu a familiar pelagem com tons outonais na confusão de criaturas que cruzava os céus. Apesar das dores do movimento, os seus lábios envolveram dois dos dedos da sua mão direita, incrivelmente pristina no meio de tanto sangue, soltando um assobio estridente, enquanto a mão esquerda se esfregava nos tecidos que envergava para recuperar alguma aderência. Depois, o jovem curvou o corpo para apanhar a espada a alguns passos de distância antes de a embainhar e correr, saltando do telhado para o abismo da rua logo abaixo.
Myriu apanhou-o em queda livre, ganhando altitude de novo com um poderoso bater de asas.
O par juntou-se ao frenesim de Trekaris que, entre um confronto e outro, se dirigia ao Palácio de Mewar. A melhor maneira de acabar com uma guerra é eliminar um dos líderes e a queda da coroa de Histalia não era uma opção.
Depois do que pareceu uma eternidade, ouviu-se de novo o grave clamor da trombeta de guerra. Maysa, a cavaleira que Link acabava de salvar de uma emboscada, olhou para ele, com esperança a reluzir nas suas íris alaranjadas. O resto do exército de Histalia acabava de atravessar a muralha para tomar a cidade de assalto, provando que os longos dias de planeamento daquele ataque não tinham sido em vão.
Com um sorriso cúmplice entre os cavaleiros e um grito de guerra, Myriu lançou-se de novo aos céus, sendo seguida pela montada de Maysa. Visto de cima, era evidente que o ataque dos Trekaris à metrópole tinha deixado as suas marcas nas ruas de Mewar. Porém, dada a sua diminuta escala, também era conspícuo que o verdadeiro caos de corpos, gritos e fluídos só tomou forma quando a cavalaria de Atticus e a infantaria do Duque Solatus atravessaram os portões norte e oeste, respectivamente, cada um sobrevoado por um trio de Trekaris.
No homem que encabeçava o grupo de cavaleiros sobre cavalos roubados à entrada do deserto era possível distinguir, por cima da sua sede de sangue, a irritação de chegar por último ao confronto. Nazum Solatus, por seu turno, mantinha uma pose calculista a velar a preocupação constante pelos seus descendentes, também eles presentes no campo de batalha.
Ciente de que as coisas estavam encaminhadas em terra com a presença da cavalaria e da infantaria de Histalia, Link encheu os pulmões de ar para gritar uma nova sequência de sons aos compatriotas capazes de o ouvir. Myriu, prestativa, fez eco da vontade do seu humano, chamando Trekaris sem cavaleiro nas proximidades.
Era chegado o momento de invadir o Palácio e subjugar a liderança do Império.
Talvez atraída pelas indicações auditivas do seu primo, Yda surgiu de repente de um amontoado de casas nas costas de Drasha. Voando à frente de Link, a jovem olhou para trás uma vez antes de soltar um grito de guerra, quase tribal, com um braço erguido acima da cabeça. Ele, impelido por uma renovada sede de vitória, imitou-a.
Contudo, o sentimento depressa foi substituído pela raiva e o ódio.
Ao sobrevoar um conjunto de casarões altos da parte nobre da cidade que antecedia o Palácio, Drasha foi atingida no peito por um dos diversos projéteis que abriram caminho em direção aos céus. As montadas e os cavaleiros que a acompanhavam dispersaram ao ouvir o grito de dor da Trekari invulgarmente negra. Link, de coração nas mãos, incentivou Myriu a mergulhar atrás dos corpos que se precipitavam para o chão.
Yda e Drasha caíram espalhafatosamente sobre as lajes de um pátio, falhando por pouco o conforto da pouca vegetação que ladeava o pavimento ou o amortecimento da massa de água que enchia a fonte nas traseiras daquela mansão. Link saltou para o chão ainda antes de Myriu colocar as patas no solo, correndo com urgência em direção à prima. Mas era tarde. Quando a alcançou e envolveu, sentindo a rigidez da couraça que a protegia contra os braços, cavaleira e Trekari tinham já soltado o seu último suspiro, mortas por uma única flecha amaldiçoada e pela conexão que partilhavam.
Link fechou os olhos vazios de Yda, banhados a lágrimas rubras que escorriam até cobrir o brasão do reino, antes de a abraçar com força, tentando conter o choro. A seu lado, Myriu roçou o seu focinho ossudo no pescoço de Drasha, entre a flecha que trespassara o espaço intercostal e o fim da mandíbula, manchando a pelagem castanha com o sangue da outra criatura.
Aquilo que constituía uma das maiores vantagens do esquadrão de Trekaris era, simultaneamente, a sua maior fraqueza. A ligação que um cavaleiro estabelecia com as criaturas sagradas permitia-lhe não só utilizar os sentidos bestiais para ampliar os seus, como também partilhar emoções e intenções. Isto facilitava a comunicação entre os pares, ao torná-los verdadeiramente um só, e permitia até o uso de Trekaris sem cavaleiro como membros do exército, por intermédio da ajuda das montadas. Porém, significava também que as respirações e os batimentos cardíacos se encontravam em fase, mesmo quando a ligação não estava ativa, ditando que bastava um sofrer uma ferida mortal para selar o destino fatídico para ambos.
A sensação de fraqueza que tinha no corpo devido à ferida no ombro foi suplantada pela adrenalina. Com o sangue a ferver nas veias, o General tornou a montar a sua companheira para voar em direção ao Palácio. Pelo caminho, todos os soldados do Deserto que adentravam o seu campo de visão eram brutalmente assassinados, deixando um rasto de sangue, órgãos e corpos desfigurados à passagem do príncipe cego pela sua própria dor.
Tinham morto o irmão mais velho, a prima, o amigo de infância e tantos outros que Link se arrependia de permanecerem para sempre anónimos, já que não conhecia as suas caras ou os seus nomes. Tinham raptado o pai, o Rei de Histalia, e a Elisha, Mestre de Segredos. Tinham levado o seu reino a meses de aflição constante e a uma tristeza profunda.
Depois disto, o Deserto não poderia ficar impune.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro