Entre Mapas e Relatórios
O salão de reuniões do Palácio tinha a afluência concentrada na meia dúzia de dias, a cada três ou quatro meses, em que assuntos relativos à governação de Histalia eram discutidos. Nessas ocasiões, mais de uma dezena de representantes, altos funcionários, ministros, sacerdotes e monarcas se reuniam na divisão ampla, preenchida por uma mesa oval e comprida, ladeada por um sem fim de cadeiras que nunca parecia suficiente. No restante do tempo, o salão permanecia encerrado.
Contudo, os últimos tempos tinham vindo a perturbar essa rotina quase metódica. Ainda que o corrupio de pessoas e documentos não fosse tão alto como nas ocasiões em que assuntos prioritários do reino reuniam figuras que habitualmente não se misturavam, o tumulto era suficiente para contrastar com o seu abandono contínuo. Agora, apenas alguns escolhidos tinham autorização para entrar no salão, mesmo quando estava mergulhado no silêncio. No tampo da mesa normalmente limpo e organizado, mapas, esboços e pilhas de relatórios cobriam a madeira clara, não deixando muito espaço disponível. O clima, geralmente fogoso e temperamental, estava tenso.
A agitação do lado de fora das grandes portas duplas chamou a atenção dos homens e mulheres presentes no salão, levando-os a parar o que estavam a analisar e discutir por uns momentos. Um homem alto, de pele escura sob a camisa de linho branca e as calças de pano justas atravessou o vão quando as estruturas gémeas de madeira talhada, pintadas a branco e ouro, se abriram, arrancando vénias e cumprimentos respeitosos das pessoas no interior.
— Link!
O jovem nem teve tempo de se preparar para apanhar o corpo que colidiu com o seu. Os dois giraram pelo ímpeto num abraço apertado, agitando as curtas tranças azul-marinho que se agarravam ao escalpe dela nos dois terços da cabeça que não tinha rapado e fazendo os adereços das suas pontas tilintar. Depois, corroído de saudades, o mais velho colocou-a no chão, analisando as suas feições.
Nimka parecia-lhe mais alta, mesmo que já não estivesse na idade para que isso acontecesse. Contra todas as probabilidades, a sua previsão de que ainda cresceria depois do primeiro sangramento tinha-se revelado certeira, embora não tivesse sido suficiente para chegar perto da altivez de Rue. Não estava tão magra como a mãe e a irmã, mas as dificuldades que passou na sua ausência era bem visíveis, acima de tudo, pelo seu lábio rebentado. Ela tinha o péssimo hábito de deixar os dentes brincar com o lábio inferior quando perdida em pensamentos, arrancando peles e causando feridas que manchavam de vermelho sangue a boca melanizada.
Link passou o polegar gentilmente sobre as feridas no lábio dela. Outra pontada despontou no seu peito ao sentir a irregularidade da mucosa e as crostas recentes. A culpa era sua.
— Desculpa a demora, Nim.
Ela sorriu-lhe, com os olhos cinzentos, já de si inchados e vermelhos, marejados em lágrimas de alívio e felicidade. Ele fitou-a simplesmente, sem ânimo para corresponder.
— Bem vindo de volta, General — disse uma voz de barítono a seu lado, chamando a atenção dos dois.
O moreno encarou o homem atrás da irmã mais nova. Como a grande maioria dos histalianos com quem se cruzara no Palácio desde que acordara, também ele se tinha tornado escravo do cansaço e da perda de peso. Mesmo assim, a sua figura escondida pelas habituais vestes escuras e justas ao corpo não tinha mirrado tanto como outras, continuando a atrair olhares e imaginações de ambos os sexos, se estivessem em clima para tal. Os antebraços cobertos pelas mangas que terminavam numa luva sem dedos e os bíceps cor de canela, expostos pela falta de tecido entre o cotovelo e o ombro, mantinham um tamanho considerável. O curto, mas volumoso, cabelo castanho exibia sinais de negligência, mas os olhos de cobre continuavam tão penetrantes como da primeira vez que o vira.
— Atticus.
Link ignorou a hesitação do amigo de longa data e o braço estendido para um cumprimento que ficava entre o cordial e o amigável, abraçando-o. Depois, terminando a demonstração de afeto fugaz, o General de Histalia olhou em volta, estremecendo ligeiramente ao absorver a imagem dos presentes. Todos tinham mudado, corroídos pelo tempo e pelas dificuldades que Link podia apenas imaginar. Só ele continuava fisicamente igual ao seu antigo eu, de tantos meses que esteve congelado no tempo, incapaz de acordar ou definhar e, eventualmente, morrer.
Afastando os pensamentos, Link pigarreou, recuperando o foco. Não era o momento para lamentar o que passou.
— Coloquem-me ocorrente de tudo o que aconteceu enquanto... Não estive — pediu, virando-se para a irmã e para Atticus. — A Rue fez-me um resumo, mas vou precisar dos detalhes.
Nimka limpou os olhos com as mãos, assentindo, procurando recompor-se. A sua fadiga mental estava a ser empurrada para um canto unicamente pela presença do irmão mais velho. Tê-lo ali, acordado e vivo, mudava muita coisa no panorama geral da nação. Porém, também mudava coisas no seu interior. Em especial, começava a queimar uma fagulha de esperança e otimismo, instalando-se um pouco do conforto e da paz que se tinham eclipsado nos últimos tempos.
Quando a sua vista clareou, o seu olhar foi rapidamente atraído para algo que, na sua euforia, não tinha reparado antes. Ela conhecia a garra de Trekari que balouçava suavemente junto ao pescoço do irmão, pendente de um lóbulo de orelha ensanguentado. Era um dos mais famosos brincos do Kato. Ainda que tivesse demorado vários anos para perceber a dor por detrás do atípico acessório e do seu par, a mais nova sabia o que significava. E vendo os ombros descaídos de Link e a gravidade das suas feições, ela podia imaginar o que aquela garra significava agora para ele.
— Por muito que me custe admiti-lo, o Deserto tem-nos na mão desde o início — suspirou Atticus, dissipando a miragem do sangue que tingia as mãos de Nimka e da sombra do cadáver querido que ela via a seus pés. — Como já deves saber, eles usaram o alvoroço dos preparativos para se infiltrarem no Palácio e raptarem a Elisha. Com tantas caras novas a entrar e a sair, ninguém suspeitou de nada. Quando a tiveram em sua posse, devem ter usado truques sujos para conseguir informações da colocação dos guardas e das entradas das passagens secretas para se moverem livremente sem serem notados. Sabes que a Elisha jamais partilharia esta informação de livre vontade.
Ele assentiu brevemente. O treino rigoroso que os estudiosos têm de enfrentar para se tornarem Mestre de Segredos garante que a informação não seja comprometida por métodos tradicionais, por muito insistentes que sejam. Se Elisha tinha realmente revelado informação confidencial, então a técnica de interrogatório de que foi alvo deveria ser perversamente infalível.
— Pelo que conseguimos apurar, tu foste a primeira vítima — continuou Nimka. — Lembraste do que aconteceu?
Link tentou reconstruir na sua memória os últimos momentos que teve no Palácio naquele dia. Tinha ido ao escritório do pai pela manhã para discutir uns pormenores do desfile que Tyredon estava a organizar para a coroação e tinha encontrado a divisão vazia. Sobre a secretária estava apenas um conjunto de papéis arrumados e uma jarra de água ao lado de um copo meio cheio.
— A água! — exclamou de repente, atirando uma mão à cabeça. — O pai tinha um copo sobre a secretária e eu bebi-o antes de sair!
— Também achamos que tenha sido a água — concordou ela. — Quando te encontraram já tinhas desmaiado e o copo e a jarra tinham caído ao chão contigo. Como o tapete absorveu o que restou do líquido, nunca chegámos a ter a certeza.
— A cronologia fica um pouco confusa depois disso... — Atticus coçou a nuca. — Não sabemos se atacaram primeiro o Kato, se raptaram primeiro o Rei ou se tinham dois grupos a operar em simultâneo. Seja como for, não demos com eles antes de saírem do Palácio sem deixar rasto. E como não fomos suficientemente rápidos a perseguir os intrusos, agora estamos a correr atrás do prejuízo.
O salão caiu num silêncio tenso e contemplativo. Todos os presentes reviviam as suas memórias do trágico dia, corroídos pela frustração de não terem detetado algo que pudesse ser útil naquele momento.
— Sabemos porque é que o Deserto fez isto? — perguntou Link ao levantar o olhar para as portas do salão, que tinham sido abertas e fechadas naquele meio tempo de quietude.
Rue, desencostando-se das estruturas que a amparavam, adentrou a divisão.
— Não. As negociações, se é que lhes podemos dar esse nome, têm sido muito fechadas. — A sua figura foi seguida por todos os olhares até parar entre Atticus e o irmão. — A comitiva deles chega, deixa as suas exigências e vai embora sem nos dar margem de manobra para conseguirmos entender a razão por detrás delas.
— Que exigências são essas?
— É só uma, na verdade. Histalia tem de se submeter ao governo do Deserto - esclareceu ela, com a expressão tão indecifrável como lhe era característica.
Link olhou o mapa estendido sobre a mesa a alguns passos de distância. Histalia detinha o foco da representação pictórica, com a localização das suas províncias bem demarcada na cordilheira de Ghíscar, o âmago do reino. A extensão azul do oceano banhava a curta fronteira Norte. Das três nações vizinhas, em especial do Deserto, pouco ou nada havia representado. E, para sua grande amargura, o jovem sabia que o par de folhas por debaixo daquela mantida esticada por pisa-papéis não adicionavam grande informação.
— Pergunto-me o porquê disto tudo. Eles têm sido tão ativos politica e militarmente nos últimos anos que até nos esquecemos da sua existência. Não devem estar a fazer isto pela súbita sede de poder do novo Sol do Império — ponderou ele, cofiando o queixo suavemente ao referir o título dado ao Imperador do Deserto. — Pergunto-me porque é que estamos a lidar com isto justamente agora.
— Antes de ti, já eu tive a mesma pergunta. Saber o que eles querem podia dar-nos alguma margem de manobra, mas mesmo depois de levar os teus melhores batedores, Link, continuo às escuras. — A voz de Rue, gelada e sombria, era suficiente para provocar arrepios nos homens e mulheres que ouviam a reunião em silêncio. — Espero ter notícias em breve, mas...
As palavras morreram-se-lhe na garganta, sem necessidade de serem proferidas para adivinhar o seu sentido. Atticus, que se erguia ao lado de Rue com um olhar preocupado, subiu a mão para afagar as costas dela. Mas a mulher, que fitava o tampo da mesa central de braços cruzados, levantou uma das mãos na sua direção, terminando o contacto sem lhe dirigir um único olhar ou agradecimento.
— Se não conseguimos resolver as coisas diplomaticamente, vamos ter de partir para a ofensiva. — Link deu a volta à mesa, colocando-se de frente para o mapa enquanto pronunciava aquelas palavras. Pousando ambas as mãos sobre a folha de papel, o jovem observou a representação vaga da nação que partilhava a fronteira sul com Histalia. — Falem-me das tentativas de infiltração no Deserto.
— As coisas podiam ser melhores nesse departamento — comentou Nimka, colocando um par de óculos sobre a mesa à frente do irmão.
Atticus, que se afastara de Rue para agarrar uma resma de documentos, estendeu os relatórios na direção do seu General. O seu olhar de cobre roubou uma espreitadela à mulher que continuava impávida, sem lhe prestar atenção nenhuma, antes de se concentrar nas folhas que Link estudava através das lentes sustidas pela fina armação metálica que colocara na cara.
— Tivemos várias tentativas das várias divisões do exército, mas ninguém chegou muito longe. Não conhecemos o terreno e, para além da retaliação do exército deles, somos presenteados com condições hostis — disse o mais escuro, utilizando o indicador robusto para apontar para as linhas dos relatórios que continham informações que corroboravam o seu relato. — Não sei como é que eles conseguem viver no meio de tanto nada — escarneceu, endireitando-se.
O olhar de Atticus pousou nas costas de Rue, que conversava em surdina com membros da equipa de informação do exército, antes de encontrar o de Nimka. Havia pena misturada com reprovação naquelas íris cinza e ele, incapaz de as enfrentar naquele momento, começou a percorrer o salão em passo lento.
— Neste momento a nossa atenção tem estado mais focada na defesa dos territórios fronteiriços no sopé da montanha e na prevenção de uma invasão de Histalia — acrescentou a mais nova da sala, inclinada para o irmão do outro lado da mesa. — Os relatos de escaramuças e pilhagens não param de chegar ao Palácio. Enquanto não temos uma boa estratégia para acabar com esta situação de uma vez por todas, achamos melhor defender a nossa população do exército do Deserto e das suas maldições.
Link assentiu, tomando nota mental daquela informação.
Mesmo com uma leitura rápida dos relatórios que lhe tinham sido entregues, era possível perceber que o seu exército tinha agido até agora como peças desconjuntadas. Na falta de uma liderança coesa, as várias divisões tinham agido individualmente, mesmo quando em missões conjuntas, não atingindo por isso grande sucesso. Era necessário alguém com conhecimento suficiente de todas as partes, incluindo as suas vantagens e as suas fraquezas, para montar uma estratégia que tirasse o melhor partido possível de todas as peças que ainda estavam no tabuleiro. E devido à doença prolongada de Arietta, a mulher que lhe ensinou tudo antes de lhe confiar o exército e a proteção do reino, as opções disponíveis para o revezar na tarefa durante a sua ausência eram bastante limitadas.
A súbita memória da carta que Link tinha confiscado a Rue horas antes levou o moreno a olhá-la de relance.
Ela era uma mulher orgulhosa e engenhosa. Mesmo em situações extremas, o seu instinto era não depender de ninguém sendo, pelo contrário, uma fonte de calma e segurança para as pessoas à sua volta. Por isso, ela não iria hesitar em aceitar os termos do acordo que o Arquiduque De Mogris tinha proposto em troca de se aliar a Histalia e atuar como o tão necessitado líder militar. Mesmo que isso significasse prender-se a si própria num tipo de relação pessoal que ela jamais teria de livre e espontânea vontade.
Se ele não tivesse despertado da maldição na altura certa, Rue teria enviado uma carta que não só mudaria o destino do reino, como também arruinaria a sua vida.
— Os sobreviventes do último esquadrão que enviamos regressaram a Histal. — Rue projetou a voz ao deixar de discutir em cochichos com membros da divisão de informação para notificar todo o salão. — Muitos não se lembram do que viram para lá da fronteira e, os que se lembram, não conseguem falar, por muito que se esforcem.
Um estrondo sobressaltou os presentes quando o punho do Atticus quase abriu um buraco na parede de pedra na qual se tinha apoiado. As pessoas à sua volta, assustadas com a súbita fúria, abriram espaço. Os irmãos Rozhira observaram em silêncio, imóveis.
— Atticus, os sobreviventes das diferentes investidas que o exército fez voltaram no mesmo estado que os batedores? — perguntou Link, abanando os relatórios que tinha na mão na direção do homem que era o seu braço direito.
O capitão da cavalaria ergueu o olhar do pano molhado com que um jovem de pensamento rápido lhe tinha enfaixado o punho dorido, fitando o amigo.
— Não. Os nossos sobreviventes não foram amaldiçoados para ficarem calados — cuspiu.
As mãos de Link pousaram os relatórios, puxando um mapa quase vazio do seu lugar atrás da representação de Histalia. Algumas anotações e rabiscos preenchiam aquilo que, segundo a legenda, representava as areias do Império do Deserto, resumindo a escassa informação que semanas de ataques infrutíferos tinham reunido.
— Ótimo. — Ele levantou a cabeça das folhas, encarando as poças de cobre do mais escuro. — Leva quem precisares desta sala, mas reúne-os a todos. Vou precisar dos seus relatos como fontes de informação.
Atticus arregalou os olhos antes de concordar com um sorriso selvagem a repuxar os seus lábios cheios. A expectativa da retaliação acendia em si uma motivação que há muito julgava perdida.
— Rue, vou precisar dos teus ouvidos nisto — acrescentou Link, apontando para a irmã, que se limitou a assentir sem perder a frieza das feições. — Nim, o que é feito dos Solatus?
Os enfeites no fim das tranças tilintaram quando a jovem, preenchida de entendimento, deu a volta à mesa para se colocar ao lado do irmão.
— A Yda e o Eligos foram destacados para resolver confrontos nas fronteiras. Há uns dias recebemos notícias de que estariam de volta em breve, pelo que não devem tardar a aparecer. — Puxando o mapa do reino de volta para o centro da mesa, os seus dedos traçaram as rotas que os irmãos Solatus tinham tomado, demonstrando que não estavam longe de Histal. — O Duque deve estar nas barracas, com os seus homens. Ele treina com os sãos pela manhã e visita os feridos de tarde, antes de me ajudar a distribuir os mantimentos na cidade ao final do dia.
Link retirou os óculos da cara, abandonando-os em cima dos documentos que teria de reler com mais atenção em breve.
— Convoca a Yda e o Eligos quando eles chegarem. E traz-me o Duque depois de distribuírem os mantimentos mais logo. Vou precisar da visão de todos.
— Vou falar com o Duque para acelerarmos a ida à cidade — prontificou Nimka, saindo do salão em seguida.
Com movimentos discretos de cabeça, Link dispensou a equipa de Atticus para reunir os testemunhos dos sobreviventes das investidas no Deserto, gerando um burburinho de passadas, tecidos e murmúrios nas laterais da divisão que depressa se esvaziou.
— E tu? — O príncipe seguiu o som da voz de Rue até a encontrar a comparar documentos. — Ainda não foste ver a Miryu desde que acordaste. Não devias ir lá acima? — rematou, levantando o olhar das linhas que estudava com cuidado.
Link olhou pela janela, como se pudesse ver a sua companheira bestial por entre as nuvens que mimetizavam a cor dos seus olhos.
— Não sei... Já perdemos tanto tempo...
A morena pousou os papéis na mesa com um suspiro antes de se aproximar.
— Vai. A inquietação da Myriu e do Inx não tem feito bem aos ninhos e vais precisar dos Trekaris na melhor forma possível para derrotar o Deserto. — O seu tom saiu afável, apesar de algo impositivo. — De qualquer forma, vai demorar algum tempo até teres as peças todas que precisas para trabalhares.
Ele dirigiu-lhe um sorriso forçado, apertando levemente a mão que Rue tinha depositado no seu ombro.
— Está bem. Mas depois não saio daqui enquanto não conseguir delinear uma estratégia que ensine aquela amostra de povo a não provocar Histalia.
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