A Família Lacris
Quando Allya voltou a abrir os olhos, estava de novo no seu quarto. O teto rachado continuava lá e o colchão duro também. Tinha até Charya, uma das suas irmãs mais novas, a dormir colada a si. Provavelmente tinha tido um pesadelo durante a noite e viera deitar-se com ela sem que ela se apercebesse, ao contrário do que era habitual.
Allya nunca tinha sonhado na vida — pelo menos que se lembrasse. Mas aquela tinha sido uma boa experiência.
Como ela gostaria de voltar a ver as estrelas.
Minutos depois de acordar, Allya obrigou aqueles pensamentos a abandonar a sua mente e levantou-se com cuidado, dando início à sua rotina matinal. Começou por vestir a roupa do trabalho e ajudar a avó, eterna madrugadora, a sair da cama.
— Dormiste bem, avó?
Polyana sorriu para a neta com uma expressão doce.
— Tão bem quanto consigo hoje em dia. Mas diz-me: o teu descanso foi mais atribulado do que o desta minha velha mente? — perguntou, ajustando sobre o nariz o aro das grossas lentes que retirara da mesa de cabeceira ao sentar.
A jovem olhou para Reniae, que se remexia na terceira cama do quarto, espreitando depois Charya, deitada sob as suas cobertas. Apesar dos murmúrios de conversa no quarto e do som dos preparativos do pequeno almoço na cozinha, ainda estavam ambas a dormir.
— Porque é que perguntas isso?
— Pareces... diferente. Agitada. Não sei dizer se num bom ou mau sentido — disse, estudando a neta. Algo lhe dizia que a própria Allya, provavelmente inconsciente do seu estado de espírito, não saberia responder se a sua última afirmação fosse uma pergunta. — Aconteceu alguma coisa durante a noite? Durante o sono?
Allya enrubesceu, espantada por o seu corpo ser capaz de trair a estranha experiência que tivera ao dormir. Tentando esconder o incómodo, a ruiva distribuiu melhor o peso do corpo para conseguir içar a avó suavemente.
— Está tudo bem, não te preocupes — respondeu, incapaz de negar e mentir à pessoa por quem nutria tanto carinho e estima. Quando teve a certeza de que a avó se encontrava estável sobre os próprios pés, Allya dirigiu-se ao pequeno guarda-fatos para retirar a roupa que a avó tinha escolhido no dia anterior. — É melhor ajudar-te a vestir. Não posso chegar atrasada ao trabalho.
Polyana aquiesceu e mexeu-se segundo as indicações da neta, facilitando a tarefa de trocar de indumentária para ambas. Depois, amparada no seu corpo diminuto mas robusto, utilizou as pernas cansadas de anos consecutivos de trabalhos pesados para se dirigir à cozinha. No interior da divisão atravancada, Tentto dividia o seu tempo entre as coisas que tinha ao lume e os ingredientes que cortava na bancada de pedra.
— Bom dia!
O jovem assustou-se com o cumprimento repentino da irmã adotiva, cortando o cogumelo que tinha na mão com um ímpeto inesperado, atravessando a sua própria pele num lenho pouco profundo.
— Bom dia — respondeu, usando um pano para estancar a pequena ferida na palma da mão.
Voltando-se, o jovem acompanhou os movimentos de Allya enquanto esta sentava a velha Polyana no seu lugar à mesa antes de encontrar os seus olhos, que se arregalaram de espanto ao compreender a situação.
— Oh, desculpa! — A ruiva precipitou-se na sua direção quando teve a certeza de que a avó estava bem instalada. — Não queria assustar-te! Estás bem? Deixa-me ver.
Tentto colocou a mão embrulhada num pano longe do seu alcance.
— Não te preocupes, foi um cortezinho de nada. Tens ali o leite e as tostas da avó e o teu almoço. — Ele inclinou a cabeça na direção das refeições, fazendo cair as suas madeixas negras à frente dos seus olhos ametista. — Eu sei que dizes que não tens tempo para comer, mas tenta arranjar pelo menos alguns minutos. Por favor.
Depois de algumas tentativas falhadas de alcançar a ferida do irmão adotivo, Allya bufou em frustração e serviu a avó antes de apanhar a sua comida. Não tinha tempo para aquilo.
— Ok, venceste. Eu vou andando. Adeusinho. — Num gesto infantil, ela mostrou a sua língua a Tentto, antes de colocar uma mão no topo da cabeça da avó, manchada de cinza pelo tempo. — Adeus, avó.
Os seus lábios tocaram a testa enrugada da mais velha por uns segundos. Porém, ao se endireitar para seguir o seu caminho, sentiu a mão de Polyana sobre a sua, impedindo-a de se afastar.
— Sabes que estarei sempre aqui para te ouvir, se precisares de desabafar. — A sua mão reteve a de Allya por uns instantes, durante as quais trocaram um olhar silencioso mas sabedor. Depois, sorrindo, deixou-a ir. — Tem um bom dia.
A jovem ainda encarou Polyana antes de acenar em despedida, pegar no saco que tinha na entrada e sair para as ruas de Erysa.
A expressão da idosa arrefeceu um pouco depois da porta bater.
— Devias despachar-te também. O trabalho é uma excelente cura para aliviar uma mente dos pensamentos confusos que a atormentam.
Tentto, que largara o pano e lavara a ferida entretanto, olhou a matriarca. Polyana agarrava a caneca de líquido quente com as duas mãos, soprando de quando em vez para o arrefecer, sem lhe dirigir um único olhar. Depois, sorrindo amargamente, terminou de preparar as refeições da família, arrumou a cozinha, pegou na porção que deixara de lado para si e apressou-se a sair de casa.
Allya caminhou sozinha até à mina, desviando-se em passo apressado dos transeuntes que, ocupados com os seus afazeres, não tinham tempo de a ver ou de reagir à sua aproximação. Quando chegou aos portões da mina, ainda antes dos cristais de Er ficarem completamente amarelos e das badaladas assolarem Erysa, foi recebida por um Zhou sorridente.
— Espero que esta demora se deva ao pequeno almoço que comeste em casa, porque se estiveste a dormir até tarde e estás de barriga vazia, é assim que vais ficar até à primeira pausa. — Zhou segurou Allya pelos ombros antes que ela passasse por ele. — Que cara é essa, Al?
O sorriso distraído que ela lhe lançara em resposta ao seu cumprimento murchou, mimetizando o dele. Lutando com as palavras para arranjar a resposta certa, Allya mexeu-se, desconfortável.
— Sentes-te bem?
— Não é nada... É só que... — As badaladas que assinalam o início de um dia de trabalho interromperam o seu discurso, dando-lhe mais uns momentos para recompor a sua linha de raciocínio. — É só que, hoje de manhã, a avó quis ficar a conversar e o Tentto cortou-se com uma faca.
Ela não estava a ser verdadeira. Ainda que ambas as coisas tivessem acontecido, a causa da sua inquietação e dos seus pensamentos tumultuosos nada que tinha que ver com a sua manhã. Tinha que ver com as palavras novas que aprendera, com a pessoa que lhas ensinara e com o cenário onírico onde passara a sua noite. Porém, ela não se sentia confortável em partilhar aquilo com Zhou, o amigo com quem sentia que podia dividir tudo na sua vida. E isso causava-lhe um desconforto que, aparentemente, ficara bem visível.
— Está tudo bem com eles?
Assentindo, Allya ignorou o peso no estômago e tudo o que lhe ocupava a mente, focando-se na mentalidade que necessitava para trabalhar.
— Lacris! Alinac! A preguiça é descontada do vosso ordenado!
Os dois amigos estremeceram com as palavras de Edvin, o seu patrão, antes de correrem na direção do pequeno edifício com os balneários e a sala de descanso. Zhou saiu do espaço mal colocou o seu saco no primeiro cacifo vazio que encontrou, combinando encontrar-se com Allya mais tarde. Ela, por seu turno, deu uma dentada na sandes que o irmão fizera antes de sair para trabalhar. Ter o estômago vazio não ajudava a recolher Poeira.
Depois disso, o seu dia passou depressa. A recolha de Poeira era um trabalho tão perigoso quanto exigente, requerendo a sua atenção total a todos os momentos. Enfiada nos buracos estreitos no coração da mina, Allya não deu pela passagem do tempo, anunciada aos habitantes de Erysa mais pela mudança de cor nos cristais de Er do que pelos poucos relógios por ela espalhados. Porém, durante as poucas pausas que Edvin permitia para que os mineiros recuperassem o fôlego e a sua energia, a jovem dava por si a interrogar-se se voltaria a ver o céu noturno. Se voltaria a ver o Link.
Allya estava tão ansiosa para voltar a casa e descobrir se o que tinha acontecido na noite anterior fora real ou se não tinha passado de um sonho — de uma fantasia da sua cabeça —, que Zhou não teve de a chamar uma única vez. Aliás, ela é que teve de esperar por ele, para grande surpresa do jovem.
— Tens a certeza que está tudo bem? — perguntou Zhou ao se aproximar da amiga, parada do lado de fora do único edifício do recinto da mina. Quando teve Allya ao seu alcance, subiu a mão livre para a testa dela, agarrando o saco sobre o ombro com a outra. — Estás doente?
— Queres deixar de ser idiota?! — A sua mão afastou a dele antes de reorganizar a franja que o amigo afastara. — Para quem tem sempre o fogo no rabo quando a Torre dá as últimas badaladas do dia, hoje estás muito lento!
A ruiva começou a dirigir-se para a parte movimentada da cidade e Zhou, que ficara congelado no mesmo sítio pela perplexidade que aquela fala lhe causara, correu atrás dela. Allya passava tanto tempo com ele que tinha aprendido os seus maneirismos de discurso e de respostas tortas!
— Ei, espera! Estiveste assim esquisita o dia todo. Tens a certeza de que não precisas de nada? Só se falares comigo é que te consigo ajudar.
Ela aproximou-se de uma vitrine, saindo da frente da multidão antes de parar de andar. Zhou, que caminhava atrás dela, quase que não conseguiu evitar uma colisão com aquela travagem abrupta.
— Z, confia em mim. — Allya agarrou as mãos sujas do amigo com as suas, juntando as palmas e entrelaçando os dedos entre os seus corpos. — Está tudo bem. Foi só um dia cansativo. Quero ir para casa — assegurou, reforçando as suas palavras com um aperto de mãos.
Os olhos azuis do Zhou perscrutaram os olhos castanho-claros da ruiva, em busca da verdade que ele sabia que a expressão dela denunciaria mais depressa do que as suas palavras. Contudo, antes de chegar a alguma conclusão, Allya afastou-se, sorrindo.
— Para além disso, como hoje não comi grande coisa, tenho fome.
O mais alto sorriu-lhe de volta antes de a seguir, discursando sobre os cuidados que a amiga deveria ter com a sua saúde, exagerando ao ponto de lhe arrancar sonoras gargalhas. Mesmo que não tivesse descoberto a fonte de tanta agitação, ele conhecia a Allya como a palma da sua mão. A ruiva era incapaz de guardar as suas frustrações em segredo durante muito tempo. Se fosse algum problema grave, mais tarde ou mais cedo falaria.
Os dois despediram-se perto de casa dela e, depois de o ver partir, Allya entrou no atarracado edifício de pedra. Porém, a sua chegada foi tão anormalmente prematura, que assustou a sua família.
— Mãe! A Allya chegou — gritou Charya, desaparecendo para o interior da pequena casa para avisar Kleomia, a sua mãe, provavelmente ainda no banho.
— Vieste cedo — comentou a avó, de cenho franzido atrás das lentes, ao vê-la entrar na cozinha.
— Comecei agora mesmo a fazer o jantar — reforçou Tentto, com apreensão a transbordar das suas íris ametista.
— Aconteceu alguma coisa na mina? — Tybalt afastou a cadeira de rodas da mesa para se aproximar da filha, parada no vão da divisão, inspecionando-a com o olhar. — Tiveste algum acidente?
— Foste despedida? — perguntou Reniae das suas costas, colocando a cabeça para dentro da cozinha pelo espaço entre a pedra e o braço da irmã. Numa situação normal, a familia tê-la-ia repreendido por agoirar assim. Porém, naquele momento, todas as possibilidades lhes passavam pela cabeça.
Allya, incapaz de se justificar pelas falas quase simultâneas dos seus familiares, quase se desmanchou a rir ante a sua preocupação.
— Acalmem-se, está tudo bem! Não aconteceu nada na mina, não tive um acidente, não estou doente, nem fui despedida — terminou, fulminando a irmã mais nova com um olhar simultaneamente acusador e divertido. Ocorreu-lhe comentar que quase tinha arranjado problemas com o patrão naquela manhã, mas decidiu que era melhor fingir que nada se tinha passado depois de ver o alívio tomar conta das faces de cada um, como se uma onda tivesse percorrido a divisão. — Agora já não posso vir para casa cedo de vez em quando, para ter algum tempo de qualidade com a minha família? Se quiserem que vá embora, eu volto mais tarde.
— Não! — exclamaram as mais novas. Reniae, ajudada por uma recém-chegada Charya, empurrou Allya para o interior da cozinha, sentando-a no seu lugar do costume. — Fica connosco!
As mais novas sentaram-se à sua volta com olhares suplicantes. Charya e Reniae nutriam um amor imenso por Allya, mas o trabalho nas minas da irmã e o seu trabalho como ajudantes de curandeira e de mecânico, respetivamente, tornavam a sua convivência difícil.
— Eu ia ajudar o Tentto com o jantar...
— Deixa-te estar — disse Kleomia, ao entrar na cozinha com um sorriso. O seu cabelo castanho claro, tão distinto dos familiares à sua volta como as mechas negras de Tentto, estava duas tonalidades mais escuro por causa da água do banho. — Eu ajudo.
Allya sorriu para a mãe, que beijou o topo da cabeça do marido antes de ir dividir o pequeno espaço em frente à bancada com o filho adotivo. Depois, sorrindo para as irmãs, a filha mais velha dos Lacris cedeu às suas provocações, iniciando uma série de conversas e jogos que arrastaram toda a familia e que duraram muito mais tempo do que a refeição que partilharam.
Quando o cansaço veio reclamar a atenção que lhe era devida, Allya foi deitar as irmãs e avó antes de tomar um duche. A água, que estava morna o ano inteiro, não foi suficiente para afastar a tensão e a fadiga dos seus músculos. Porém, mesmo naquele banho curto, a jovem sentiu parte das suas aflições a descerem pelo cano com os vestígios da sua profissão que trouxera agarrados ao corpo.
Na sua velha camisa de noite, Allya foi desejar as boas noites aos pais e ao irmão antes de adentrar o seu quarto, fechando a porta atrás de si. Em pés de lã, fez uma ronda pela divisão, para ter a certeza de que todas estavam confortáveis, antes de se deitar no seu colchão.
Ela bem que tentou adormecer de imediato. Porém, mesmo estando estafada do dia de trabalho, não conseguiu fazê-lo. Estava demasiado excitada e ansiosa. Tinha demasiadas perguntas na cabeça.
Só ao fim de vários minutos a contemplar a mesma Cúpula de sempre através da janela é que a sua mente começou a abrandar. Lentamente, a sua consciência tornou-se mais pesada, fugindo-lhe por entre os dedos até finalmente adormecer.
A escuridão tomou conta da sua visão até a claridade a substituir minutos depois. Com um sorriso, Allya abriu os olhos para constatar que estava de volta ao exato local da noite anterior: tinha a relva sob si e a lua e as estrelas por cima da cabeça.
O sonho da noite anterior fora real. E, felizmente para ela, estava a repetir-se.
Com o coração mais leve e a ansiedade que sentira durante o dia agora não mais do que uma memória distante, a jovem levantou-se, sacudiu o vestido negro e desatou a correr. Os seus pés levaram-na primeiro para o topo do monte, descendo depois com cuidado até à árvore junto à água.
— Link! Link!
Allya olhava em volta, intrigada com o silêncio daquela zona. Mesmo contornando a árvore, para onde quer que olhasse, não conseguia encontrá-lo em lado nenhum.
O seu peito apertou quando percebeu que Link não estava ali. O que é que lhe tinha acontecido? Teria ela chegado demasiado cedo? Estaria ele bem? Teria sido o encontro da última noite o primeiro e o último?
Concentrada na sua própria respiração e no pensamento do quão solitária seria aquela noite naquele estranho mundo, a que só tinha acesso através dos seus sonhos, Allya quase deu um pulo quando, de repente, um barulho, que lhe pareceu demasiado alto, cortou a noite, atraindo a sua atenção.
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