Um
MARIA
Ainda é tão estranho estar em uma sala de aula e não ver Sofia por perto. Já faz quase três anos e não me acostumei com o fato de a minha melhor amiga não morar mais no mesmo país que eu ou que não esteja mais estudando comigo. Não é como se sempre tivéssemos planejado ir à mesma faculdade ou qualquer coisa assim. Não, eu sabia que traçaríamos caminhos opostos depois do colégio, mas sinto falta dela. Principalmente porque ela não está mais tão perto de mim.
Sofia me ensinou o significado da amizade verdadeira. O significado do amor. Do Amor em si. De Jesus.
Parece que foi ontem que soube do seu aneurisma e quase surtei com a possibilidade de perdê-la, até que, mais uma vez, ela me ensinou o significado da fé. Ela não só lutou contra tudo sem perder sua fé em Deus, como agora está muito bem e casada com um cara incrível que a ama de verdade.
Sinto saudades do Ben também.
Sinto saudades do Ensino Médio e ainda não cheguei nem na metade do Ensino Superior.
Estou terminando meu quarto período em Pedagogia. E, de uns dias para cá, ando sentindo muita saudade de casa. Saudade do interior. Saudade do gramado no quintal de casa. Saudade da minha igreja. Saudade dos meus amigos. Saudade de tudo! Não costumava ser tão nostálgica assim.
Ben e Sofia estão na Alemanha, ambos estudam Medicina. Thiago e Lorrayne estão estudando Gastronomia em nossa cidade natal, mas eles quase não são acessíveis, além da faculdade ainda estão fazendo cursos atrás de cursos em suas áreas específicas. Carol ganhou uma bolsa no sul para fazer a faculdade de Oceanografia que sempre quis e Rebeca foi com ela, estava fazendo uns trabalhos como modelo e disse que queria entrar em algum curso de Moda. Não sei o que o Eduardo está fazendo agora, a última coisa que soube foi que ele estava fazendo um curso de Engenharia de Software e acabou virando um verdadeiro nerd da computação. Sinto saudade até da Isa e do Israel. Aquela maluquinha conseguiu conquistar todo mundo.
Mal posso esperar para as férias de final de ano pra eu finalmente ir a minha casa. Depois de dois anos inteiros, finalmente vou. Sei que já tenho 20 anos e que já não moro na casa dos meus pais desde os 18, mas ainda não achei nenhum lugar para chamar de lar que fosse melhor que a casa dos meus pais. Ainda sinto que lá é a minha casa. Lá, naquela casinha branca no interior do colégio em que conheci e amei tantas pessoas. Naquele quintal maravilhoso que parece tão mais do meu casal favorito do que meu. Ainda não me encontrei aqui.
Nunca tive dúvidas sobre a escolha que fiz ao me inscrever nas faculdades, sempre quis fazer Pedagogia, sempre quis ingressar na área da educação. O problema não é a faculdade porque, até então, mantive boas notas, conheci boas pessoas e estou cada vez mais apaixonada pela área da educação especial. O problema é que já faz uns três meses que meu coração está do tamanho de um caroço de amendoim e ainda não entendi o motivo dessa angústia. A única coisa que sei é que preciso ir para casa.
As provas de final de semestre acabaram e nem acredito que estou largada no meu sofá como há muito tempo não ficava. Parece que estudei mais nesse período do que já estudei a minha vida inteira! Não que eu não goste de estudar, gosto muito, mas meu cérebro está tendo que desatar os nós que se formaram de tanta leitura e aplicação de texto.
— Maria? — ouço meu nome ser chamado de forma melodiosa que só uma pessoa sabe fazer. — Maria?
— Estou aqui, Bruna! — grito para minha colega de quarto. Uma delas, na verdade.
— Está passando mal? — Ela pergunta, parada na minha frente.
— Não, por quê?
— Só te vejo jogada assim quando está dormindo ou passando mal — graceja.
— Estou cansada, só isso. Acabou de sair a nota que estava esperando e senti que podia respirar aliviada.
— Você vai acabar matando seu cérebro de tanto que força o coitado! — Bruna diz com uma careta e desato a rir. — Manu e eu estamos planejando uma social mais tarde, quer ir?
Manu é nossa outra colega de quarto. É inevitável uma careta ao pensar em sair com as duas, elas não costumam chegar antes de duas horas da manhã.
— Acho que me esqueci como se levanta daqui, então, não posso ir.
— Ah, qual é, Maria! Você sabe que a gente não bebe mais nem fazemos metade do que fazíamos!
Bruna e Manuela são primas e me receberam no apartamento delas desde o primeiro semestre da faculdade. Seus pais compraram o apartamento, mas elas decidiram que seria bom ter mais uma pessoa para ajudar nas contas, mesmo que não pagassem aluguel. Ambas fazem Letras e nos dávamos muito bem desde que nos conhecemos no grupo de estudo da primeira aula que tivemos juntas. Imediatamente saí do meu aluguel e fui para o apartamento delas, eu as ajudava com os estudos e as contas e assim não pagava aluguel. Todo mundo saiu ganhando e Deus me abençoou infinitamente.
No entanto, no começo tentavam de tudo para que eu fosse às festas, shows e baladas que iam à noite, traziam bebidas para mim mesmo depois que tenha recusado todas as vezes e ainda levavam seus "amigos" que eram amigos, e um "amigo" para mim. Não demorou uma semana para que percebessem que sou cristã. Não que eu negasse, é claro, mas como elas nunca perguntaram, não achei que cabia discutir religião, contanto que não interferissem nos meus princípios e, mesmo com as insistências, nunca me faltaram com respeito.
Certa vez, quando chegavam de uma festa, encontraram-me de joelhos no meu quarto fazendo uma oração na madrugada, ambas pararam boquiabertas na porta, mas não demorou muito para que Manu olhasse para Bruna e falasse: "disse pra você que ela é crente, eu disse!". Depois disso, elas ainda me chamavam para sair, mas pararam de me oferecer bebidas ou me apresentar "amigos".
Pouco mais de um ano depois, as duas chegaram aos prantos para mim e disseram que precisavam de ajuda e que não aguentavam mais a vida que levavam. Foram muitas madrugadas que passei com os joelhos no chão e Deus honrou todas as vezes que clamei para que entendessem que a vida que estavam levando não as levaria a lugar algum. Nunca fui de ficar repetindo sempre para que aceitassem Jesus, mas sempre que era propício mostrava a elas o quanto a alegria dEle é duradoura e isso que elas achavam ser bom, era apenas passageiro.
Perdi a conta de quantas noites passei cuidando das duas ao chegarem caindo de bêbadas e às vezes até drogadas. Perdi a conta de quantas vezes precisei dispensar rapazes que achavam que tinham liberdade para entrar e fazer o que quisessem aqui, mas, quanto a isso elas sempre deixaram claro que nunca trariam homem algum para dentro de casa em respeito à mim. E nunca trouxeram, pelo menos não por vontade própria.
Mas então, depois que ambas se ajoelharam comigo para orarmos e seus rostos ficaram banhados em lágrimas, elas prometeram que iam dar um rumo em suas vidas. Demorou um ano para que conseguissem parar de beber de verdade, para que parassem de usar qualquer droga e até que parassem de se entregar para qualquer homem que aparecesse, elas ainda saem com frequência, mas o jeito que voltam para casa é completamente diferente, e sair para se divertir nunca foi condenável, não se está se divertindo de maneira saudável e não há nenhuma violação contra a si mesmo ou qualquer outra pessoa. Agora, elas apenas encontram seus amigos e se divertem, não estão indo com frequência comigo à igreja, mas então caminhando para um bom caminho. Para Jesus Cristo. E continuo orando por elas todos os dias.
— Não pode ser amanhã? Estou realmente muito cansada. — Passei a sair com elas algumas vezes, mas não tinha tanto pique quanto elas para pernoitar e hoje não tenho pique nem para ir para cama. O sofá parece bom demais para mim.
— Ah, Mary, seria tão legal se você fosse. Manu vai levar Erick, ela queria que você o conhecesse...
Manuela está "namorando" um cara há algumas semanas. De todas as coisas, relacionamentos ainda são uma bagunça para as duas. E para mim também, já que não as entendia em diversas vezes. Elas não conseguem entender como consigo ficar sem um namorado por tanto tempo e eu não consigo entender como trocar tanto de namorado pode fazer tão bem para qualquer uma das duas. Elas sempre dizem que ficar sozinha é ruim, no entanto, sei que esse vazio precisa ser preenchido por Alguém e não por um alguém qualquer, mas elas vão compreender isso por elas mesmas mais cedo ou mais tarde. Enquanto isso, continuo orando por cada uma.
— Por favor, fala pra Manuela que vou conhecê-lo outro dia. Estou realmente muito cansada.
— Tudo bem, então. Você é quem sabe. — Bruna arrasta os pés para seu quarto e começa a se arrumar.
Graças a Deus ela parou de insistir, agora posso vegetar aqui no meu sofá à vontade.
🌻🌻🌻
— Não acredito que isso aconteceu comigo! Não acredito! — jogo-me na minha cama, desacreditada sobre o que tenho em minhas mãos.
— Maria, para de drama! — Bruna ri de mim. — Isso não é o fim do mundo.
— Eu sei que não, mas é horrível!
— Maria, é sério, vou fazer você engolir esse boletim se não parar com essa palhaçada. Primeiro que ninguém mais imprime esse papel com as notas, tem no portal!
— Manu, estudei o semestre inteiro. Eu me matei de estudar, mereço estar chateada.
— Maria, é só um 8, pelo amor de Deus!
Elas não entendem o quanto minhas notas são importantes pra mim. Mantenho um boletim impecável desde que comecei a fazer provas. Nunca tive um 8 em nenhum deles. E agora, em plena faculdade, acontece isso comigo.
E em Filosofia!
— Não é "só um 8", Manu. É o 8 que manchou minha vida acadêmica! E por puro preconceito, tenho certeza de que isso é pessoal.
— Ninguém mandou você falar sobre religião logo com Arthur, que é um ateu declarado. — Bruna zomba.
— Mas era um trabalho livre e ele pediu nossa opinião. Apenas opinei. Aquilo nem era uma prova.
— Mas contava como ponto de participação, você sabe.
— Vou recorrer sobre essa nota. Ele precisa provar que eu merecia um 8 de verdade!
— Maria, o cara é poderoso no campus, você vai manchar sua vida acadêmica com mais do que uma nota insuficiente para seu gosto.
— De poder por poder, não temo o poder dos homens. Ele tem o direito de me dar a nota que quiser contanto que prove meu merecimento para a mesma. E é só isso que quero.
— Então vai insistir sobre ir a essa vista de prova? — Manu pergunta, visivelmente preocupada.
— É claro! É meu direito.
— Tudo bem, depois não diga que não avisei.
Manu sai para pegar sua prova da aula anterior com sua colega porque ela também não quis ir à vista, Bruna fica me olhando e acho que está esperando que desista de ir, mas não posso. Vai contra meus princípios compactuar com um preconceito descabido como esse.
Enfim me levanto, pego minha mochila e saio, Bruna faz menção de dizer algo, mas não espero para ver o que é, preciso validar meu direito por justiça.
🌻🌻🌻
A sala de aula está completamente vazia, nenhum aluno questiona mesmo a nota do Arthur. Ou estão todos satisfeitos, ou acham que não vale a pena.
Que seja! Conheço meus direitos.
Estava me virando para ir à sala dos professores quando esbarro com o responsável pelo turbilhão dentro de mim. Arthur.
— Ah, desculpe, estava mesmo indo atrás do senho...
— Senhor? Por favor, Maria, já disse que dispenso formalidades. — Arthur passa por mim com o habitual sorriso no rosto e o copo de café, que é seu vício.
Arthur me lembra muito meu antigo professor, Maciel, um cara arrogante que é consciente do charme que exala e da atenção que chama, mas, assim como era com aquele professor ridículo que quase molestou Sofia certa vez, esse professor igualmente ridículo não desperta nada em mim. Nada de que me orgulhe, pelo menos. Principalmente porque sei que ele gosta de ter casos com alunas.
Ridículo!
É, ele desperta nojo, afinal.
Arthur se senta em sua mesa e fica me olhando com a sobrancelha erguida enquanto sorve um pouco do seu café. Sua aparência realmente é muito chamativa no auge dos seus 30 anos, alto, barba bem feita, loiro e de olhos verdes bem escuros, no entanto, o que me chama mais atenção é a escuridão que seus olhos demonstram. Uma alma suja.
— Você veio aqui só para ficar me olhando, querida? — Ele diz de repente. — Já está lamentando o final do semestre?
— Com certeza não — digo me aproximando da sua mesa, ficando de frente para ele —, vim aqui entender minha nota. — Arthur olha para o papel em minha mão, o boletim, no qual estão todos os 10 que tirei no semestre e o 8 que ele me deu.
— E o que há para ser entendido? Creio que o 8 está bem desenhado nesse papel. Aliás, acredito que saiba que as notas estão no portal e não há necessidade de imprimi-las... — debocha, o cínico.
Qual o problema das pessoas com o papel impresso?, penso lembrando do que Manu dissera há pouco.
— Eu gabaritei sua prova — ignoro sua provocação — e apenas gostaria que me dissesse o porquê do meu trabalho valer apenas 1 ponto dos 3 que valiam.
— Maria — Arthur pronuncia meu nome com um sorriso —, você é a melhor aluna da classe, como bem sabe, mas não acha que está exagerando nesse negócio de ser nerd? Você tem um 8, está acima da média.
— A questão não é a média, professor. A questão é o merecimento da nota e a base da avaliação para tal. Porque, modéstia à parte, meu trabalho estava muito bem feito e ortograficamente correto, com coerência, coesão e...
— Maria! Que assunto mais desgastante! — Ele me interrompe. — Você quer arrumar confusão por causa de um oito?
— Não, quero saber por que mereci um oito! Tem alguma coisa a ver com o fato de eu ter escrito o nome de Deus?
— Onde você quer chegar? — Ele questiona, me olhando fixamente.
— Exatamente onde cheguei. Minha nota é essa por que o senhor é ateu e professei minha fé em Deus em um trabalho de opinião livre?
— Por acaso está me chamando de intolerante religioso? — Arthur aumenta relativamente sua voz.
— Em nenhum momento disse tais palavras, professor. Foi o senhor que acabou de dizê-las — respondo sem me deixar intimidar.
— Está querendo transformar isso em uma cena de filminho gospel? — Arthur ri em total desprezo.
Ah, então quer dizer que ele conhece "Deus não está morto"?
— A vivacidade de Deus não está em questão aqui, professor. Muito menos minha fé nEle ou a falta da sua. A questão é que sei que meu trabalho vale mais que 8, entretanto, vim aqui para que o senhor me explique o porquê dessa nota. Explique-me e a aceitarei de bom grado, caso ela seja realmente justa. — Ofereço-lhe meu melhor sorriso e espero pela resposta malcriada. No entanto, sou presenteada com um sorriso enorme enquanto ele se levantava e me encara mais de perto.
— Talvez você queira apenas um pouco mais da minha atenção. Talvez uma atenção depois do horário acadêmico. — Arthur ia passar sua mão imunda em meu rosto, mas a afasto com um tapa estalado e meus olhos ardem de raiva.
— Não ouse me tocar, seu imundo! Se não tem uma explicação plausível para me apresentar, então espero uma nota modificada da próxima vez que entrar no portal!
Eu ia saindo da sala, pisando com toda força, quando ouço meu nome.
— Não espere por nada, cristãzinha de merda! Somente um milagre me faria sequer pensar em considerar aquele seu sermão de missa um trabalho digno do Ensino Superior. — Ele cospe com todo o desprezo que é capaz de externalizar.
— Isso não será um problema.
— Como disse? — Arthur pisca, esperando uma resposta.
— Exatamente o que ouviu. Meu Deus é especialista em milagres, então, isso não será um problema.
Saio da sala a tempo de ouvir a risada amarga do Arthur.
Deus, o que foi isso?
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