Treze
EDUARDO
Maria e eu compramos sorvete de ninho trufado e ela realmente fez brigadeiro, deixamos no congelador enquanto devoramos nossa delícia gelada. Foi bom termos vindo pra cá, estamos na sala e minha mãe ainda não chegou com Felipe. A loirinha ficou um pouco receosa de início, acho que por estarmos sozinho e também porque ela quase não veio a minha casa no tempo de escola — geralmente nos encontrávamos na casa do Bem —, mas agora está mais tranquila, tanto que me pergunto se não é melhor que ela nem toque no assunto que tanto a chateou.
— Obrigada por isso, Edu. Muito obrigada mesmo. — Ela fala de repente. — Sabe, com Sofia na Alemanha e uma vida na capital agora, fica bem difícil enfrentar todos esses problemas sem ter ninguém pra conversar.
— Bom, não sou uma Sofia da vida, mas meus ouvidos estarão sempre dispostos a te ouvir — gracejo. — E eu te entendo bem, sinto muita falta do Ben e, ao contrário de você, não tenho uma vida na capital, continuo com a mesma vida por aqui. — Minha fala está carregada de ironia e ela sabe disso, tanto que sorri.
— Bom, não sou um Ben da vida, mas meus ouvidos estarão sempre dispostos a te ouvir. — Ela me imita descaradamente.
— Ah, aposto que será o máximo falar com você sobre cada sereia que pousar em minha rede! — descontraio e arranco uma careta seguida de uma risada.
— Ai, Edu, isso é jeito de falar?
— Ué, e quer que eu fale como?
— Poderia só dizer que quer falar sobre seus relacionamentos...
Dessa vez quem faz a careta sou eu.
— Ok, sorvete, brigadeiro e relacionamentos já demais pra mim. Daqui a pouco terei meu nome no clube da Luluzinha... — levanto do sofá e vou até a cozinha para pegar o brigadeiro no congelador.
— Não seja exagerado. Nem machistas. Somos amigos, e amigos conversam. Independente de sermos homem ou mulher. Claro que não precisamos falar de tudo — ela acrescenta rapidamente —, mas sempre quiser, estou aqui por você, viu?
— Eu sei — respondo voltando para a sala. — E eu por você.
— Hã, Edu... — Maria se ajeita no sofá e fica bem hesitante. — Me desculpe por mais cedo, ok? Eu não tinha o direito de falar aquelas coisas daquele jeito.
— Tinha sim, quer dizer, tem. Não acabou de dizer que somos amigos? Amigos têm o direito de expor suas opiniões, eu só não gosto nem quero falar sobre esse assunto, principalmente agora. Então só vamos deixar de lado, ok?
— Ok. — Maria responde, mas está de cabeça baixa agora.
— Ei... — coloco o brigadeiro sobre a mesa de centro e me aproximo dela.
— Está tudo bem, quer dizer, vai ficar. — Sem pensar muito, puxo Maria para um abraço meio desengonçado, do jeito que o sofá permite e ela também.
Abraço-a por uns segundos até perceber que ela está chorando. De fato chorando. Automaticamente me obrigo a pensar no que posso fazer para ajudá-la, mas nada me vem à cabeça. Ela chora baixinho, de um jeito contido com a cabeça sobre meu ombro, apenas acaricio seus cabelos dourados até que me lembro de algo e respiro fundo antes de começar a cantar:
Se as águas do mar da vida quiserem te afogar
Segura na mão de Deus e vai
Se as tristezas desta vida quiserem te sufocar
Segura na mão de Deus e vai
A primeira estrofe é o suficiente para que seu choro se intensifique. Preocupo-me e estagno, mas sua voz sussurrante me pede para cantar o refrão e assim o faço. E num momento ela estava chorando sofregamente e num outro, sorrindo. Sem entender nada, apenas olho para sua face enquanto ela passa o dorso da mão sob os olhos e bochechas.
— Edu, Deus te usou tão lindamente agora.
— Deus? Ele me usou? Como assim? — Estou confuso e perplexo, afinal, por que Deus usaria logo a mim?
— Sim, você. Você foi ótimo comigo hoje, mas esse momento, esse hino, era tudo que eu precisava ouvir. Obrigada por isso.
— Nã-não me agradeça. Na verdade, é o único hino que eu sei cantar direito.
— E era exatamente ele que eu precisava. E Deus usou você e sua bela voz, aliás.
Fico sem graça. Sinto as bochechas quentes. Não pelo elogio a minha voz, ela já me ouviu cantar, inclusive esse hino, mas pelo fato de ela dizer que fui usado por Deus. Como poderia? Um cara todo errado como eu poderia ajudar alguém como a Maria? Que serve a Ele de verdade?
— Eduardo. — Maria me chama, de um jeito bem sério. — Deus não está interessado com o que você fez ou até faz agora, Ele sabe Quem Ele é, e sabe para o que te escolheu. E hoje foi só um vislumbre do que Ele pode e vai fazer através de você.
Maria disse que fui usado por Deus para ela, mas depois de ouvir isso, sinto como se ela é quem estivesse sendo usada em todo o tempo aqui.
***
MARIA
Já faz mais de duas semanas que cheguei e tudo tem sido muito diferente do que imaginei. Nesse meio tempo em que estive em casa, não aconteceram os momentos que esperava de matar a saudade dos meus pais ou curtir com eles enquanto não tenho que voltar para a faculdade. Na verdade, o que tenho vivido é ver meu pai definhando sobre uma cama, tornando-se apenas uma sombra do homem que ele costumava ser. E minha mãe, por consequência, extremamente cansada por ter que fazer tudo sozinha pela casa e ainda cuidar dele. Isso está muito longe do que imaginei encontrar em casa.
Estar com Edu na sexta foi uma grata surpresa. Ele conseguiu espantar os fantasmas dos meus problemas e me fez rir, gargalhar. Depois que a mãe dele e Felipe chegaram ainda, dona Carla me tratou com muito carinho e me deixou bastante sem graça com os elogios também. Felipe, então, parece que começou a se soltar comigo, está mais à vontade e com uma desenvoltura típica da puberdade. O rapazinho está se tornando tão galante quanto o irmão é, tenho até dó das meninas dessa cidade com esses dois por ai...
Depois de ter ficado um pouco mais na casa do meu amigo e não ter trabalho em nada do seu projeto, combinamos de nos encontrar amanhã, segunda-feira, para enfim trabalhar no jogo. Tem sido um desafio e tanto, mas estou amando.
— Bom dia, filha. — Mamãe me cumprimenta ao aparecer na cozinha. Acordei bem cedo hoje por ter perdido o sono, então vim aqui fazer um café pra mim.
— Bom dia, mãe.
Ela não diz mais nada, eu também não. Na verdade, ontem eu passei quase o dia inteiro no quarto lendo, depois de sexta, tudo tem estado ainda mais estranho.
Antes de ir me encontrar com Edu, acabei tendo uma grande discussão com meu pai. Não queria acusá-lo de nada, apenas pedi para que ele se esforçasse um pouco para sair do quarto e ao menos comer com nós duas, falei sobre o quanto mamãe estava cansada e ele acabou achando que estava me excedendo e começou a falar sobre os problemas daqui não serem mais meus problemas, uma vez que escolhi estar em outro lugar e não apareci por 2 anos. Foi nesse momento que decidi sair antes que tudo piorasse, e não falo com ele desde então, fiquei apenas em oração, entreguei tudo nas mãos de Deus.
— Você vai à igreja hoje? — Minha mãe pergunta de repente.
— Vou sim. Talvez eu vá mais cedo, tia Angélica me convidou pra cantar no coral enquanto estou aqui, mas o ensaio é às 14h.
— Ah, eu gostava tanto de te ver cantando no coral. Vai sim, vai ser ótimo.
— Por que não vai comigo? — tento outro convite.
— Ah, querida, você sabe...
— É, seu sei. — Interrompo-a. — Mas mãe, são só duas horas de culto, você poderia ir e voltávamos bem rápido assim que acabasse.
— Não quero deixá-lo sozinho, Maria.
— Tudo bem, não insistirei — termino de beber meu café. — Acho que vou ficar um pouco no meu quarto, ok? Depois venho te ajudar com o almoço.
— Tudo bem, filha. Não fique com raiva de nós, tá bom? — Sua voz é em tom de súplica.
— Não estou, mãe. Não sinto raiva, eu só... Só queria poder fazer alguma coisa.
— Ore, minha filha. Apenas ore por ele, sua fé sempre foi grandiosa. — Dona Ana sorri pra mim. Seu semblante está tão cansado que até mesmo seu sorriso não é mais o mesmo.
Não digo mais nada, apenas solto um suspiro e concordo com a cabeça. E é isso mesmo que vou fazer, orar.
***
Passei grande parte da manhã orando em meu quarto. Eu me permiti chorar e me derramar aos pés do Senhor, deixei sobre Ele todas as minhas frustações e tristeza, entreguei tudo nas mãos dEle.
Quando se aproximava da hora do almoço, ajudei minha mãe a preparar algo rápido, depois comemos nós duas na cozinha e mais uma vez não vi meu pai. Fui ao ensaio do coral e fui muito bem recebida, ensaiamos os louvores do dia e tia Angélica me surpreendeu ao pedir que todos fizessem uma oração por mim.
Sei que muita gente sabe do problema que minha família está enfrentando, é um bairro pequeno e as pessoas comentam, mas aqui na igreja, pelo menos das pessoas que já falaram comigo, todo tratam a situação com muito respeito, eles não sabem de tudo profundamente, mas oram e desejam que tudo fique bem. Alguns até perguntam pelos meus pais e chegaram a perguntar se eu queria um culto no lar, fiquei de perguntar à minha mãe, tenho certeza de que seria maravilhoso, no entanto, foi só chegar a nossa casa e falar pra ela sobre a ideia que ela a vetou. Não que não quisesse, mas ela estava pensando no meu pai, que não queria ver ninguém. Toda essa situação mexe muito comigo.
E é por isso que saí de casa a caminho do culto um pouco triste, mas em oração e confiando no agir de Deus. Sei que Ele nunca abandona um filho Seu.
— Você tem uma voz maravilhosa, Maria. — Dona Madalena fala ao meu lado. O coral já teve oportunidade e o pastor Pedro está caminhando para a pregação, então me sentei pela nave da igreja, perto da senhorinha outra vez. — Eu queria tanto ver meu neto nesse coral, a voz dele é linda, sabe?
— Sei sim, já o ouvi cantando e concordo com a senhora.
— Ah é? Já ouviu? — O interesse da senhora é altamente renovado.
— Ele cantou no culto que fizemos para Sofia quando ela ainda estava em coma, lembra disso? — E com isso ocultei o fato de ele ter cantado pra mim na sexta.
— Ah sim, claro, claro. Ele comentou mesmo comigo que tinha cantado nesse dia. Meu menino sempre gostou muito da menina Sofia, se ela não tivesse se casado com o menino Benjamin, poderia até ser uma ótima esposa pro meu Dudu. — Dona Madá falou com tanta naturalidade que é nítido o quanto ela realmente quer casar o neto, independente de com quem, contanto que ela aprove. Isso me faz rir. — Mas parece que os planos de Deus pra ele eram outros. E Ele sabe o que faz, sempre sabe. Nessas horas, é ótimo que você ainda esteja solteira porque você é, sem sombra de dúvida, uma ótima candidata pra ser uma ótima esposa pra ele.
No mesmo instante deixo de rir e me engasgo com minha própria saliva. Dona Madalena sempre direta em tudo e não esconde seus planos, mas sua fala tão direta me desconserta ao ponto de estar tossindo igual uma louca agora.
— Você está bem, querida? — Ela tenta me ajuda, mas agradeço e dispenso, no momento só quero beber uma água respirar.
— Bom, meus amados. — Pastor Pedro fala ao microfone. — Agora vamos entrar no momento mais importante de todo o qualquer culto: a Palavra de Deus.
Saber que a pregação vai começar me faz desistir de levantar para beber água, dou graças a Deus que a tosse tenha diminuído, afinal, foi só pelo susto, então agora preciso me concentrar em minha Bíblia e no que o Altíssimo falará através do pastor.
— Deus tem falado grandiosamente comigo através de uma passagem bíblica muito conhecida, e essa noite quero compartilhar com vocês. Por favor, abram suas Bíblias no livro de Gênesis 37, faremos a leitura de apenas um versículo, o 19, que diz assim: "E disseram uns aos outros: Eis que vem o sonhador-mor!".
O pastor fecha sua Bíblia sobre o púlpito, e direciona seu olhar para toda a igreja. Ele parece olhar para todos os cantos, para todos os presentes.
— A história de José é conhecida, seja cristão ou não, sabemos a história do jovem sonhador que revelou aos seus irmãos e pai sobre os sonhos que teve e que não foram apreciados, pois eram claro em sua interpretação, eram sobre José governando. Seus sonhos não eram apenas sonhos, eram uma visão do que Deus faria, do que estava planejado para José. O jovem ainda não sabia, seus irmãos não sabiam, seu pais não sabia, mas Deus sabia. Ele sempre sabe.
As palavras do pastor penetram meu ser.
— José foi escarnecido. Ele foi vendido. Foi tentado. Foi preso. Foi esquecido por homens. No entanto, tudo que aconteceu com ele já estava escrito, tudo fazia parte de sua história, tudo era uma passagem para o destino que tinha lhe sido designado. Não foi fácil, não foi rápido e, por vezes, até tenha sido algo que fizesse José desacreditar dos sonhos que teve, mas no final, ele governou não só sobre os pais e irmãos, mas sobre todo o Egito e mais. O que você está passando agora pode ser algo muito diferente do que esperou que fosse acontecer em sua vida, talvez você questione se Deus ainda está presente ou se foi Ele mesmo quem permitiu certas coisas, e saiba de uma coisa: Ele nunca perdeu o controle, Ele sabe de tudo e sabe onde tudo vai chegar, pois foi Ele quem desenhou todas as estradas.
Já não aguentando mais, chorei. Chorei por tudo, inclusive pela certeza de que Deus é incrível em todo tempo, e também com a confiança renovada sobre toda a situação.
— Não se desespere, apenas confie. Essa situação não vai durar para sempre. José esperou 12 anos até ver seu sonho se tornar realidade, mas nunca se esqueça de que mil anos para Deus podem significar 1 dia. E você pode ser esquecido pelo copeiro ou padeiro, mas Deus nunca se esquecerá de você. E Ele sempre sabe o tempo certo de agir.
Ainda concentrada na pregação e atenta ao falar de Deus, demoro a me tocar que meu celular está vibrando em minha bolsa. Reflito um pouco mais e sorrio ao pensar no quanto Deus é magnânimo por me dar a honra de ouvi-Lo quando o celular toca novamente. Pego-o na pequena bolsa que trouxe hoje, contrariada e pronta para desliga-lo quando vejo que é chamada do meu pai. Indo contra ao meu desejo, levanto-me no meio da pregação para atender o celular lá fora.
— Alô — digo sem saber se é meu pai ou minha mãe.
— Maria! — É meu pai. — Desculpa te ligar no meio do culto, mas eu não sei o que fazer.
— Pai, fica calmo e me diz o que está acontecendo.
— É a sua mãe. — Meu coração para. — Maria, ela não está me respondendo, acho que desmaiou.
— Já estou chegando aí.
Sem pensar muito, apenas desligo o telefone, volto para dentro da igreja pra pegar minha bolsa e a Bíblia. Trouxe algum dinheiro, então decido chamar um carro pelo aplicativo pra chegar mais rápido.
— Maria, está tudo bem? — Dona Madalena pergunta o ver pegando tudo com pressa.
— Eu preciso ir, dona Madá. Desculpe, não preciso falar agora, preciso chamar um carro. — Recebo alguns olhares no processe de pegar minhas coisas de modo bastante agitado, a pregação não acabou, então há um grande silêncio além da voz do pastor.
— Não, querida. Não chame carro nenhum, se precisa ir, então o irmão Elton te leva.
Já estava pronta para recusar por não querer tirar o irmão do culto no meio da pregação, mas a senhorinha se levantou mais rápido do que consegui falar e foi em direção ao irmão em questão, ele estava próximo à porta. a senhora trocou duas palavras com o irmão, que já estava de pé quando cheguei perto deles.
— Vamos lá, Maria. Dona Madalena disse que é urgente.
— Claro que é urgente, nossa Maria não sairia no meio da pregação assim. — Ela fala como se me conhecesse a vida toda. E conhece, na minha vida em Cristo.
— Obrigada, de verdade. Se não se importa, preciso muito chegar a minha casa.
— Vamos lá.
Sigo para o carro com o irmão Elton, quero estar logo com meus pais, contudo, dentro de mim, Deus já falou que tudo isso faz parte do Seu agir. Posso estar agitada pela situação, mas com certeza não estou desesperada. Não poderia. Não quando Deus falou ao meu ouvido de que Ele está orquestrando tudo.
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