Dois
EDUARDO
Se estivesse na época da escola, nunca teria me imaginado no que tenho vivido hoje. Nunca mesmo.
Quando comecei a estudar as matérias de exatas com Ben, ele não levou muita fé que estava estudando de verdade até que comecei a surpreendê-lo com minhas notas. Depois que Sofia acordou do coma e todo aquele pesadelo ficou pra trás, pudemos nos concentrar nos estudos e caí nos livros com meu brother até começar a entender tudo que precisava saber sobre os números. E Ben era fera demais. Não é à toa que o cara conseguiu uma bolsa na Alemanha junto com Sofia para Medicina. Ele é um gênio e nunca vou me esquecer de tudo que ele fez por mim.
Sempre soube que queria fazer algo relacionado a games, na verdade, até pensei em ser profissional em jogar o dia inteiro, mas então, minha mãe me colocou na Orientação Profissional que o psicólogo da escola estava oferecendo e descobri que mais interessante do que jogar era fazer os jogos. E não somente isso como também entender as máquinas que operam os jogos para nós. Foi quando descobri a Engenharia de Software. E estou apaixonado. Completamente apaixonado. Estou terminando a metade da faculdade e já estou pensando em qual pós-graduação vou cursar.
Conciliei um curso técnico de Tecnologia da Informação com a graduação e acabei de concluí-lo. E sim, acabei me tornando um nerd da computação. O que posso fazer? Eu amo máquinas! Descobri essa paixão e não consegui mais parar. A mistura das letras, números e símbolos faz meus olhos brilharem. Simplesmente criei um fascínio pelos códigos.
No curso que fiz, acabei conhecendo um professor muito fera, muito mesmo. E ele sempre me disse que me achava um prodígio e queria explorar meu talento. E eu, por minha vez, sempre achei que fosse algo que falasse para todos, no entanto, ele me fez uma proposta fantástica e vibrei com tudo que tinha dentro de mim. Maurício simplesmente me chamou para ser seu auxiliar no campus da faculdade que fica na capital! Além da chance de estudar na melhor faculdade de Engenharia de Tecnologias do estado com uma bolsa integral, ainda disse que tenho a esperança de um emprego como professor!
Só de poder finalizar meus estudos na Engenharia de Software lá já é um sonho. Foi aí que realmente soube que ele me via com outros olhos e me achei o cara mais sortudo da face da terra! Era como se um olheiro em busca de um bom jogador para seu time e queria muito fazer parte desse time. Queria muito mesmo!
É claro que ainda não falei com minha mãe sobre isso. Não que eu precisasse exatamente de permissão dela, afinal, já tenho 20 anos e também é realmente uma proposta irrecusável. Só que não consigo não pensar que minha mãe vai se apertar ainda mais por eu sair de casa, já que meu pai também se foi. E ainda tem meu irmão. O moleque é irritante até o tutano, mas também é o carinha que me procura quando quer ter uma conversa de homem pra homem, mesmo que ele ainda tenha apenas 13 anos.
O cara que se diz meu pai é muito ocupado para ter qualquer tipo de conversa com meu irmão e eu — não que me importe, de qualquer forma — já não preciso dele, mas seria legal meu irmão ter um pouco da atenção que procura nele.
Só um pouco de atenção ao filho caçula não vai fazer dele um homem menos rico, ou vai? Porque é só com isso que ele se preocupa, apenas com seu dinheiro. Dinheiro que ele ganhou fazendo um monte de pessoas de trouxas, inclusive o finado marido da sua atual namorada. Uma garota que não é muito mais velha que eu e que está acostumada a estar com velhos que a deem o que ela quer: dinheiro.
Meu pai é advogado. Dos bons, devo dizer. O problema é que esse "bom" dele não é no bom sentido. Já faz alguns anos que ele saiu de casa. Simplesmente traiu minha mãe e depois disse a ela que a única culpada era ela mesma, então, sem mais nem menos saiu de casa para viver com sua amante que agora é sua atual namorada e, ironicamente, era a viúva de um cliente que ele ajudou a ferrar com a vida. Mais um, quero dizer.
Henrique Carvalhal é um pilantra, mau caráter, mas, infelizmente, é o único pai que tenho, mesmo que me recuse a usar seu sobrenome, prefiro usar apenas o Palhares da minha mãe porque ela sim é um exemplo de mulher, um exemplo de mãe. Porém, o traste também é o único pai que meu irmão tem também. E ele sente falta do pai.
Depois que conheci Benjamin, um cara que enfrenta a saudade de um pai morto, percebi o quanto sou um bosta por sentir saudade de um pai que ainda está vivo, mas é tão ausente quanto como se estivesse morto. Ben pelo menos tem as lembranças boas, os ensinamentos que seu pai o deixou e o amor que ele sabia que o pai sentiu até seu último suspiro. Já eu, tenho apenas a raiva e a decepção. Talvez fosse menos doloroso se ele tivesse morrido mesmo.
Não, apaga! Seleciona a informação e deleta.
Enfim, preciso bolar um jeito de contar para minha mãe sem que ela tenha um ataque cardíaco ao tentar me convencer que devo ir viver minha vida e não me preocupar com ela ou com meu irmão. Vou pensar em alguma coisa, tenho dois meses para pensar nisso e também resolver sobre tudo que vou precisar na capital. Não verdade, tenho dois meses para decidir se vou conseguir deixar minha mãe e meu irmão por aqui. E se eu não conseguir, como vou fazer minha mãe entender que ela não tem culpa de nada? Porque, diferente de outras preocupações, a minha é a que minha mãe me deixe ficar, caso eu escolha não ir. Só que quero muito ir.
Ah, Ben, como você faz falta nessas horas, cara!
Na verdade, sinto falta de ter realmente alguém para conversar. Alguém com quem eu possa ser eu mesmo por inteiro e não só a parte divertida que chama atenção de todo mundo. Porque, ultimamente, não tem sido tão fácil como costumava ser no Ensino Médio. Não mesmo. Não tem sido fácil ser o brincalhão da turma que faz piada com qualquer coisa. A vida me deu uma rasteira e parece não ter mais tanta graça assim. Pelo menos não depois que meu pai resolveu que para sua "nova vida" a "vida antiga" não poderiam coexistir. Aquele papo de "me separei da sua mãe, mas continuo sendo pai de vocês" já nem existe mais. Não que me importe, é claro, mas meu irmão se importa. Ele se importa até demais.
Chego a minha casa e sinto o familiar e suculento cheiro de lasanha, algo que minha mãe faz como ninguém.
— Mãe, cheguei! — grito para ela, que provavelmente está na cozinha.
Já estava subindo para o meu quarto quando ouço sua voz me chamar. Desço os degraus e a encontro encostada no balcão com o pano de prato sobre o ombro.
— Você não tem nada para me contar, Eduardo? — Ela pergunta com uma expressão séria.
Ok, já tenho 20 anos, mas ouvir minha mãe falar com essa voz, essa expressão e ainda me chamar pelo nome e não pelo "Dudu" de sempre faz com que eu trema na base.
— Mãe, seja lá o que falaram, não fui eu. Eu juro. Tenho sido responsável e tudo mais, juro por De...
— Dudu, não é nada disso! — Ela sorri de um jeito doce. Solto um suspiro tão alto que seu sorriso se transforma em uma risada. — Seu professor Maurício me ligou. Ele queria falar com você.
Aquele fofoqueiro!
— O que ele queria? — pergunto só por perguntar. Tenho certeza de que minha mãe já sabe sobre o estágio e a bolsa.
— Queria saber se você já tinha me contado o que disse para ele que iria me contar. — Minha mãe levanta uma sobrancelha para deixar claro que está esperando que eu explique o porquê de não ter contado.
Eu não sei explicar. Ou talvez apenas não queira que minha mãe saiba disso, mas ela sempre sabe.
— Dudu, meu amor. Essa oportunidade é boa demais para que você a perca.
— Eu sei, mãe. Mas como vou para a capital e deixar a senhora e Lipe sozinhos?
— Indo, oras! — diz um tanto brava — Você não é responsável por mim ou por seu irmão. Você é responsável por si mesmo e merece realizar seus sonhos.
— Eu me sinto responsável, mãe. Sou seu filho mais velho. Sou o irmão mais velho do Felipe. Não posso permitir que vocês não tenham uma boa vida por culpa daquele canalha do Henrique.
— Eduardo, ele ainda é seu pai. Independente de qualquer coisa, ainda é seu pai. — Minha mãe fala com pesar.
— Ele não faz nada para que ganhe o título de pai, não tem meu respeito como pessoa muito menos minha admiração. — Faço o caminho de volta para a escada, mas ainda consigo ouvir minha mãe pedir em voz baixa para que Deus me perdoe.
Não sou eu quem precisa de perdão!
Subo apressadamente as escadas e jogo a mochila sobre a cama. Daqui a pouco Felipe chega e não é bom que ele veja que mamãe e eu estávamos discutindo por causa daquele que ele ainda chama de pai. O moleque merece crescer acreditando na honestidade dos outros, porque eu mesmo já não sei nem mais o que é ser honesto ou não. Não quando se trata do Henrique.
🌻🌻🌻
MARIA
— Quando é que você volta mesmo? — Bruna me pergunta pela milésima vez.
— Um pouco antes das aulas recomeçarem, por quê?
— Mas isso é muito tempo! Vou morrer de fome!
Não consigo não rir com todo o drama que ela vem fazendo desde que eu disse que ia passar as férias com os meus pais. Bruna não sabe fritar um ovo sem sujar todo o fogão e ainda ter algo queimado para comer. Manu se vira na cozinha, mas como é vegetariana, sua comida é baseada em legumes e verduras — sem falar no tofu ocasional que, meu Deus do céu! Bruna, por sua vez, é do tipo que acha que comer legume significa comer uma batata frita e verdura é a alface dentro de um podrão.
— Bruna, sua prima sabe cozinhar e você pode comprar o que sempre compra. — E com isso quero dizer qualquer coisa que fique pronto através do micro-ondas.
— Mas até sua lasanha consegue ser melhor do que as que eu compro. E ainda não achei nenhum lugar que faça um risoto como o seu. Maria, você vai me deixar desfalecer de fome?
Gargalho mais uma vez. O drama da Bruna é tão elaborado que ela deveria ter seguido a carreira de atriz.
— Bru, já faz 2 anos que não vou a minha casa, preciso mesmo ir. De verdade. E já deixei algumas coisas congeladas para que você coloque no micro-ondas, melhor assim?
Ela assente dando uns pulinhos e correndo para me abraçar. Faz um elogio exagerado e corre para o banheiro. Hoje ela vai sair com uns colegas da faculdade e já está atrasada.
Eu também estou. Muito atrasada, por sinal. Continuo arrumando minha mala para correr para o aeroporto, preciso chegar em meia hora ou perco o voo.
Graças a Deus que ele fica só a 15 minutos daqui! Mas, não é por causa disso que posso abusar do horário, não é mesmo, dona Maria?, brigo comigo mesmo.
Termino de arrumar tudo rapidamente e vou até o quarto das meninas para me despedir da Bruna. Manu já saiu há tempos e nos despedimos mais cedo. Bruna ainda está enrolada na toalha e vem me dar mais um abraço de urso.
— Por favor, volte o mais rápido que puder!
— Pode deixar!
Eu a abraço mais uma vez e saio em busca de um táxi.
🌻🌻🌻
N
unca tive medo de altura. Nunca mesmo. Altura nunca foi um problema para mim, mas agora, ao olhar pela janela do avião depois que ele já decolou, sinto um frio na barriga, um calafrio estranho e uma sensação de medo me alcança. E o pior é que sei que não é por medo da altura que o avião está, mas pelo destino que esse avião está me levando.
Não estou com medo de casa necessariamente. Nem mesmo estou com medo de voltar, contudo, não consigo entender o porquê de estar morrendo de medo de alguma coisa sobre essas férias. Como se elas fossem um marco de alguma coisa ou como se algo já estivessem me esperando.
Eu não sei. Não faço a menor ideia do porquê desse medo estar me abatendo, mas preciso enfrentá-lo. Preciso confiar no Deus que eu sirvo e crer que Ele não vai deixar que nada de mal me aconteça. Sei que Deus tem o controle do tudo e qualquer coisa que Ele permita será porque Ele já tem um propósito para isso. Tenho total certeza disso. Pelo menos é o que fico repetindo para mim mesma enquanto o avião segue seu rumo.
Esses são definitivamente os 45 minutos mais demorados de toda a minha vida.
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