CAPÍTULO IX
A viagem de duas horas e meia entre Arraial do Cabo e o Rio de Janeiro foi feita por Manuela no mais completo silêncio, sentia os olhares de sua mãe, que sentada ao lado do marido na poltrona do outro lado do corredor ficava monitorando o estranho comportamento da filha que olhava frequentemente pela fresta que abria na cortina da janela do ônibus, para em seguida se afundar o máximo que podia no assento que ocupava.
Manuela tentou agir o mais normalmente possível levando em consideração o terror que a dominava, sua cabeça estava a mil, as mãos apertavam compulsivamente a bolsa em seu colo, angustia apertando seu coração. Não conseguia parar de pensar no que havia visto, quanto mais pensava menos entendia.
O que Leon havia feito com ela? Que estranha "marcação" era aquela? Ainda sentia dolorido e ardendo o local em que ele fizera o esquisito contorno com o dedo, era como se tivesse sido atravessada por um raio que a queimou profundamente, a lembrança da dor excruciante a apavorava, assim como o temível arco dourado que cercavam a íris dos olhos cor de avelã os transformando em um facho de luz cegante.
O que ele era? Não podia acreditar que fosse humano, pelo menos não completamente, não conhecia nenhum homem capaz de fazer algo tão assustador sem a ajuda de efeitos especiais e por mais que quisesse fazer de conta que tudo não passara de uma bizarra brincadeira de Leon, a realidade era evidente demais para ser ignorada. Ele havia entrado em seu quarto sem que o visse, de uma forma que ela nem fazia ideia qual foi, pois tinha deixado à porta e a janela trancada antes de dormir.
Até então o surgimento surpreendente dele em seu quarto de hotel era sua principal preocupação e desconfiança, mas depois daquele incidente fora do normal todo o resto eram apenas detalhes insignificantes.
Ele não havia mudado de fisionomia durante o aterrorizante evento, não lhe cresceu pêlos no corpo ou surgiram presas, nem lhe nasceu chifres e um rabo, mas decididamente ocorrera algo de outro mundo naquele quarto e não estava se referindo ao orgasmo alucinante que ele lhe proporcionou com a boca.
Não queria acreditar no sobrenatural, no extraterreno, era uma mulher de fé, mas coisas que a ciência não podia explicar nunca tiveram sua total credibilidade, não era dada a crendices e misticismos, no entanto nada do que conhecia até aquele momento conseguiria justificar o que tinha acontecido. O que ele era e o que queria com ela eram perguntas recorrentes em sua mente, não queria nem pensar nas consequências que isso teria sobre sua vida.
O ônibus de turismo estacionou em uma rua estreita próxima ao Cristo Redentor na qual vários carros já estavam estacionados, teriam que andar um pouco, uma vez que os estacionamentos mais perto da atração turística já estavam lotados, os passageiros empolgados começaram a descer nem bem o veículo parou, todos ansiosos para conhecer o famoso ponto turístico, nenhum pouco preocupados com o percurso que fariam a pé.
Quando seus pais desceram Manuela tratou de juntar-se a eles, andando ao lado deles enquanto olhava vez ou outra para os lados e para trás temendo encontrar um homem alto de olhos claros espreitando por entre a multidão.
- Filha, está tudo bem? – Questionou dona Joana com o cenho franzido de preocupação.
- Está sim. – Se apressou em confirmar.
- Então por que está olhando por cima do ombro como se estivesse com medo de encontrar uma assombração? – Insistiu desconfiada.
- Assombração? – Manuela sorriu sem graça. – Claro que não! Só estou olhando a paisagem, tudo é tão bonito por aqui.
- Manuela eu não nasci ontem! – Repreendeu em voz baixa para que seu Damião não ouvisse.
- Que bobagem mamãe! Está tudo bem. – Sorriu com uma confiança que estava longe de sentir.
- Sabe que pode me contar qualquer coisa, não é? – Abraçou-a beijando-lhe o rosto. –Sei que você acha que porque já é adulta tem que resolver tudo sozinha... Mas somos e sempre seremos sua família, os seus problemas são nossos problemas. – Assegurou.
- Eu sei mamãe. – Garantiu retribuindo o abraço. – Vocês são minha fortaleza, são a metade mais bonita de mim.
- Ah agora vai me fazer chorar! – Disse em tom de brincadeira, mas seus olhos estavam marejados. – Assim você consegue escapar das minhas perguntas... Conheço seus truques mocinha!
- Realmente, a senhora me conhece muito bem! – Manuela riu divertida, dando-lhe um beijo na testa. – Mas, ao invés de se preocupar comigo, deveria estar de olho no papai que já está sendo cercado pelas oferecidas. – Gracejou apontando em direção ao pai que estava em uma conversa animada com duas senhoras que faziam parte da excursão.
- Essas... – Dona Joana olhou com cara feia em direção ao marido que entretido na conversa nem percebeu. – Voltamos a essa conversa depois. – Avisou séria. – Agora deixa eu ir resgatar seu pai.
Manuela caiu na risada ao ver a mãe marchar decidida em direção ao seu pai afugentado às animadas mulheres em segundos com sua expressão feroz.
A visão do Cristo redentor a deixou de boca aberta, era simplesmente magnífico e a sensação de estar em sua presença era como se de fato estivesse diante de Deus, várias pessoas subiam as escadarias e se aglomeravam aos pés da imagem do Cristo que abençoava o Brasil, recebendo visitantes do mundo inteiro de braços abertos.
Sua mãe abraçava seu pai em uma pose para mais uma foto que sua cunhada se preparava para tirar, seu irmão acompanhava a cena com um sorriso divertido, apreciando a interação entre os três, Manuela se dividia entre observar as atividades de seus familiares e as pessoas ao seu redor, relaxar naquele momento era impossível, fazia o melhor para esconder seu nervosismo, mas a verdade é que nenhum passeio lhe parecera tão longo quanto aquele, a tensão de ficar vigiando qualquer pessoa que se aproximava estava lhe dando uma dor de cabeça que aumentava rapidamente.
Só queria voltar para o hotel, mudar de quarto para não correr o risco de voltar a ter visitas inesperadas e se trancar lá dentro até a hora de irem embora no dia seguinte, precisava de tempo para assimilar o que tinha acontecido aquela manhã, para encontrar alguma lógica, porque agora que não sentia mais a dor e a queimação no local onde Leon fizera o desenho invisível com o dedo, ficava se perguntando se não fora tudo fruto de sua imaginação.
Tinha que ser um delírio, pensou vendo sua mãe acenando para ela e pedindo que todos os Cavalcante se juntassem para uma foto de família, se reuniu a eles tentando dar o seu melhor sorriso, enquanto seus olhos vasculhavam a multidão mais uma vez, um desconhecido com a câmera fotográfica de sua mãe eternizava aquele momento.
Sessenta minutos depois, que mais lhe pareceram dias ao invés de apenas uma hora, entraram no ônibus e começaram o percurso de volta a Arraial do Cabo, andaram alguns quilômetros parando em um pequeno restaurante na saída da cidade, fazia parte do itinerário pararem para uma refeição antes de seguir viagem, assim quando chegassem a Praia dos Anjos teriam a tarde livre para fazer os vários passeios que eram oferecidos ou só aproveitar sob a sombra de um guarda sol, deitado em uma espreguiçadeira apreciando a beleza daquele lugar paradisíaco para no dia seguinte logo cedo darem início a viagem de volta para casa.
Todos desceram e começaram a ocupar as várias mesas do lugar, Manuela e sua família encontraram uma confortável mesa de canto próxima a uma grande janela que dava para o estacionamento, seus pais apanharam o cardápio de apenas uma folha onde estavam descritas as opções de pratos para o almoço e começaram escolher entre a "grande" variedade de alimento oferecido.
- Vou ao banheiro. – Manuela avisou se inclinando levemente sobre a mesa para que sua mãe que estava do outro lado ouvisse sem que ela precisasse erguer a voz.
- Vou com você. – Falou sua cunhada levantando e seguindo Manuela até o pequeno cômodo nos fundos do restaurante.
Entraram a duas juntas no toalete, Manuela aguardou enquanto Alice usava o único reservado do cômodo apertado, virou-se para o espelho velho, meio fosco e com algumas machinhas preta no canto que lhe lembraram mancha senis, que ocupava a parede acima da pia de aspecto um tanto deteriorado, seu reflexo a encarava com olhos negros brilhantes, lábios rosados e cabelos loiros desgrenhados que lhe davam o aspecto de uma mulher que tinha feito coisas incríveis na cama, corou com a lembrança da boca de Leon e todas aquelas coisas que ele fez, envergonhada com as sensações e respostas que ele arrancava tão facilmente dela, a recordação umedecendo vergonhosamente sua calcinha, suas bochechas ficaram ainda mais vermelhas diante da constatação.
Abriu a torneira enchendo as mãos com água fria molhando o rosto para acalmar o repentino calor que aquecia sua pele. Leon era lindo, sensual, com uma conversa inteligente, um sorriso pecaminoso e um olhar capaz de deixar qualquer mulher de pernas bambas e não só isso pensou, erguendo hesitante o camisão indiano para olhar o local que ele havia tocado com o dedo desenhando o doloroso padrão.
- Meu Deus! - A voz assustada de Alice combinava perfeitamente com a expressão chocada de Manuela.
No local onde Leon fizera o bizarro procedimento havia dois desenhos, o primeiro em forma de oito na horizontal, que mais tarde viria saber ser o símbolo do infinito e acima desse uma espécie de arco, para completar a cota de estranhezas os símbolos não pareciam uma queimadura como poderia se imaginar em razão da dor e queimação que sentira, mas eram idênticos a uma tatuagem feita com uma tinta preta.
- Quando você fez essa tatuagem? – Perguntou sua cunhada admirada. – Que linda! Tão diferente... Sua mãe já viu? Sei que você não precisa de autorização para fazer o que quer que seja, mas não consigo imaginar dona Joana tão tradicional não pirando ao ver você com uma tatuagem, mesmo que pequena assim. – Disparou a falar.
Manuela nem a ouvia, seus olhos presos no pequeno desenho em sua pele, a mente entrando em parafuso. O que era aquilo? O que significava? Quem visse jamais duvidaria se tratar de uma tatuagem, parecia muito com um desenho já cicatrizado feito por um profissional, não parecia algo novo, feito naquela manhã. Largou a barra do camisão se protegendo dos próprios olhos e dos de sua cunhada, não fazia ideia do que era aquilo e não queria pensar sobre o assunto.
- Ela não viu, não é? – Insistiu Alice fitando Manuela com um sorriso cúmplice.
- Não. – Respondeu com um olhar vazio.
- Pode deixar, eu não vou contar. – Prometeu piscando para Manuela enquanto lavava as mãos na pia. – E você não é a única com segredos, sabia? - Empinou o nariz presunçosa. – Só que o meu eu não vou guardar.
- O que é? – Perguntou Manuela levemente curiosa.
- Não aqui. – Sorriu Alice divertida. – Vou contar para todos na mesa, por isso se apresse para voltarmos logo.
Manuela se adiantou, usou rapidamente o reservado, lavou as mãos e as duas voltaram apressadamente para a mesa onde seus familiares e os pedidos os aguardavam. Apesar da comida ser simples, um rodízio de carnes, arroz, feijão e salada, estava muito gostosa, mesmo nervosa com os acontecimentos do dia e curiosa sobre a revelação de Alice, conseguiu comer bem, quando depositou os talheres no prato após sua última garfada, ouviu sua cunhada pigarrear chamando a atenção de todos na mesa.
- Família, eu tenho um comunicado a fazer! – Disse Alice toda pomposa. – Nossa família vai ganhar mais um membro... – Dona Joana encarou a nora com o garfo a meio caminho da boca, seu Damião parou o ato de tomar um gole de suco com o copo ainda sobre os lábios, apenas Daniel permanecia comendo normalmente, totalmente alheio ao discurso da esposa. – Estou grávida!
O som de Daniel engasgando causou um ataque de riso em Manuela, a expressão de seus pais também era impagável, uma mistura de alegria e pânico, o sorriso de Alice diminua à medida que todos permaneciam em silêncio diante de sua grande revelação.
- Parabéns papais! – Falou Manuela rompendo o silencio e abraçando a cunhada e o irmão.
- Nós vamos mesmo ter um bebê? – Perguntou Daniel em um sussurro ao olhar surpreso para a esposa.
- Você não quer? – Indagou ela com voz chorosa, olhando para o marido por sobre o ombro de Manuela.
Daniel abriu um largo sorriso, levantou de sua cadeira dando a volta na mesa e abraçou a esposa enquanto dizia.
- É claro que eu quero meu amor, quero muito!
- Então está feliz? – Questionou insegura.
- É claro que sim minha vida! – Confirmou eufórico rodopiando com ela em seus braços. – O homem mais feliz do mundo!
- Me deixe dar um abraço na minha nora Daniel. – Pediu dona Joana se levantado e dando um abraço nos dois. – Que felicidade! – Exclamou a futura vovó com lágrimas de emoção marejando-lhe os olhos. – Seja bem-vindo meu anjinho. – Disse ela acariciando o ventre ainda esguio da nora. – Nós já amamos você.
Logo seu Damião se juntou ao abraço e todos falavam ao mesmo tempo sobre a felicidade de ter um neném para alegrar a casa. Aquele era o primeiro neto de seu Damião e dona Joana que não conseguiam conter sua euforia, assim como os futuros papais, era algo lindo de ver, constatou Manuela acompanhando-os de volta ao ônibus com um grande sorriso no rosto, a família Cavalcante estava crescendo e isso deixava a todos os seus membros muito felizes.
Ao contrário dos Cavalcante, o tempo parecia bem chateado, logo na metade do percurso o sol antes brilhante e caloroso, foi escurecido por pesadas nuvens de chuva que começaram a desaguar sobre a estrada em grossos pingos para se transformar em instantes em uma chuva torrencial, a água que caia do céu obscurecendo quase que completamente a visão do motorista do ônibus, os limpadores de para-brisas indo de um lado a outro freneticamente sem no entanto conseguir o seu objetivo de permitir uma visão mais nítida da pista a frente.
O motorista diminuiu a velocidade, acendeu os faróis, pois repentinamente parecia que o dia tinha virado noite, ligou o alerta e passou a manter uma distância maior do veículo da frente, o asfalto molhado constituía um perigo a mais, além do clima, dentro do ônibus um silêncio carregado de tensão. Mantiveram-se assim por alguns quilômetros quando inesperadamente um carro de passeio os ultrapassou pelo acostamento na contramão entrando imprudentemente a poucos metros na frente do ônibus, fazendo o motorista do veículo de excursão frear bruscamente para evitar uma colisão.
A traseira do ônibus derrapou indo parar na pista contraria por sorte não atingindo um automóvel que passava, o barulho dos gritos dentro do carro quase encobriram o apavorante som de pedras e terra rolando do alto do morro, mas Manuela ainda teve a visão sinistra de parte da grande elevação ao lado da estrada se desfazendo em lama, pedaços de árvore, mato e barro descendo furiosamente e os atingindo com força arrastando-os pelo restante da outra pista e lançando-os barranco abaixo.
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