Capítulo 62.
Aquela viagem não levaria mais de três horas de carro pela BR, mas mesmo que dessa vez soubesse exatamente para onde estivesse indo e supusesse os perigos que encontraria lá, preferi seguir a pé. Considerando que eu evitasse as estradas principais conforme me aproximasse da cidade, optando por seguir pelos campos e ruas secundárias, talvez conseguisse observar melhor a situação antes de ser vista.
Eu tecnicamente sabia o que encontraria, mas a verdade é que aquilo ainda me dizia muito pouco. Seguindo na direção da minha cidade natal, São Miguel do Oeste, agora eu me depararia com um local chamado Esperança, que contava com mais de dois mil sobreviventes atrás de uma área completamente cercada de quase 20 quilômetros quadrados — pelo menos, era o que Pantera e Igor estimavam. Aquilo era muito maior do que os dois bairros "seguros" onde se dividiam os 200 habitantes de Chapecó, e muito maior do que qualquer coisa que eu havia visto desde o começo do apocalipse. Se a cidade de Pantera se reerguia com certa dificuldade, era seguro esperar que lá houvessem hospitais e escolas a pleno funcionamento.
E seguranças, armas... e pessoas dispostas a apertar gatilhos.
Não achei que seria tão difícil dormir depois de sair de Chapecó, mas logo na primeira noite, os pesadelos voltaram. Dormir em um apartamento que se tornava familiar conforme os dias iam passando, ouvir sons durante a madrugada que indicavam que haviam outras pessoas (vivas) ali e acordar sabendo que, pelo menos, Samuel e Mei estavam a salvo... aquilo havia me desacostumado com o medo. Quer dizer, ele sempre estava presente naquele mundo, mas era diferente quando você começava a ver resquícios confortáveis do que era uma sociedade.
Por um lado, eu esperava que uma cidade grande como Esperança fosse segura para pessoas que chegassem precisando de ajuda e dispostas a fazer valer seu peso. Por outro, ainda era um lugar desconhecido. Um lugar de onde nenhum dos meus amigos retornou.
Se é que realmente chegaram lá, e não estavam mortos entre os inúmeros zumbis que encontrei nos últimos três dias de viagem.
Pensamentos como aquele eram tão frequentes quanto o meu afinco de lutar contra eles. Sempre que imaginava que corria atrás de cadáveres (mais uma vez), obrigava-me a lembrar que Leonardo estava vivo e seguro no hospital, junto com Paulina e Maitê. Samuel estava com a mãe em Chapecó. Que os Tormentas da Estrada estavam acampados em algum lugar de Santa Catarina, usando bandanas como a minha, e que elas eram a bandeira de uma nova era.
Obrigava-me a lembrar que havia esperança quando acordava de um pesadelo com o coração doendo no peito, em um lugar completamente desconhecido; uma casa empoeirada, uma loja de conveniência abandonada... então chamava Mei para mais perto de mim e ela se enrolava ao meu lado, a cabeça peluda pousada sobre o meu peito, como se quisesse me acalmar. Demorava um pouco, a ansiedade me torturava pelo tempo que pudesse apertar suas garras gélidas no meu peito, mas eventualmente minhas pálpebras pesavam. O tempo passava e eu conseguia cair no sono. Às vezes, apenas para acordar em algumas horas com outro pesadelo, mas outras... outras eu só acordava depois do sol nascer.
Então, me espreguiçava sob a luz do sol e assistia Mei imitando meu movimento, com um sorriso no rosto. Levantava-me e preparava um café com o pouco de pó solúvel que Carol havia me dado, então fumava um cigarro da cartela que Ana me estendeu depois que conquistamos o shopping center. Comia um pouco dos mantimentos que Samuel e Toni separaram para mim, e dava a ração que Pantera ofereceu para Mei. Então, colocava a mochila nas cotas e seguia viagem. Eu e Mei continuávamos. Havíamos nos tornado boas nisso.
Como estava optando por usar trilhas alternativas ao invés da estrada principal, onde qualquer guarda me avistaria há quilômetros de distância, a viagem durou um pouco mais, No quarto dia, estimei que chegaria em Esperança na manhã seguinte.
Conferi minha pistola pelo menos umas cinco vezes diferentes antes do sol brilhar no centro do céu, ansiosa com qualquer som, mesmo os galhos que meus próprios coturnos quebravam. Mei me circundava em seus passos largos, sempre atenta aos arredores. Sempre que vimos um zumbi, ela me alertava a vários metros de antecedência, com um rosnado baixo.
Já devia ser quase três horas da tarde quando um grunhido vindo do meu próprio estômago me sobressaltou, e finalmente lembrei que deveríamos parar para comer. Ainda estávamos andando em campos extensos nos arredores da estrada, mas começavam a aparecer algumas casinhas aqui e acolá. Decidi aproveitar a tranquilidade e a posição que nos dava vantagem sobre os arredores.
Ainda assim, afastei-me ainda mais da trilha quase apagada pelo tempo que eu e Mei seguíamos, até onde o mato alto nos oferecia cobertura e havia uma única árvore emprestando sua sombra. Estiquei a toalha de mesa que trouxe da última casa onde nos abrigamos, já que a minha mochila começava a se esvaziar conforme consumíamos os mantimentos pela viagem.
— Vamos comer, meu amor? — perguntei, não muito alto, e minha voz saiu áspera. Ultimamente, Mei era a única companhia e não era como se mantivéssemos longas conversas. Ainda assim, seu rabo balançou com o convite e ela sentou sobre a toalha.
Ri com a sua empolgação e separei nossos almoços; para mim, um pouco de pão, azeite e carne seca que me foram dados em Chapecó, e Mei ficou ainda mais eufórica quando puxei o saco de ração da mochila. Apesar de ser um saco comum, estampado com um Border Collie, a ração ali dentro era uma mistura caseira feita por Pantera. Como já estávamos há mais de um ano e meio no apocalipse, a maior parte das opções de comida para cães já estava vencida, então ela fazia uma receita própria para Lobo e havia me dado o suficiente para levar na viagem.
Abri o fecho hermético da embalagem e o cheiro forte de carne invadiu meus sentidos. Mei se empertigou, o rabo balançando de um lado para o outro enquanto eu observava as bolinhas de farinha e carne assadas. Estreitei os olhos e deixei a curiosidade falar mais alto, aproximando uma da minha boca para arrancar um pedacinho com os dentes. Então, fiz uma careta. Apesar de não ser ruim como ração industrializada, ainda era insosso e estranho.
Mei me encarava com as orelhas erguidas e a língua para fora, como se não entendesse que diabos eu estava fazendo.
— Você deve estar me achando maluca, não é? — falei. — Por favor, não conta pra ninguém sobre isso. Prometo não comer mais sua ração.
Gargalhando comigo mesma, joguei o resto da bolinha para ela pegar no ar e espalhei o resto do seu almoço no seu lado da toalha. Senti-me grata por ter a minha companheira ao meu lado.
Enquanto eu tateava a mochila em busca de água, senti o vidro frio da garrafa de vinho que Toni havia me dado, ainda fechada. Não havia tomado nenhum gole até então, ansiosa demais com aquela viagem para me permitir beber qualquer mísero gole de álcool.
Se eu conseguisse colocar meu plano em prática, seguiria até Esperança e esconderia minha mochila e os restos dos pertences antes de me revelar, e não havia a menor possibilidade de eu beber próximo ao anoitecer. Inspirei fundo o ar gelado do inverno, mas os raios tímidos de sol me impediam de sentir frio. Os campos de grama amarelada crescidos me davam cobertura, mas ainda permitiam que eu visse que não havia qualquer criatura viva ali, além de nós. Definitivamente não era a escolha mais sensata, mas me permiti aproveitar um copo.
Comi sentindo a brisa sacudir meus cabelos crescidos até abaixo dos ombros e o vinho morno esquentou meu corpo. Mei comeu sua ração, bebeu do cantil de água que eu tinha enchido e fervido na última chuva, depois se enrolou para tirar um cochilo próxima a mim. Ela parecia tranquila, mas qualquer sopro mais forte do vento já a fazia mover as orelhas e abrir um único olho para espiar, antes de fechá-lo de novo.
Abri um sorriso para ela e puxei assunto:
— Sabe para onde estamos indo, mana? — perguntei e Mei abriu os dois olhos. No topo de sua cabeça, havia uma faixa sem pêlos onde o puma havia arranhado. — Ver o Gui. Lembra dele?
Ouvir aquele nome a fez levantar a cabeça com as duas orelhas erguidas. Sorri ainda mais.
— Sim, o Gui! — falei e Mei sentou, aproximando-se de mim enquanto balançava o rabo. Conforme continuei falando, ela se levantou e veio lamber meu rosto: — Sim, ele! Nós estamos indo nos reencontrar com ele. E a Mel! A sua amiga Mel!
Mei começou a ficar eufórica e poderia ser tanto pelos nomes conhecidos quanto pelo tom animado que eu usava. Meu coração batia com força ao falar o nome deles, como se isso fosse capaz de materializá-los na minha frente:
— Sabe quem mais você vai ver de novo? — perguntei, diminuindo o tom. Mei fechou a boca e moveu as orelhas, como se mal pudesse conter a ansiedade. — A Vic!
Minha cachorra saltou para cima de mim, lambendo meu rosto e quase me fazendo derrubar vinho na minha própria roupa. Seu rabo não parava de abanar.
— Ai, chega, Mei! — implorei, mas ela me lambeu mais algumas vezes antes de se afastar, animada com a nossa "conversa".
Era claro que Mei era particularmente chegada naqueles três, as pessoas que estavam ao meu lado quando a encontramos na casa da minha avó, poucos dias depois da chegada do apocalipse. Melissa e Guilherme sempre estavam junto comigo, e Victória nunca se importou de tomar conta dela quando eu precisava. Mei também havia formado uma amizade forte com Samuel nos últimos meses, principalmente porque respeitavam mutuamente seus espaços (apesar de nunca atacar ninguém, Mei odiava abraços e sempre acabava ganhando alguns, mas Samu nunca a submeteu àquilo). Leonardo e ela se estranharam no começo, mas da última vez que estiveram juntos, já eram amigos. Além disso, ela amava todas as crianças e odiava todos os cachorros.
Então, lembrei de Massacre e Bruxa, que estavam no Hospital, junto de Leonardo e Paulina, e Celso e a pequena Laura, que acabaram se mudando para o condomínio após Celso se ver livre do comando de Klaus. Além dele, Darlene e Bruna faziam parte das mulheres que eram reféns do seu grupo, e Antônio ficou do nosso lado durante o ataque. Eu não tinha notícias desses três desde que Jin os expulsou do Hospital e, apesar de não sermos tão próximos, não pude deixar de torcer para que estivessem bem e que nos encontrássemos algum dia.
Tomei mais um gole de vinho e deitei a cabeça na minha mochila, aproveitando a sombra da árvore para proteger meu rosto. Encarei o céu azul por entre as folhas que pareciam de ouro contra a luz e pensei nas pessoas de quem eu, de fato, nunca mais teria notícia. Tomas, o pai de Samuel, que morreu tentando proteger nós dois. Elisa, que não resistiu aos ferimentos e passou tão pouco tempo com a filha que agora era criada por sua amiga, Carol. Alexandre, Alex, que depois de tudo o que nos ensinou e fez para nos proteger, suas últimas palavras foram um pedido de desculpa por ter sido o primeiro atacado e incapacitado de soar um alerta. Minha despedida foi uma mentira para confortá-lo, assegurando que havíamos neutralizado a ameaça e que todos sobreviveram.
— Desculpa por isso... espero que você não tenha ficado chateado comigo quando descobriu — sussurrei para o céu.
E, como sempre que eu começava a lembrar dos que se foram, o rosto de Hector também veio à minha mente. Tomando um gole do vinho que eu não deveria estar bebendo porque estava sozinha no meio do nada, lembrei do dia em que, bêbados e completamente inconsequentes, eu, ele e Melissa ouvíamos música enquanto matávamos zumbis. Gostaria de dizer que amaldiçoava aquele momento em que nos atrevemos a nos sentir intocáveis, mas a verdade é que só restava em mim carinho por ele. Viveria-o de novo, se pudesse.
Pensei em Alana, que me protegeu de tanta coisa desde o começo do apocalipse, e quem eu não fui capaz de proteger. O momento em que atirei à queima-roupa contra ela... este sim eu queria poder esquecer.
Naturalmente, também pensei em Faber, em Ana e em Helena. Até em Laura, que sequer chegou a sair do colégio conosco. Às vezes, eu gostava de imaginar que tipo de sobreviventes eles teriam se tornado, mas acabava evitando porque era um pensamento muito mórbido. Leonardo brigaria comigo, se soubesse.
Então suspirei e passei a mão nos pelos da minha cachorra, apenas para me distrair da saudades que sentia dele. Ir embora do hospital foi uma das coisas mais difíceis que eu tive que fazer, e amava Leonardo por entender a minha decisão. Por almejar tanto quanto eu que reencontrasse a todos. Eu o amava tanto que doía. Amava Guilherme da mesma forma, e me dilacerava o coração não ter a mesma certeza de que ele estava a salvo.
Respirei fundo e limpei as lágrimas que começaram a cair. Àquela altura, já estava tão acostumada a chorar que não me incomodava mais de fazê-lo na frente de outras pessoas. Na verdade, até sentia falta disso. Se havia algo a agradecer àquela merda de apocalipse, era por me tornar menos apegada a um orgulho idiota e perder o medo de encontrar conforto nos meus amigos.
Mei, deitada na minha barriga, fez um grunhido baixo, sonhando enquanto dormia. O sol leve aquecia nossas peles e logo teríamos de voltar a caminhar, mas me atrevi a fechar os olhos por alguns segundos, que se transformaram em minutos.
Eu odiava cada segundo daquele apocalipse e cada pedaço da terra que se decompunha sob suas garras. Ainda assim, era capaz de ser grata por momentos como aquele.
Por lembranças de quando o sol do verão queimava a minha pele enquanto eu, Leonardo e Guilherme tomávamos banho naquele lago gelado.
Por me afogar tão profundamente em desespero e fúria que foi capaz de me ensinar a encontrar a eternidade em cada mísero instante de alegria.
Eu odiava o apocalipse. Ainda assim, renascia nele todos os dias.
✘✘✘
Nota da autora:
Boa noite, queridos amigos 🖤
Esse capítulo foi um pouco mais curtinho, mas a Rebeca e a Mei mereciam um momento de descontração e felicidade.
spoiler: a Rebeca acordou depois de alguns minutos e as duas seguiram viagem 🙏 conhecendo vocês, já devem estar especulando que eu ia fazer ela acordar e dar de cara com 12 zumbis, 17 caras armados, 32 pumas...
ENFIM, sabem o que eu fiz esse final de semana? Passei a régua no planejamento dos últimos capítulos de Em Fúria! Então, finalmente posso confirmar para vocês...
que temos apenas mais oito capítulos pela frente!
Parece pouco, mas não esqueçam o tanto de coisa que aconteceu no final de Em Decomposição... confiem em mim, tem história para contar 🤭
Espero que tenham gostado do capítulo e estejam tão ansiosos quanto eu para o final.
Contem pra mim: alguma teoria do que vem aí? 👀
Até semana que vem e não sejam mordidos.
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