Capítulo 42.
No segundo dia, tivemos de fazer um desvio que nos obrigou a perder um dia inteiro de viagem. Seguindo a estrada principal que levava à oeste, bastou que saíssemos da cidade para não haver nada além de vegetação e carros abandonados ao nosso redor por muitos quilômetros. Vez ou outra, passávamos por um posto de gasolina ou um restaurante de beira de estrada, mas eles eram muito espaçados.
Ainda havia zumbis. Felizmente, nunca mais do que um grupo pequeno de cinco ou seis, ou apenas errantes junto às concentrações de carros batidos e abandonados. Eu ainda estava com o meu facão e o machado de Leonardo, e Samuel trouxera uma confiável barra de ferro (cujo uma das extremidades Celso envolveu com um pedaço de borracha para não machucar as mãos de quem manuseasse), então as criaturas nunca eram problemas.
Mas o sol implacável ainda era.
Estávamos muito bem preparados, com duas mochilas carregadas de suprimentos (três, na verdade, porque Mei vestia uma bolsa para cachorros e carregava consigo parte dos mantimentos), que iam de comida até material para acampamento. O problema é que nenhum de nós pensou em algo bobo como protetor solar — ou esperava aquele sol maldito.
Já era a metade de junho e eu e Samuel nos preparamos para dias mais frescos, mas ao que tudo indicava, o inverno não seria intenso naquele ano. As noites estavam frias, mas as manhãs e tardes eram insuportavelmente quentes e, logo no primeiro dia, minha pele já estava toda queimada de sol. Além da dor, aquilo nos desidratava ainda mais rápido e não podíamos carregar tanta água como gostaríamos, precisando depender dos estabelecimentos abandonados de beira de estrada para reabastecermos.
Dessa maneira, desviamos o curso por um dia inteiro para chegar em uma cidadezinha constituída por duas ruas principais com casas humildes. Ironicamente, foi o lugar onde mais encontramos zumbis até então, e conseguimos a proeza de quase morrer após sermos cercados por meia dúzia deles.
Mas o único momento em que realmente senti meu coração descompassar, foi quando achei que ainda pudessem haver pessoas vivas lá, quando encontrei sinais de outros sobreviventes. Nosso plano era passar a noite naquela cidade, mas pressionei Samuel para irmos embora o mais rápido possível assim que achamos o bendito protetor solar, então voltamos à estrada principal ainda durante a madrugada.
Apesar disso, os dias seguintes foram tranquilos. Conseguimos manter um ritmo de caminhada superior ao que Samuel estimou em seus cálculos e não perdemos mais do que algumas horas desviando de obstruções no caminho ou de grupos maiores de zumbis. Já estávamos no quinto dia de viagem e, se não encontrássemos mais nenhum problema, dentro de três dias estaríamos perto de Chapecó.
A última cidade do estado a cair para o apocalipse.
Durante as muitas horas livres do nosso dia, lutei contra pensamentos ruins envolvendo as coisas que poderíamos encontrar naquela direção. Já era cansativo até para mim, então me esforcei para não incomodar Samuel com minhas previsões negativas, mas não importava o quanto eu tentasse, não conseguia afastar os pensamentos intrusivos que me perseguiam e me deixavam em extrema tensão.
Pensar que poderíamos esbarrar com outros grupos era aterrador, mas pelo menos era um consenso entre mim e Samuel que não nos aproximaríamos em hipótese nenhuma. Estávamos evitando até mesmo as estradas, aproveitando a cobertura que os matagais ao redor dela ofereciam. O caminho variava entre descampados e florestas (estas evitávamos, com medo de encontrar cobras ou aranhas venenosas) até onde a vista alcançava.
Apesar de estarmos habituados a longas viagens a pé, noites dormidas ao relento e acampamentos improvisados, toda aquela viagem estava sendo um desafio completamente novo para nós. Estávamos mais acostumados a buscar comida em cidades fantasmas, correr pelo asfalto e encontrar abrigos em casas abandonadas.
Felizmente, nos vários meses que estivemos em segurança no condomínio, aproveitamos todos os conhecimentos que haviam para ser compartilhados. Leonardo e Guilherme, por exemplo, aprenderam muito com Celso sobre o conserto e manutenção de veículos, assim como conhecimentos que também se aplicavam para diversos serviços domésticos; Paulina fazia aulas de jiu-jitsu e defesa pessoal antes do apocalipse e treinou a todos nós, principalmente eu, Melissa e Bruna; Carol, Darlene e Elisa nos ensinaram receitas com as coisas que achávamos em abundância no apocalipse; e Leonardo compartilhou muito da sua experiência enquanto militar, que ia desde manutenção e uso de armas até montar acampamento e encontrar comida na selva.
Dessa maneira, eu e Samuel estávamos colocando muito do nosso conhecimento teórico em prática pela primeira vez. Aproveitávamos sempre que haviam casas próximas às estradas, mas em mais de uma noite nos encontramos com absolutamente nada além de mata fechada ao nosso redor, e tivemos de improvisar um acampamento ao relento.
E, contra todas as expectativas, conseguimos capturar uma paca graças à armadilha que Leonardo me ensinou a fazer.
Guilherme já tinha visto uma (a chamara de "rato gordo"), mas aquela era a primeira vez que eu via um animal selvagem, desde o começo do apocalipse. A armadilha era simples e pegava o bicho desavisado que passasse por ela com um laço. Havíamos tentado em outros dias, mas somente naquela tarde, enquanto paramos para descansar e almoçar, ela havia funcionado.
Ter de matar a pobrezinha não foi exatamente fácil, mas sem que eu pedisse, Samuel assumiu a tarefa e cortou sua garganta. Leonardo provavelmente enlouqueceria com o quão amadores fomos na hora de limpar a carne, mas afinal tiramos pedaços o suficiente para mais de uma refeição. Fizemos um ensopado e salgamos o resto para permitir que durasse pelo menos até o dia seguinte.
Comer carne já era raro no apocalipse, ainda mais fresca, então nosso bom humor permaneceu inabalável pelo resto do dia. Quando voltamos a caminhar, ensinei a Samuel uma das cantigas repetitivas que cantávamos nos passeios escolares e a entoamos pelo caminho, enquanto Mei balançava o rabo.
Quando o sol começou a se pôr e o clima ficou mais ameno, buscamos um local adequado para montar acampamento, pois estávamos longe de qualquer civilização e não queríamos caminhar durante a noite. Nos afastamos da estrada pelo descampado até uma área com árvores espaçadas e montamos uma fogueira para cozinhar, aproveitando a cobertura natural do ambiente. Jantamos mais uma parte da paca, e haveria o suficiente para as refeições do dia seguinte. Mei também recebeu uma porção, que misturei com sua ração.
— Como estamos de água? — Samuel perguntou. A noite já havia caído e usávamos o brilho mínimo da lanterna-lampião, enquanto nos preparávamos para dormir. Pelo menos, seria uma noite de lua cheia.
Terminei de espalhar o repente pela pele exposta e o entreguei para Samuel, então fui conferir as mochilas que estavam empilhadas ao lado da lona que estendemos. Quando começamos a viagem, esperávamos que as noites que ao relento seriam exceções e optamos por não procurar por uma barraca, mas eu iria sugerir que repensássemos sobre aquilo na manhã seguinte.
— Acho que temos cerca de cinco litros restantes — avisei, após conferir os cantis e as garrafas que restavam na mochila. — Vamos precisar economizar amanhã, e procurar com urgência por um posto de gasolina.
Normalmente, aquela notícia seria o suficiente para nos estressar, considerando que nosso mapa não indicava nenhum local para pararmos pelos próximos vinte quilômetros, mas era mais fácil ser otimista depois de um bom jantar.
— Certo. — Samuel passou o repelente, então aproximou o folder com o mapa da lanterna e colocou o dedo sobre uma das muitas áreas verdes. — Acredito que estamos por aqui. Nosso ritmo está bom e amanhã encontraremos um lugar melhor para dormir.
Deixei um riso escapar enquanto buscava por um cantil específico na minha mochila.
— Você imaginaria isso no começo desse ano? — perguntei, abrindo a tampa e tomando um gole que fez minha garganta arder antes de oferecê-lo a Samuel. — Eu e você dormindo ao relento, a quilômetros de qualquer cidade? É uísque. Para esquentar.
Samuel também riu e aceitou um gole da bebida. A noite ficaria mais fria do que o resto da tarde e ele já havia colocado sua jaqueta de couro e um gorro na cabeça.
— Essa nem foi a coisa mais estranha que aconteceu nesse ano. Você vai ter que se esforçar para superar o dia que te encontrei como um rocambole febril no tapete. — Devolveu-me o cantil. — Como você está se sentindo hoje?
— Feliz como um cachorrinho por comer carne, mas triste porque não posso tomar um banho.
Samuel riu de novo.
— Entendo o sentimento. — Estávamos os dois em cima da lona, um pouco apertados junto com Mei. Felizmente, não havia nenhuma nuvem no céu que indicava que o tempo poderia fechar e o vento era apenas uma brisa. — Mas falando sério, muito cansada?
Abri a boca para negar a pergunta, mas deixei um bocejo escapar.
— Cansada como alguém que está caminhando por 10 horas todos os dias. — Dei de ombros. — Nada fora do normal. As queimaduras ardem um pouco, também, mas acho que você pode imaginar.
Assim como o eu, Samuel estava com o nariz, bochechas e testas queimados de sol, que já começavam a descascar. Não era o ideal que tivéssemos de racionar água naquele estado, mas estava confiante de que nada atrasaria nossa chegada à uma cidade onde pudéssemos descansar de verdade.
— Que bom. Você está mais calma desde que começamos a viajar — comentou.
Era sempre um pouco desconfortável ter alguém tão direto apontando minhas ações, mas àquela altura eu já estava acostumada com Samuel.
— É... Sinceramente, acho que ficar tão cansada ajuda a acalmar um pouco minha cabeça. — Dei um sorriso fraco para ele. — Eu costumava dar uma corrida para aquecer antes dos campeonatos de handebol, na época do colégio, se não entrava em campo suando frio.
— Pois é. — Samuel devolveu meu sorriso. — Ultimamente, também estou me sentindo mais otimista. Fora aquele dia com os zumbis, está mais tranquilo do que eu imaginava, e mesmo quando tudo dá errado...
Samuel ergueu as mãos com as palmas para cima, sinalizando para os arredores. Ergui os olhos e encontrei o céu estrelado sobre nós.
— Parabéns, você foi otimista demais e agora amanhã vai chover.
— Se a chuva for o pior dos problemas. — Ele deu de ombros. — Quer fazer como a guarda? Eu não me importo de começar.
A parte ruim de viajar em duas pessoas e dormir desprotegidos era que fazer guarda não era uma opção. Tecnicamente, qualquer coisa que se aproximasse acordaria Mei muito mais rápido até do que qualquer um de nós dois, mas a verdade é que também não nos sentíamos confortáveis com os dois dormindo.
Bocejei de novo, o peso do dia pesando minhas pálpebras.
— Normalmente eu educadamente insisto contra isso, mas hoje... Vou deixar você começar.
Samuel sorriu para mim e se levantou, deixando mais espaço sobre a lona para mim. Estávamos os dois alguns quilos mais magros desde o tempo em que tínhamos paz no condomínio, mas, pelo menos, não mais esqueléticos como na época em que eu estava ferida. Os cabelos loiros de Samuel passavam dos ombros e estavam presos num rabo de cavalo baixo, e a barba que ele havia feito no dia em que saímos do Hospital já estava crescida. Apesar do penteado diferente, sob a escuridão da noite, ele parecia muito com Tom.
A voz baixa e estável, a constante responsabilidade, o sentimento de proteção para com seus companheiros... Se eu tinha saudades de seu pai, mal podia imaginar como ele se sentia quando pensava nele. Mesmo que não tivesse qualquer serventia, jurei para mim mesma que faria de tudo para encontrarmos Carol. Ele merecia aquilo, depois de tudo.
— Sem problemas, não estou com muito sono. — Ele me ajudou a esticar o cobertor e Mei balançou o rabo quando ele caiu acidentalmente sobre sua cabeça. — Opa, desculpa, Mei.
Eu tinha certeza que a minha cachorra aceitou as desculpas, pois também saiu da lona para acompanhar Samuel. Ele não precisava me indicar, mas eu sabia que iria até uma pequena elevação do terreno a apenas alguns passos de mim, que lhe daria visão de todo o campo até a estrada. Mei dormiria com ele e faria rondas a cada hora, mesmo que eu nunca tivesse lhe ensinado aquilo.
— Boa noite, Samu — sussurrei.
— Boa noite. Durma bem.
✘✘✘
No meu sonho, eu estava em uma sorveteria, mas o chão de ladrilhos se transformou em grama e os passos da garçonete se tornaram muito mais pesados do que o normal. Ouvi a voz de Samuel, apesar dele não estar ali comigo.
O latido de doer os ouvidos me despertou e arregalei os olhos ao mesmo tempo que todo o meu corpo se aquecia com a adrenalina. Eu já sabia que algo estava errado antes mesmo de saber o quê.
Ergui-me com um salto, ouvindo o barulho da lona sob mim e o farfalhar da grama. Com o coração acelerado, por um segundo temi que não encontraria nada ao olhar para os lados e o latido de Mei tivesse sido apenas meus sonhos se mesclando com a realidade.
Encontrei Samuel a poucos passos de mim, em pé e completamente imóvel. Mei estava atrás dele, um pouco oculta pela grama que encobria suas patas.
Os segundos que se arrastaram pareceram uma eternidade enquanto eu tentava entender o que estava acontecendo e, naquela tensão, percebi que o som contínuo que eu ouvia era o rosnado da minha cachorra. A lua cheia impedia que a escuridão fosse completa, mas demorei a perceber que seus pelos estavam eriçados e os dentes à mostra.
— Rebeca, pelo amor de Deus... não se mexe. — Como se seguisse a própria ordem, Samuel não moveu um músculo. Seus olhos azuis estavam fixos em algo atrás de mim.
Mas foi impossível controlar o reflexo diante de uma ameaça que eu não compreendia e virei a cabeça para trás no mesmo instante, buscando pelo cano de uma arma. Por uma silhueta humana perto demais, ou pelo cheiro pútrido de um cadáver reanimado.
Não encontrei nada disso, mas ouvi um barulho que eu não consegui identificar.
Por segundos que fizeram meu estômago embolar numa mistura de alívio e ansiedade, até cogitei que não havia nada. Mesmo sendo de muito mal gosto, Samuel me pregando uma peça era muito melhor do que qualquer um dos horrores que se desenrolavam em minha cabeça.
Ouvi o mesmo barulho de antes se misturar com os rosnados de Mei. Um silvo que gelou meu sangue, mesmo eu não sabendo de onde ele vinha. Àquela altura minha respiração estava tão alta que quase o encobria.
Então, de supetão, encontrei-os.
Dois olhos amarelos a poucos metros de mim.
Imaginei que estivesse sonhando enquanto a silhueta negra lentamente se tornava mais clara conforme meus olhos identificavam seus contornos entre o matagal nebuloso. Demorei a entender a distorção do corpo daquela criatura, pensando que era o zumbi mais estranho que já vi.
Ela se moveu tão rápido que eu não consegui reagir, apenas sentir meu sangue congelar. O latido de Mei veio como um estrondo e ela interrompeu seu bote, abrindo a boca para soltar outro silvo e mostrar seus dentes para mim. Estava perto do monte de mochilas e os protegia como se fosse sua caça, algo que nenhuma das criaturas que nos perseguiram pelos últimos meses fazia.
Nenhum dos nossos predadores eram animais e talvez mesmo eles não fossem tão perigosos quanto o puma a poucos metros de mim.
✘✘✘
Nota da autora:
Então......... vocês sabiam que existem pumas aqui no Brasil? 🤪
Puma, onça-parda, suçuarana... como vocês conhecem? (pergunta genuína, é tudo o mesmo bicho mas eu escolhi chamar de puma porque achei que seria mais fácil identificar).
Viram??? Dessa vez não teve nenhum grupo perigoso, nenhum zumbi... era esse tipo de capítulo calminho que vocês queriam? 😇
AI SE ALGUÉM FALAR QUE EU NÃO SURPREENDI AQUI EIN!!!!
Só os loucos acharam que essa viagem seria tranquila.
Não sejam mordidos até o final dela...
(nem por zumbis, nem por pumas)
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