Capítulo 29.
Estiquei a mão e bati duas vezes com os nós dos dedos na porta de madeira, ouvindo o som ecoar pela casa silenciosa. No meio da tarde, a maior parte dos membros do grupo ficava ocupada com suas próprias obrigações e toda a Base parecia presa em um silêncio seguro.
— Pode entrar. — A voz grossa de Jin chegou até mim.
Girei a maçaneta e empurrei a porta antes de mandar:
— Mei, fica.
Minha Pastor sentou a bunda no chão, obediente, enquanto eu passava pelo batente e nos separava fechando a porta. Ouvi um suspiro pesado de Mei do outro lado e me esforcei para conter um sorriso. Todo mundo sabia como Mei era obediente, mas de alguma forma me parecia importante tentar mostrar para Jin naquele momento.
Quando me virei, ele já estava me encarando, tapa-olho preto que cobria seu lado direito contribuindo para a aparência severa. A sala onde ele passava a maior parte do tempo provavelmente era um quarto, antes do apocalipse, mas agora havia sido transformada em um "escritório" — ou pelo menos era uma forma mais digna de chamar a escrivaninha e cadeira de madeira no centro dele. Diversas folhas de papel estavam arrumadas sobre ela, que provavelmente variavam desde inventários de comida, planejamento de buscas e listas intermináveis de itens que nos faltavam.
Apesar de ser inevitável sentir raiva dele pelas falas que teve com Leonardo, eu era obrigada a admitir que Leo tinha razão em uma coisa: Jin era competente o suficiente para fazer as coisas funcionarem. E quando você corre risco de passar fome ou de morrer por uma infecção depois de um ano nesse inferno, infelizmente você acaba ponderando até mesmo seus limites.
O apocalipse tem seus jeitos irônicos de nos humilhar.
Naquele momento, meu interesse em Jin vinha justamente de sua inescrupulosidade. De como nem titubeou sabendo que uma jovem de dezessete anos foi sequestrada e torturada por Klaus, mas se ateve ao detalhe que o interessava: eu havia voltado e explodido todos eles. Com a inestimável ajuda do resto do grupo, claro, mas ainda assim.
Então, percebi meu erro. Eu havia explodido quase todos eles.
Meu coração acelerou com a observação. O fato de Adão ter sobrevivido foi o que desencadeou os dois ataques que sofremos, as baixas, as semanas de fome... Será que Jin culpava algum de nós por aquilo?
Seu tratamento com o nosso grupo não havia mudado: sem maiores intimidades (assim como não parecia ter com ninguém além dos filhos, para ser sincera), mas educado e eficiente. E exigente, claro. Se estávamos ali, precisávamos ajudar, assim como sempre "pagamos" por quaisquer atendimentos nos últimos meses. Ainda assim, mais do que nunca pensei que queria obter o respeito dele.
— Boa tarde, Rebeca. — falou, observando enquanto eu me aproximava. Havia uma cadeira no canto da sala, mas não queria ter de arrastá-la até a frente dele, então preferi ficar de pé. — Como está a perna?
— Boa. Já não dói mais — respondi. — Minha costela também está melhor, Hanna quem está cuidando de mim.
Quase de imediato, quis mudar minha resposta, por nenhum motivo em especial além de me sentir falando demais, enquanto a atenção de Jin estava toda em mim. Não queria que ele detectasse nervosismo em mim
— Que bom. — Jin comentou, pousando a caneta que tinha em mãos sobre a mesa e deixando-a ali. Então apoiou os dois cotovelos na superfície de madeira, dando-me atenção total: — Precisa de alguma coisa?
Respirei fundo, subitamente consciente demais que estive praticamente de cama no último mês depois de duas infecções, da minha pouca idade em comparação aos outros membros do grupo, da minha falha no combate contra Klaus...
— O que você sabe sobre o resto do grupo que nos atacou?
Falei antes mesmo de encontrar a coragem necessária. O ódio que incendiava meu coração falava mais alto do que qualquer bom senso naquela hora.
Era fácil me distrair quando estava junto de Leonardo e Paulina, conversando com Maitê, brincando com Mei e até dividindo um abajur para ler com Samuel. Algumas vezes, sonhava com Guilherme, com Melissa, torcia para que eles estivessem bem, ansiando por reencontrá-los e reviver o verão calmo que compartilhamos...
Mas bastava ficar em silêncio.
Caminhar sozinha pelas ruas (já limpas por Leonardo e Maurício, mas que precisavam de vistoria constante) me despertava uma constante inquietação e eu precisava lutar contra pensamentos intrusivos de que em qualquer esquina eu encontraria um inimigo disposto a ferir a mim e a todos que eu amava. Os pesadelos, que já eram frequentes antes, transformaram-se em lembranças constantes de que o perigo nunca acabaria.
Desde o começo do apocalipse, eu estive com medo. Agora, sentia-me completamente apavorada.
Jin não se moveu nem um centímetro, mas ficou vários segundos em silêncio antes de me responder:
— Se importa se eu perguntar outra coisa antes? Por que você quer saber?
— Sei que você e Maurício estão escondendo alguma coisa — blefei. Eu não tinha qualquer certeza, além da sugestão de Samuel. Ainda assim, confiava inteiramente nele.
— Você não respondeu à minha pergunta.
Respirei fundo, sem tirar os olhos do rosto de Jin. Ignorei a sensação de que minhas mãos suavam. De alguma forma, sentia que ele queria me testar.
— Eu acho que, quando vocês foram obrigados a deixar o hospital, também deixaram muita coisa para trás. Um lugar que chamavam de casa, estoque de comida para meses, o controle de uma área, até então, segura... — Continuei, propositalmente evitando sua pergunta. Confirmar qualquer coisa no momento errado seria pedir para ser excluída daquele plano. — E não podem voltar por causa do risco de encontrar inimigos novamente em Blumenau. Além de também sentirem medo que eles possam achá-los aqui.
Tarde demais, desejei ter me referido a "nós" e não a "vocês".
Jin ergueu uma sobrancelha e seus olhos desceram pelo meu corpo, parecendo me analisar.
— De fato, Rebeca. Não deixamos somente comida para trás, mas medicamentos adequadamente conservados. — Jin apoiou o queixo em uma mão, sem tirar os olhos de mim. — Que, como eu tenho certeza que você já percebeu, podem fazer tanta falta quanto água e comida no mundo de hoje.
— Eu entendo, mas você nem precisa ir tão longe — falei, sentindo um pouco mais de confiança. — Se eu ainda estivesse reunida com o meu antigo grupo, provavelmente iria querer retomar o condomínio. Não apenas pelo valor físico dele, mas pelo emocional. Eu não aceitaria tão facilmente ser expulsa da minha antiga casa.
Jin deixou um riso sutil escapar e desviou o olhar, mexendo por alguns segundos nas folhas de papel a sua frente. Ordenou uma pilha, batendo a lateral algumas vezes na mesa para deixá-la enfileirada e demorou alguns segundos até olhar novamente para mim.
— Vou responder à sua pergunta, então — Jin começou. — O que eu e Maurício sabemos é que ele voltou outras vezes a Blumenau para descobrir o tamanho da ameaça. Sabemos que a base do grupo que vivia no campus da faculdade foi destruída, e que os cadáveres que ele encontrou por lá tinham tiros pelo corpo. De fuzil, a mesma arma que as pessoas que nos atacaram usavam.
"Sabemos também que ele demorou vários dias até encontrá-los, mas recentemente conseguiu. Vivem em um complexo de apartamentos cercado por muros altos, ao leste da cidade. Ele não conseguiu se aproximar muito porque as ruas ao redor estavam cheias de zumbi, mas ficou de tocaia por quase seis dias no topo de um prédio, de onde tinha vista com um binóculo. Eu o cobri no revezamento durante este tempo, antes que você pense que não reconhecemos que nossos companheiros vivos são a prioridade".
Não comentei nada, e não teria comentado se discordasse dele. Porém, definitivamente não pude deixar de notar que Maurício quem fizera o reconhecimento, que ainda tinha um filho vivo, ainda que tivesse perdido a esposa e a filha durante o ataque ao hospital.
— Bom, Maurício reconheceu os rostos que nos atacaram naquela noite, e confirmou que alguns de fato eram antigos membros do grupo da faculdade. Não parece loucura pensar que Klaus tivessem infiltrados lá, ou que Adão os convencera que nós éramos os inimigos. — Jin deixou um riso repleto de desgosto escapar. — Talvez nunca tenhamos essa resposta, mas ela não me importa. Enganados ou não, eles assumiram um lado.
— Quantos são? — Interrompi-o, esperando não parecer mal educada. Falar sobre o caráter daquelas pessoas era o que menos me interessava, quando eu só as enxergava como as responsáveis pela morte do pai de Samuel.
— É impossível saber com precisão, mas Maurício estima que cerca de nove ou dez. — Provavelmente Jin notou minha expressão confusa, porque explicou: — Fomos pegos de surpresa quando atacaram o hospital, mas eles também tiveram baixas naquela noite. E, pelo que você conta, ninguém ou praticamente ninguém saiu com vida do ataque ao condomínio.
Queria que o meu primeiro pensamento não tivesse sido como seria fácil exterminá-los.
— Ele viu idosos ou crianças? — perguntei.
— Não, mas tinha duas mulheres.
Os olhos de Jin estavam fixos nos meus e me esforcei como nunca para manter a expressão inalterada. Sem receber qualquer resposta, ele prosseguiu:
— Você ainda não respondeu à minha pergunta.
Por que você quer saber?
Tentei pensar em Leonardo, que não sabia que eu estava ali. Mas que eu tecnicamente também não via há dias, e que poderia muito bem ter morrido na busca por mantimentos. Quem sabe, encontrado um outro grupo de inimigos que não teve piedade dele ou de Yuri.
Tentei pensar em Mei, que me esperava do outro lado da porta, sem qualquer ciência do medo que me assolava. Minha cachorra, que poderia não ter a sorte de sobreviver a um segundo ataque.
Então lembrei de Melissa, Guilherme e Victória, os únicos que restaram do grupo que deixou a escola comigo há mais de um ano. Pessoas que eu aprendi a amar, a ansiar pela companhia, e que só não estavam do meu lado naquele momento porque fomos atacados. Porque a paz que tanto lutamos para conquistar foi destruída em uma noite.
— Porque eu quero ajudar a eliminar qualquer ameaça à segurança dos nossos grupos. Retomar a cidade e a casa de vocês.
Me vingar de quem se aliou aos assassinos que feriram meu grupo.
O silêncio entre nós se estendeu por quase um minuto inteiro, enquanto Jin dividia sua atenção entre eu e as folhas dispostas na mesa à sua frente. Sua expressão era difícil de ler, o rosto sério, marcado por linhas de expressão que pareciam aumentar rápido demais, demonstrando em iguais partes interesse e apreensão.
O que quer que fosse, não era receio em arriscar a vida de uma garota de dezoito anos, porque eventualmente ele respirou fundo e buscou por uma folha ao final da pilha em suas mãos.
Era uma planta desenhada por alguém claramente sem muita habilidade artística, mas era o suficiente para se fazer entender. Na metade do que parecia ser um quarteirão, repleto de quadrados sem detalhamento indicando outras casas, havia um terreno mais detalhado. Era difícil compreender todas as anotações, mas deduzi que o retângulo central fosse o prédio onde viviam.
— Eu nunca estive lá, mas Maurício traçou esse mapa enquanto os observava. Sente-se, que vou te explicar os detalhes. — Jin apontou com o queixo para a cadeira no canto do quarto, indicando que eu me aproximasse. — Como expliquei, eles não contam com muitas pessoas para oferecer proteção, mas têm uma natural: o local é mais próximo do centro da cidade do que nosso hospital ou a oficina de Klaus, por isso as ruas ao redor são cheias de zumbis. Acho seguro dizer que não esperam um ataque, porque não tiveram qualquer movimentação fora do comum durante a vigília de Maurício. É impossível que soubessem quantas pessoas existiam em nosso grupo, talvez pensem que o estrago que fizeram foi o suficiente... De qualquer maneira, o problema continua sendo passar pelos zumbis sem chamar atenção.
Então foi a minha vez de sorrir. Tremendo que o gesto não agradasse Jin, expliquei:
— Pode deixar. Eu sei como vamos resolver isso.
✘✘✘
Nota da autora:
Eu comecei a escrever esse textinho antes da meia noite mas me deixei levar e me atrasei graças à ele 🤓 gênia
(e eu estou viva, o que significa que provavelmente eu não respirei nenhum cogumelo afinal. Que coisa...)
Bom, capítulo mais curtinho, mas vocês sabem para onde estamos indo 👀
Caramba gente, quero dar a minha opinião gratuita em uma coisa: como eu AMO a forma como a Rebeca mudou no decorrer da história.
Vejam bem, eu detestava (com carinho) a Rebeca de Em Decomposição 🙏 Como eu sempre falo, eu comecei essa saga sem tantas pretensões para o futuro dela, mas eu sempre gostei de brincar com estereótipos e clichês. E a Rebeca, ao meu ver, era a típica protagonista fácil de se identificar. Observadora, racional na medida do possível, pacificadora de conflitos...
Mas enquanto praticamente os personagens são uma brincadeira em algum grau com clichês adolescentes, a minha intenção sempre foi abordá-los da maneira mais séria e realista (do meu ponto de vista) possível. E isso inclui como o apocalipse destruiu e reconstruiu cada um deles.
A Rebeca de Em Decomposição nunca conseguiu disfarçar como era extremamente movida pelo emocional, mas se esforçou para assumir uma posição relativamente racional e conciliadora (que sinceramente nunca foi o que ela fazia de melhor). Engoliu os próprios sentimentos, achando que assim assumiria da melhor forma o papel do que ela considerava uma "líder".
A Rebeca de Em Desespero é o resultado de quem foi levada a todos os seus limites e, curadas as cicatrizes, percebeu que era mais forte do que julgava ser, ao mesmo tempo que entendeu a real extensão da inescrupulosidade do apocalipse. Ela foi repetidamente punida pelos erros enquanto precisou dar tudo de si para encontrar uma forma de remediá-los.
Eu vejo a Rebeca de Em Fúria como alguém que começou a entender a extensão das próprias fraquezas, mas ao mesmo tempo está mais ciente do que nunca da própria força. Ela conhece a crueldade do apocalipse, e está mais do que pronta para direcionar todas as emoções que a impulsionam para devolver na mesma moeda.
Ironicamente, também é a Rebeca que eu considero mais aberta e sincera emocionalmente. Que reconhece o momento de se fazer de forte, mas perdeu o medo de demonstrar as fraquezas (para algumas pessoas, claro).
Eu não acho que ela têm um crescimento linear de forma nenhuma, sabem? Eu acho que ela perde partes na mesma medida que fortalece outras. Eu vejo ela exatamente como o produto do apocalipse que eu sempre quis criar e é muito legal (e um pouco desesperador, não vou mentir kkk) perceber como ela se torna cada vez mais difícil de narrar.
Como será que a Rebeca vai chegar no último livro...
Aliás, sabiam que já comecei a trabalha com a ilustradora nas próximas capas? 👀 Prometo que vou vazar no Catarse assim que ficarem prontas.
Enfim fiquei divagando um monte e me atrasei. Ótimo 🙄
Alguém disse essa semana que Em Fúria era atualizado nas terças e Camellia aos sábados. Fiquei ofendida, mas sem argumentos!!!!
Espero que estejam gostando da história apesar do meu caos.
Amo todos vocês e até segunda-feira (ou terça, sinceramente) que vem!
Não sejam mordidos.
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