Capítulo 23.
Ficamos presos naquela maldita casa por mais três dias, mas pelo menos tínhamos conosco remédios e encontramos comida o suficiente para nos manter vivos. Com quase um ano de apocalipse, abrir geladeiras era pedir para encontrar somente quilos de comida apodrecida, vermes e baratas e, sem acesso às nossas plantações, no último mês a única escolha que nos restava se resumia estritamente a alimentos não perecíveis.
Estivemos esperando que em um ou dois dias o número de zumbis diminuísse o suficiente para possibilitar uma estratégia de fuga, afinal, sem estímulo constante, eventualmente as criaturas perdiam o foco e esqueciam o que quer que estavam perseguindo para começo de conversa.
Mas é claro que eu havia quebrado uma janela tentando derrubar um pássaro e os ouriçado novamente.
A possibilidade de comer carne sempre era tentadora, mas principalmente depois de um mês de sobrevivência à base de grãos e massas. Nos primeiros meses, praticamente não víamos qualquer animal vivo, mesmo afastados das cidades grandes como estávamos no condomínio. Hoje em dia, aos poucos a fauna sobrevivente voltava a se expor. Quer dizer, os ratos não haviam sumido em nenhum momento, mas depois de os vermos se alimentando de restos de zumbi, não os considerávamos exatamente comestíveis.
Pelo menos, o tempo ocioso que passamos até surgir a ideia de esticar tábuas de madeira como "pontes" de um telhado para outro a fim de conseguirmos fugir, também serviu para esboçarmos um plano para o futuro.
Embora eu tivesse me esforçado para pensar em um argumento decente para passarmos pelo condomínio, alegando que era a estrada que eu melhor conhecia (o que era verdade) e que, àquela altura, talvez os zumbis tivessem se dissipado o suficiente para passarmos, a verdade é que era apenas por desencargo de consciência. Ou, embora eu jamais admitiria, também era uma oportunidade para me despedir decentemente daquele lugar que foi tão especial para nós.
E, bem no fundo, também tinha esperança de encontrar alguma coisa. Algum sinal, talvez uma mensagem deixada por quem sobreviveu... qualquer indício de esperança. A nossa segunda parada e única que de fato fazia algum sentido era em Blumenau, mas a última informação de que tivemos era que o hospital havia sido atacado e o grupo separado depois de ter sofrido baixas consideráveis. Não tínhamos nem certeza de que encontraríamos alguma coisa lá, mas era o nosso único direcionamento.
Se algum dos nossos colegas ainda acreditasse que havíamos sobrevivido, eu pensava que seria no condomínio que encontraríamos qualquer sinal deles. Pelo menos, era o que eu faria.
Tentei afastar meus pensamentos daqueles últimos dias em que estivemos presos:
— Sabe, por mais que eu odeie admitir, talvez a melhor maneira de nos aproximarmos seja com a sua estratégia maluca — falei, chamando a atenção de Samuel. Ele deixou um riso anasalado escapar, sabendo que eu só queria pegar no seu pé. Quer dizer, a estratégia não era mais maluca do que um mundo repleto de zumbis. — Se tivermos sorte e pelo menos o número de zumbis tiver diminuído um pouco, acho que a nossa melhor aposta é estacionarmos por perto e seguir a pé.
— Você vai conseguir dessa vez, ou vai enfiar uma facada no primeiro que se aproximar? — ele provocou e revirei os olhos:
— Desculpa por me importar, na próxima vou deixar você ser comido.
Samuel riu e até eu esbocei um risinho, mas ele logo voltou a atenção à mangueira que usava para retirar gasolina do tanque do Palio, enquanto eu tentava me resolver com o macaco hidráulico para trocar o pneu furado jipe. Senti ainda mais vontade de sorrir lembrando de quando Leonardo descobriu que nem eu ou Guilherme fazíamos qualquer ideia de como trocar o pneu de um carro, quando o do nosso HB20 furou. Ele nos obrigou a "dar um jeito", sem maiores orientações, enquanto fumava um cigarro — claro que se tratava apenas de fingimento e depois de alguns minutos observando nosso esforço infrutífero, nos ensinou exatamente como fazer.
O sol do meio dia brilhava com força sobre mim e Samuel, mas sua intensidade já não era a mesma dos primeiros dias naquela cidade. Esforcei-me para calcular em que mês estávamos, independente do medo inevitável que viria com aquela realização.
O ataque de Adão aconteceu no começo de abril, quando eu e Samuel fomos obrigados a fugir juntos daquele caos e nos abrigar em uma cidadezinha onde nenhum de nós havia pisado anteriormente. Nos primeiros dias, tentamos apenas nos recuperar e tratar nossos machucados, mas em menos de uma semana os primeiros sintomas das minhas infecções começaram a aparecer. Tive episódios de melhoras e pioras até cair de cama, então Samuel precisou sair sozinho para encontrar remédios. Quando ele finalmente voltou, já estávamos há mais de duas semanas ali, e foi preciso mais do que isso até eu começar a melhorar.
Quase um mês e meio havia se passado sem que tivéssemos qualquer notícias dos outros sobreviventes. Àquela altura, provavelmente sequer achavam que ainda estávamos vivos. Eu tentava não deixar o sentimento de urgência enevoar minhas ações, mas a sensação de que era tarde demais fazia meu coração pesar.
Estávamos no limite da cidade, preparando o jipe que encontramos para fazer a viagem, trocando seu pneu furado e enchendo o tanque de gasolina. A escolha era estratégica: com aquele carro, teríamos a chance de nos aproximar do condomínio sem depender das estradas, podendo facilmente mudar de rota caso ela estivesse obstruída por zumbis. Nossa estratégia consistia em fazer as decisões mais seguras, tentando evitar a necessidade de combate ou uma fuga a pé, devido ao meu estado fragilizado.
Também estávamos relativamente bem armados, com pistolas carregadas e armas brancas que Samuel trouxera de uma loja de camping, alguns dias antes. Evitaríamos se possível, mas nenhum de nós hesitaria em abrir caminho pelos zumbis até encontrar nossas famílias e amigos.
— Acho que está tudo pronto. — Samuel avisou, secando as gotas de suor que escorriam da testa com as costas da jaqueta. Pálidos como éramos, eu e ele ja estávamos com as peles avermelhadas de sol. — Será que chegamos antes de anoitecer no condomínio?
— Sim, se não encontrarmos nenhum problema na estrada. — Falei, olhando ao nosso redor. Alguns zumbis já tinham notado nossa presença, mas estavam a vários metros de distância. — E, se parar no condomínio for impraticável, chegamos em Blumenau no começo da noite. Se parecer arriscado entrar na cidade, saímos da estrada para esperar o amanhecer.
Vi no rosto de Samuel uma sombra de receio, mas ele não hesitou ao assentir. Eu sabia que os dias em que se aventurou sozinho por aquele mundo haviam deixado sua marca nele e, ao mesmo tempo que a ideia de estar longe da segurança durante a noite parecia lhe trazer lembranças ruins, meu amigo voltou muito mais confiante em suas capacidades de sobrevivência.
Já eu, sentia-me novamente nos primeiros dias de apocalipse sempre que precisava enfrentar um morto. A falta de preparo físico e músculos fracos tornavam tarefas que antes faziam parte de um dia comum em algo extremamente desgastante. Mas eu e Samuel tínhamos isso em comum: independente do medo que ainda rastejava por nossas veias, sabíamos da importância de sufocá-lo naquele momento.
— Certo. Já não aguento mais esperar. — Samuel falou, no seu tom de voz habitual. Mesmo se não fosse aquela intenção, sua tranquilidade também me deixou mais confiante.
Partimos sem olhar para trás, com a certeza de que nenhum de nós sentiria saudades daquele último mês.
✘✘✘
Mesmo à distância, somente rever os muros do condomínio fez meu coração bater mais forte. E nem os mortos ao seu redor foram capazes de diminuir a felicidade.
Nossa antiga casa ficava em uma rua paralela, a quase um quilômetro da estrada principal, e para os dois lados do condomínio um descampado extenso se estendia. Algumas poucas residências abandonadas eram nossas únicas vizinhas. O local era idealmente afastado e haviam poucas árvores para obstruir nossa visão, então era fácil identificar qualquer ameaça, mesmo à distância.
Durante a noite do dia do ataque, era impossível ter uma noção exata da quantidade de mortos que seguia Adão. Suas formas se mesclavam à escuridão criando um oceano de corpos pútridos, mas agora, sob a luz do sol de fim de tarde, suas figuras eram muito mais claras — ainda que não menos assustadoras.
Uma multidão considerável ainda se concentrava na estrada, próxima ao portão tombado, mas a partir dali os zumbis começavam a se dispersar progressivamente por cerca de um quilômetro. Enquanto me aproximava com o jipe, tentava ter alguma noção de quantos haviam ali.
— Olha, eu sou horrível com estimativa, mas... — comecei, fazendo careta ao perceber que os mais próximos já reagiam ao ronco do motor do carro. Quanto mais distantes do condomínio, mais dispersos eles estavam, por isso a situação ainda não era alarmante.
— Entre cem a duzentos, não dá para ter certeza sem saber quantos têm lá dentro. — Samuel se adiantou, completando minha frase. Assenti, impressionada com a precisão. — É bem menos do que naquela noite, o que significa que uma parte considerável foi embora. Ainda assim, acho que é impossível.
Franzi o cenho.
— Como assim? Claro que não. A gente dá conta.
Samuel me olhou como se eu fosse louca. Provavelmente esse foi o mesmo olhar que ele recebeu de mim quando falou que caminhava entre os zumbis. Apressei-me a explicar o plano, antes que ele tentasse medir a minha temperatura, certo que a febre havia fritado o meu cérebro:
— Eu sei que não estou no melhor condicionamento, mas olha como eles estão distribuídos. — Comecei, desligando o motor do carro e me esticando para pegar o machado de Leonardo no banco de trás. Apontei com o cabo na direção do condomínio. — Aquele meio seria um problema, mas estes próximos de nós estão dispersos. Vamos juntar forças: a sua estratégia, com a minha. Estacionamos longe e vamos nos aproximando sem chamar atenção, derrubando aos poucos os que estão mais afastados. A gente vai acabar atraindo alguns, mas isso é bom: dessa maneira, vamos matando aos poucos e lentamente diminuindo a multidão na entrada. Nos afastamos só um pouco do carro e, caso comecem a nos cercar, corremos para ele. Podemos voltar no dia seguinte e fazer a mesma coisa, mas pelo norte, já que com o jipe fica mais fácil andar pelo descampado. E temos armas de fogo, para o caso de uma emergência.
A expressão de Samuel era difícil de ler, mas não parecia muito promissora.
— Eu sei que parece loucura, mas eu... já consegui lidar com mais de vinte de uma vez. — Franzi o cenho, sentindo como se estivesse tentando me exibir ou coisa assim. — Quero dizer: é possível. Na hora de lidar com muitos, manter o ritmo e ter um plano é mais importante do que o condicionamento físico propriamente dito. Tentamos nos aproximar dos primeiros e derrubar o máximo na faca sem chamar atenção. Depois, podemos variar: um derruba com o machado ou um pedaço de metal e o outro finaliza com o facão no chão. Assim conservamos energia.
— Por que faríamos isso, afinal de contas? — Samuel me interrompeu, com uma questão muito mais pertinente: — Já está óbvio que não tem mais ninguém vivendo aqui.
Até eu fui pega de surpresa com a pergunta e demorei para encontrar uma resposta adequada. Apenas parecia errado ver o lugar que fora a nossa casa por tantos meses maculado daquela maneira.
— Bom, a gente não sabe em que circunstâncias estão os outros. Talvez ainda voltem às vezes, na esperança encontrar algum sinal nosso... Ou já passaram por aqui. Têm menos zumbis, como você mesmo disse. Pode ser que eles quem os mataram. — Argumentei. — E... eu queria tentar deixar uma mensagem. A gente não tem qualquer pista, e pode não servir para nada no final das contas, mas... quem sabe alguém volte aqui um dia.
Percebi que Samuel parecia estar num impasse, mas só entendi o nervosismo quando o vi lutando para não coçar os próprios braços.
— Podemos aproveitar para nos certificar de que nenhum amigo nosso está entre os zumbis... E enterrar Alex e o seu pai. — Suspirei. — Desculpa, não pensei como poderia ser delicado para você. Eu não sou religiosa, sabe? Mas acho que ter um momento de luto para lamentar por alguém ajuda um pouco na hora de virar a página. Você nunca teve isso, porque tivemos que continuar lutando pelas nossas próprias vidas.
Samuel fungou algumas vezes e desviou o olhar da minha direção, provavelmente para esconder os olhos avermelhados. Quando pensei que afinal deveria esquecer aquilo, ele murmurou:
— Você tem razão. Ainda podem estar nos procurando, talvez seja sensato deixar uma mensagem.
Eventualmente nos afastamos antes que os zumbis mais próximos chegassem e iniciamos os preparativos para atacar: colocamos roupas adequadas, deixamos o carro parado a vários metros de onde os zumbis estavam e preparamos as armas em seus coldres.
Seguimos exatamente conforme o planejado, movimentando-nos lentamente entre o mato alto até nos aproximarmos das criaturas, apenas o suficiente para derrubá-los cravando a lâmina da faca em suas cabeças. Mesmo que amparássemos a queda, o som oco na grama e os gemidos eventuais que escapavam por nossos lábios denunciavam a outros a nossa presença, que lentamente tentavam nos alcançar.
Por quase vinte minutos, conseguimos ficar apenas na aproximação lenta seguida dos facões, mas quando uma dezena começou a se reunir, mudamos de estratégia e comecei a golpear os que se aproximavam para Samuel finalizá-los no chão. Em dez minutos, já estávamos completamente cobertos de suor e meus braços começavam a protestar. Quando dois corredores se destacaram da multidão, iniciando uma corrida em nossa direção que atraiu outros, abandonei a cautela:
— Agora, Samu! Vamos voltar para o carro!
Assim que ouviu meu comando, conforme combinamos, abandonou sua tarefa e começou a correr comigo. Chegamos até o veículo e entramos cada um de um lado, mas depois que pisei no acelerador, percebi a falha catastrófica do nosso plano: o pneu estava emperrado.
— Que merda, acho que estamos atolados! — Falei, sem perceber que minha voz estava na altura de um grito. Os corredores ainda estavam longe, mas cobriam muito terreno a cada passada. Mesmo que lidássemos com eles, uma parte considerável da manada em frente ao portão também os seguia.
— Deixa que eu empurro. — Foi tudo o que Samuel falou antes de sair do carro sem qualquer hesitação.
Abaixei a janela do motorista:
— Samuel, vamos precisar correr para longe!
— Não! Continua acelerando!
Mesmo que meu coração estivesse prestes a sair pela boca, obriguei-me a seguir sua ordem e pisei mais fundo no acelerador. Vi pelo retrovisor as veias saltadas no pescoço de Samuel enquanto ele empurrava a parte de trás do jipe, uma nuvem de poeira e lama se erguendo próxima a ele.
Quando estava pronta para abandonar o volante e arrastá-lo dali, senti o solavanco da roda desprendendo. Gritei para Samuel e ele imediatamente correu para dentro, a poucos passos de vantagem dos corredores.
— QUE MERDA! — gritei quando um deles se atirou para dentro da minha janela aberta, tentando me agarrar. Levantei um cotovelo para amparar sua investida, agradecendo mais uma vez pela jaqueta resistente.
Sequer precisei pedir ajuda e Samuel simplesmente estourou a cabeça dele com um tiro rápido. Aquele familiar zumbido no ouvido imediatamente abafou qualquer som, ao mesmo tempo que o velocímetro finalmente começava a marcar quarenta quilômetros começávamos a levantar lama no zumbi corredor que ficara para trás.
Minhas mãos tremiam, mas me esforcei para mantê-las estáveis no volante. Sentia o coração acelerado enquanto manobrava com o carro e nos tirava de lá pelo mesmo caminho que usamos para nos aproximar, deixando a horda de mortos para trás.
Quase cinco minutos depois, quando a realização de que estávamos vivos finalmente se estabeleceu, Samuel quebrou o silêncio:
— Acho que podemos nos afastar mais alguns quilômetros e passamos a noite aqui, revezando a guarda. — Murmurou. Se estava afetado com alguma coisa, disfarçou completamente: — Amanhã damos a volta pela estrada principal e fazemos a mesma coisa do outro lado.
✘✘✘
Nos dois dias seguintes, nos dedicamos quase integralmente àquela tarefa, sem nunca pensar que talvez poderíamos estar ali apenas pelo medo de seguir em frente e nos depararmos com a realização de que não havia ninguém vivo que esperava por nós.
Depois do primeiro contratempo envolvendo o pneu atolado, redobramos o cuidado para garantir uma fuga menos problemática e não esperávamos a situação ficar desesperadora quando precisávamos recuar. Fazíamos dois turnos por dia, seguindo a mesma estratégia. Claro que só arriscávamos aquela proximidade por estarmos adequadamente vestidos, com jaquetas e luvas de couro junto a jeans grossos e coturnos. Felizmente ou não, oficialmente já estávamos no outono e era um pouco menos insuportável usar tantas camadas de roupas.
Mesmo recuar e correr até o carro para fugir também auxiliava nosso plano, servindo para desorientar os zumbis e afastá-los do aglomerado próximo ao portão. Alguns pareciam seguir vagando eternamente atrás do som do carro, e outros perdiam o rumo e seguiam vagando a esmo. Dividimos os dias seguintes em dois blocos de trinta minutos para cada investida, partindo após derrubarmos cerca de quinze ou vinte zumbis cada, para evitar a exaustão.
Ao final do terceiro dia, terminando de lidar com as últimas criaturas que saíam pelo portão tombado do condomínio, finalmente conseguimos entrar.
Durante todo aquele tempo, prestei atenção em todos os cadáveres, sentindo o coração acelerar com cada detalhe que lembrava algum dos meus colegas: o cabelo loiro e ondulado de uma zumbi que tinha minha altura, a figura magrinha e de pele escura de outra, até os dreads de um zumbi me fizeram pensar, por um segundo, que podia se tratar de Alex... até eu lembrar que ele já estava morto.
Nessas horas, eu e Samuel praticamente não nos falávamos para evitar chamar atenção, mas era perceptível como seu nervosismo crescia a cada avanço. Cada vez que voltávamos para o condomínio, depois de algumas horas afastados para esperar os zumbis voltarem à sua eterna apatia, tornava-se inevitável a realização de que eventualmente conseguiríamos.
Voltaríamos para a nossa casa.
Um grunhido exausto arranhou minha garganta quando cravei o machado no rosto de outro zumbi, àquela altura sabendo que a melhor escolha era simplesmente deixá-lo cair com a criatura para recuperá-lo depois. Ainda que não tivesse sofrido complicações pela infecção, o ferimento da minha mão esquerda me impedia de segurá-lo adequadamente. Às vezes, eu arriscava alguns golpes, apenas para desistir e segurar mais perto da lâmina, como se fosse uma machadinha.
Limpei o suor da testa e senti os fios compridos do meu undercut. A última coisa que me importei nas últimas semanas era a minha aparência, mas sentindo o comprimento do meu cabelo começando a roçar na clavícula, só queria cortá-lo de uma vez.
Olhei ao nosso redor, depois para o que me esperava dentro do condomínio, e concluí que talvez sequer precisássemos esperar pelo dia seguinte. Nossa constante movimentação separou a horda que obstruiu a entrada. O ponto negativo era que os que restavam estavam tão espalhados que demoraríamos muito tempo para abater todos com aquela ideia de manter a discrição.
— Samu, o que acha de tentarmos entrar? — perguntei, caminhando em direção à entrada. Parte do muro havia desabado com a batida do caminhão, mas apesar de conseguir vislumbrar de relance o interior, era difícil ter noção do que realmente encontraria sem entrar lá dentro. Acima de tudo, se haveriam mais corpos familiares.
Demorei a perceber que a falta de resposta era um alerta, tendo me acostumado com os últimos minutos de completo silêncio. Estava colocando a cabeça para dentro, notando a quantidade de corpos incinerados que haviam ficado lá, quando dei falta de Samuel.
Quando virei para trás, apesar de vê-lo com vida, senti o coração pesar.
Meu amigo estava completamente imóvel a alguns passos de mim, segurando seus braços em volta do corpo com tanta força que talvez ficasse com marcas. Samuel tentava e falhava em lutar contra as lágrimas, os olhos avermelhados brilhando com a umidade sob o sol de fim de tarde.
Ele abriu a boca, mas sua voz não saiu. Respirei fundo e prendi o machado no coldre, varrendo rapidamente os arredores com o olhar para garantir que tínhamos tempo.
Coloquei uma mão no seu ombro no momento em que as primeiras lágrimas deslizaram, mas esperei quase um minuto inteiro até que ele conseguisse controlar um pouco a respiração.
— Você não precisa vir agora. Quer dizer, não precisa fazer nada que não queira — garanti.
Samuel me olhou nos olhos e pareceu querer falar alguma coisa. Então me esforcei para entendê-lo.
— Eu vou entrar, tudo bem? — perguntei, e ele assentiu. — Vou tomar cuidado e não me afastar muito. Se for seguro, pode deixar que eu cuido dos corpos. Isso te parece bom?
Samuel inspirou profundamente e assentiu de novo. Percebi o aperto que dava em seus próprios braços se intensificando e pensei que provavelmente estava lutando contra memórias terríveis.
— Não esqueça que depois daqui vamos para Blumenau encontrar sua mãe.
Não era do meu feitio fazer aquele tipo de promessa, mas as revistas pelos arredores do condomínio pelo menos pareciam confirmar que o corpo de nenhum deles estava do lado de fora. Independente do que acontecera enquanto fugiam naquela noite, provavelmente tiveram sucesso em sair dali com vida.
Tirei a mão do ombro de Samuel e ele a segurou com a sua própria, dando-me um leve aperto como quem me deseja sorte. Preparei o machado e me virei para dentro do condomínio.
— Volto já, mas fique atento aos arredores, ok? Consegue assobiar? — Samuel concordou. — Então pode me avisar caso precise de ajuda.
Respirei fundo e o deixei para trás, sem sequer saber se eu estava preparada para o que quer que encontraria lá dentro.
A nossa antiga casa, sempre mantida com esmero por todos os moradores, agora parecia apenas uma caricatura horrorosa. Observei a carcaça queimada do caminhão que destruiu parte da primeira casa, de onde tirei Celso e Laura. Tivemos muitos dias de chuva, por isso a maior parte dos rastros de cinzas já tinham sido levados há tempo, restando apenas carcaças incineradas para serem comidas por vermes.
Calculei novamente o tempo. Depois de um mês, os corpos de Alex e Tomas estariam completamente putrefatos. Isso não me impediria de enterrá-los dignamente, mas não tornava aquela tarefa mais agradável.
Amparei a aproximação de um dos errantes restantes com o machado, e me esforcei para parar de relembrar os detalhes do antigo condomínio e evitar ser pega de surpresa. Vários vagavam pelas ruas amplas em sua eterna busca. Meus braços e pernas doíam como o inferno, mas não senti a necessidade de recuar ainda, pois olhada rápida me fez desconfiar de algo.
O fogo havia se espalhado até o casarão onde eu, Mei, Guilherme, Leonardo, Melissa, Victória e Paulina morávamos, e consumido também parte da casa que sustentava nossa torre de vigia. Vidros quebrados e pedaços de telhas estavam faltando, mas deduzi que as tempestades que se espalharam por aquele mês haviam sido as responsáveis. Embora meu principal impulso fosse correr até a casa onde morei por tanto tempo em busca de qualquer sinal de que outras pessoas passaram por ali, obedeci meus instintos e segui até o local onde eu sabia que encontraria o corpo de Adão.
Era claro para mim como se o local onde seus restos jaziam tivesse sido marcado a ferro em minha mente. Aquele homem havia sido praticamente devorado por zumbis, pois fora soterrado por eles quando ainda era humano. Naquele mês, peguei-me pensando algumas vezes como seria rever os olhos pequenos e sanguinários daquele homem, mas a verdade é que qualquer coisa naquela massa de carne devorada era indistinguível. Ainda assim, não foi a presença dele quem me atraiu.
Abaixei para enfiar a faca em um zumbi com as pernas completamente queimadas que apenas se arrastava em minha direção, e continuei até a escada caída diante do acesso à torre de vigia. Tão claro para mim quanto o local da morte de Adão, era o que deveria ser o de Tom. Onde eu o encarei de cima antes de dar o tiro que o pouparia de ser comido pelos zumbis.
Onde eu devia encontrar seu corpo, mas também onde não havia nada.
Sequer comecei a pensar no motivo por trás daquilo, quando um som impensável rompeu o silêncio:
— REBECA, PELO AMOR DE DEUS, VEM AQUI!
Já seria estranho ouvir a voz de Samuel tão alta, mas era mil vezes mais apavorante após saber que ele estava com dificuldade para articular a fala há menos de alguns minutos. Quanto tempo eu perdi ali? Será que ele tentou assobiar e eu não tinha ouvido, perdida na reconstituição daquela noite?
Simplesmente passei correndo, ignorando a dupla de zumbis que cambaleava atrás de mim. Desviei dos escombros do muro e corri como se fugisse do demônio em direção à rua, alcançando a pistola no coldre para ajudar Samuel.
Quando passei pela entrada, deparei-me com meu amigo completamente mortificado, os olhos azuis perdidos no horizonte.
— O QUE HOUVE, SAMUEL?! — perguntei de volta, indiferente à população inteira de zumbis que estávamos alertando. Primeiro fiz questão de olhar para os nossos arredores para garantir que nenhum de nós corria perigo imediato.
Quando finalmente segui os olhos azuis de Samuel para encontrar o que o perturbava, percebi que a única explicação plausível era que eu estava acordando de um pesadelo.
Porque custei a acreditar no que meus olhos viam quando percebi que Mei, completamente imunda e mancando de uma pata, corria a toda velocidade em nossa direção.
✘✘✘
Nota da autora:
Eu A-MEI esse final. O que acharam????
Imagina o plot twist, a Mei vem correndo e de última hora a Rebeca percebe que na verdade ela também virou zumbi 👀
(é brincadeira kkk já confirmei várias vezes que o vírus não pega em animais)
Caras, sobre o horário: eu posso explicar!
A minha explicação é: esse capítulo tem 4k palavras quando era para ter apenas 2k. É literalmente isso 👉👈
Amigos, quero aproveitar e agradecer também todo o carinho e preocupação que vocês tiveram no último capítulo e garantir que estou me sentindo muito bem! Vocês são as coisas mais preciosas da minha vida 🧡🖤
Agora vou desmaiar na cama porque são 2:30 kkkk
Espero que tenham gostado do capítulo!
Essa semana prometo colocar todos as respostas dos comentários em dia!!
Um beijo a todos, uma boa madrugada.
E não sejam mordidos!
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