Capítulo 19.
Em quase um ano sobrevivendo ao apocalipse, eu nunca senti tanto medo quanto naquela noite.
Quando abri os olhos, sentia-me tão mal quanto no momento em que os fechei. Com a garganta seca e o corpo completamente coberto de suor, minha febre não parecia ter cessado enquanto a dor no corpo só se intensificava.
Assim que me encontrei sozinha, com as nuvens escuras no céu cinza indicando que uma noite tempestuosa viria, meu coração começou a acelerar de preocupação. Eu não consegui acordar quando Samuel se foi (ou talvez estivesse delirando de febre e sequer me recordava do momento) e ele provavelmente foi revistar as residências vizinhas sozinho.
Mesmo enquanto ouvia suas histórias na noite anterior e tentava obrigar meu corpo tenso a relaxar, não parava de pensar nas estratégias que usaríamos para saquear as casas. Como de praxe, os muros da frente eram mais altos, com grades e arames que estendiam seu comprimento, enquanto aqueles que dividiam as casas vizinhas eram relativamente menores. Bastaria uma escada ou um apoio mais alto para pularmos, mas ainda havia a ameaça de possíveis mortos-vivos no outro lado. Apesar do tempo ter aumentado minha coragem, até hoje detestava me esgueirar por casas pouco iluminadas em silêncio, tentando encontrar os mortos antes que eles me achassem, como Paulina fazia. Sempre preferi atraí-los com um barulho antes de entrar, mesmo correndo o risco de eles se reunirem em um grupo — normalmente dava mais trabalho matá-los assim, mas, na minha opinião, diminuía significativamente a margem para erros. E me fazia sentir menos medo.
Agora nenhuma das estratégias que pretendia dividir com Samuel serviam para nada, pois ele já havia partido. A única vez que acompanhei ele e Tom em uma busca, foi para entrarmos em um mercado fechado numa área praticamente vazia. Sequer tivemos que enfrentar zumbis, e aquele era meu único parâmetro das habilidades de Samuel.
Comecei a chorar compulsivamente quando percebi a jarra de água que ele havia deixado ao meu alcance na mesa de cabeceira, junto com um pacotinho amassado de bolachas de água e sal que provavelmente encontrara abandonado em um armário. Eu quase não conseguia comer, mas Samuel tinha de racionar comida e mesmo assim guardou aquilo para mim.
Quis gritar por causa da minha situação, mas, principalmente, com o quão vulnerável ela o deixava. Samuel havia recém perdido o pai e agora precisava se dedicar quase inteiramente cuidando de mim, e eu não podia fazer nada para ajudá-lo. Sequer me unir aos saques que, desde que nos estabelecemos no condomínio, eram minha especialidade.
Sentia-me mal por duvidar da capacidade de Samuel, claro, mas o medo de perdê-lo era muito maior. O medo de vê-lo morrer por minha causa.
Quando abri a boca para suplicar por sua vida a qualquer coisa que minha mente delirante pudesse pensar, um estrondo metálico se elevando entre a chuva fez o ar em volta de mim congelar. Tranquei o ar e nunca desejei estar tão errada, pois imediatamente soube que a porta da garagem havia cedido. Bastou alguns segundos em silêncio para perceber que os grunhidos estavam mais próximos.
Como eu e Samuel passamos a maior parte do tempo em silêncio quase absoluto, era provável que a horda de zumbis tivesse se dissipado um pouco, e aqueles que continuaram pressionando a porta simplesmente estavam absortos em uma tarefa que há muito tempo já perdeu o significado. Essa era a única justificativa para não haver um ataque imediato à porta de madeira da frente da casa, mas o som provavelmente atrairia outros. Como eu estava no quarto há mais de vinte e quatro horas, sequer sabia se as janelas de vidro estavam fechadas com venezianas ou bastaria uma investida motivada por um som meu para que eles invadissem a casa.
Apertei as mãos contra a boca com tanta força que a gaze da minha esquerda sujou com sangue de novo. A noite era escura e meus olhos estavam acostumados somente para distinguir poucas sombras no quarto. Mesmo se houvesse uma arma ali ou alguma maneira de me defender, eu não sentia força no corpo para levantar da cama.
Já não sabia se estava enlouquecendo quando tive a impressão de que meu coração batia com tanta força que a dor na costela se tornava uma tortura. Enquanto os grunhidos de zumbi ficavam ensurdecedores na noite escura e silenciosa, comecei a pensar se Samuel também tinha ouvido o barulho do portão cedendo — e o pensamento intrusivo de que ele sequer estava vivo para ouvir fez todo o meu corpo estremecer.
Eu tremia de frio graças à febre e sentia uma fome debilitante, mas nada disso me convenceu a me mover um centímetro sequer na cama, permanecendo imóvel enquanto cada barulho que parecia indicar uma aproximação dos zumbis me dava um sobressalto. Dormir logo ficou fora de cogitação, porque eu não suportaria acordar com aquelas criaturas invadindo meu quarto. Eu não fazia ideia de como, mas me obrigaria a lutar se fosse necessário.
A noite se arrastou, e Samuel não voltou.
✘✘✘
Dormir era uma palavra forte para os poucos minutos naquela noite em que perdi a consciência graças ao cansaço, acordando sobressaltada, imaginando cenários em que zumbis já tinham se infiltrado no meu quarto e agora espreitavam nas sombras. Por mais tempo do que era razoável, encarei um casaco provavelmente abandonado há mais de um ano sobre a cadeira da escrivaninha, temendo que a qualquer segundo ele se transformasse em um dos predadores que vagavam pelo jardim da casa.
Só o esqueci quando o barulho estridente de um vidro quebrando fora do quarto chegou até mim. Parecia ter sido algo aleatório, porque demorou até o som de um corpo caindo no chão o acompanhar, e os passos que começaram a se arrastar pela casa soavam sem rumo.
Naquela noite, tive todo o tempo do mundo para imaginar como eu morreria. Tremendo sob cobertores demais para um dia de verão, criei cenários na minha cabeça em que, por descuido, eu fazia um som que os atrairia para a porta e rapidamente a derrubariam. Então comecei a pensar em formas de cessar minha própria vida, para me poupar daquele destino sangrento. Queria levantar da cama e procurar algum objeto cortante, mas se eu estivesse errada e não encontrasse nada ali, só correria o risco de revelar aos invasores minha posição.
A única opção viável era permanecer trancada, em silêncio, e eventualmente morrer de fome. Ou graças às infecções — o que provavelmente não levaria muito tempo. Diante daquilo, enxerguei-me novamente naquele banheiro do colégio, há mais de um ano atrás, quando achava que a minha única opção também era esperar a morte. Apesar da ideia continuar me desgostando tanto quanto daquela vez, naquele momento meu corpo sequer era um aliado.
Ao amanhecer, eu já tinha perdido qualquer noção do tempo, afundada entre grunhidos de zumbis e barulhos alarmantes de passos indo e vindo, que nunca pareciam chegar e ao mesmo tempo nunca paravam de se aproximar. Quando um novo som chegou até mim, demorei para compreender que não era um delírio febril. Com um sobressalto de alerta, virei para a janela, tateando por costume ao meu redor em busca de qualquer tipo de arma.
Meu corpo exausto foi banhado de alívio ao reconhecer os olhos claros e a expressão impassível de Samuel, que me alertou de sua presença com um toque no vidro da janela. Ele fez um sinal claro para que eu me aproximasse e apontou para algo. Forçando a vista, entendi que era a trava da janela. Eu precisaria me levantar para que ele entrasse.
Eu sabia que estava mal, mas era quando tentava me levantar que tinha real noção do estrago. Todo o meu corpo estava fraco graças à pouca comida que ingeri e a sensação de tontura foi instantânea quando me ergui. Fiz uma força tremenda para impedir a tosse de escapar e isso machucava, mas não podia arriscar chamar atenção das criaturas.
Apoiando-me nas camas até onde foi possível, e depois no armário de madeira, caminhei em direção à Samuel. Quando estava quase lá, uma fraqueza súbita me fez cambalear e apoiar o peso do corpo na perna machucada. Para não ir ao chão, segurei-me como pude na janela e fiz o tilintar do vidro ecoar pelo quarto. Coberta de suor e com frio, tentei murmurar um pedido de desculpas para Samuel, mas ele permanecia com os olhos em mim, com uma expressão difícil de ler. Apontou mais uma vez para a tranca da janela para me lembrar de continuar e o obedeci, percebendo como minha mão tremia quando precisei de toda a minha força para liberar a trava.
Samuel espalmou a mão no vidro e o abriu pelo lado de fora, enquanto eu franzia os olhos para lutar contra o brilho do sol. A tempestade havia cessado e os raios se espremiam por entre nuvens brancas. Nos poucos dias que consegui caminhar pela casa, não havia pisado do lado de fora uma única vez e só agora percebia que aquela janela dava para um pátio do lado de trás. Era pequeno e coberto por um piso claro que refletia com força a luz do sol, fazendo-me perceber como a minha cabeça doía com enxaqueca.
— Rebeca, desculpa pela demora. — Meu amigo falou, num sussurro. — Anda, você precisa sair. Aqui atrás é seguro.
No mesmo instante, ouvi o primeiro golpe contra a porta do quarto, que fez as parede estremecerem. Um grunhido gutural gelou minha espinha e foi acompanhado por outros rosnados das criaturas que começavam a se amontoar do lado de fora do quarto.
— Que bom... — Comecei a falar e imediatamente tive outro ataque de tosse. Minha garganta arranhada lembrava que eu não havia me movido nem para tomar um gole de água naquela noite.
— Rebeca, vamos. Eu te ajudo.
Assenti para Samuel, sentindo que o mundo estava em câmera lenta. Com dificuldade, aceitei segurar sua mão enquanto tentava passar uma perna por vez pela janela.
— Onde... Como você... — Tentei perguntar, esforçando-me para manter a voz baixa.
Primeiro ele me ajudou a passar pela janela, e sustentou meu peso quando ameacei cair. Olhei ao redor, em busca de alguma ameaça, mas a parte traseira parecia estar vazia. Não sabia dizer se havia um portão que nos protegesse ou os zumbis apenas não haviam encontrado o caminho ainda.
— Eu fiquei preso em uma das casas. Fui pego de surpresa por dois zumbis e precisei me esconder no banheiro. Levei algum tempo até me acalmar e reunir coragem para enfrentá-los. — Apesar de parecer um pouco apressado, Samuel parou para me explicar, então deduzi que afinal não estivéssemos sob risco imediato. — Quando eu saí, já era noite e fiquei com receio de voltar enquanto ainda estava escuro. Desculpe por demorar tanto, Rebeca.
Ele não esperou qualquer uma das diversas perguntas que eu queria fazer, colocou meu braço em volta do seu pescoço e começou a se afastar da janela. Olhando na direção que íamos, percebi uma escada de alumínio apoiada no muro que dividia a nossa residência com a de trás.
Cambaleei ao seu lado, sentindo o enjoo e a tontura pioraram a cada passo, mas me obriguei a respirar fundo — não ajudava em nada, mas qualquer coisa seria melhor do que desmaiar e deixar nós dois completamente vulneráveis.
— Vamos para a casa de trás, aqui não é mais seguro. Ela tem muros altos e encontrei um pouco de comida lá. Também encontrei antibióticos, mas não são os nomes que você me indicou.
Assenti, incapaz de pensar em uma resposta e me concentrando apenas em seguir em frente.
Subir a escada foi um inferno, principalmente porque eu não conseguia evitar de colocar peso sobre a perna ferida. A gaze que a envolvia estava suja de sangue e pus e doía mais do que nos primeiros dias, a aparência preocupante. Demoramos quase dez minutos sob o sol quente para que eu conseguisse chegar do outro lado, Samuel me fazendo esperar no muro enquanto trocava a escada de lado, porque não haveria a menor chance de eu pular.
Tratava-se de outra casa simples de apenas um piso, desta vez de paredes amarelas. No canto do jardim, dois corpos estavam estirados e imaginei que Samuel os tivesse trazido até ali após matá-los. Entramos pela porta traseira que já estava arrombada e, assim que alcancei a primeira superfície confortável — o sofá da sala — meu corpo vacilou, completamente exausto e com o pingando de suor.
Samuel imediatamente me cobriu com a capa de sofá e se dirigiu para a cozinha, enquanto eu lutava contra a dor na costela quebrada para recobrar a respiração, sofrendo de eventuais ataques de tosse. Depois de alguns minutos, Samu me trouxe três comprimidos, dois dos quais reconheci serem para dor, e me obrigou a comer um pouco do arroz com sardinha que tinha feito, junto com um pouco de água.
— Me desculpa... por não conseguir te acompanhar. — Foi a primeira coisa que falei quando comecei a me sentir um pouco melhor. — Eu fiquei tão preocupada, achei que você não...
Mas sua expressão estava séria.
— Rebeca, esse é o único antibiótico que tinha na caixa. Eu vou precisar sair atrás de mais.
— Como assim?! — Questionei, baixando o copo d'água. — Samuel, a rua deve estar cheia de zumbis depois dos barulhos de ontem. Eu não vou conseguir te ajudar, você não...
— Você vai morrer desse jeito. Você não melhora, seus machucados estão piores... ainda não medi sua febre, mas você ainda está quente. Não temos escolha.
Estiquei-me em sua direção e segurei seu pulso. Queria que fosse com toda a minha força, na esperança de conseguir mantê-lo perto, mas estava fraca demais para isso.
— Eu não posso deixar você continuar se colocando em risco por causa de mim.
Ele franziu as sobrancelhas:
— Você já fez a mesma coisa por mim.
As últimas palavras de Tom e o pedido desesperado para que eu protegesse Samuel retumbavam em meus pensamentos.
— Era diferente! Nós não conhecemos essa cidade, Samu. Você está a pé, desarmado e eu não posso te proteger. Você podia ter morrido ontem e eu sequer estava lá para te ajudar.
— Você também podia ter morrido ontem, Rebeca. Pode morrer hoje. Nós não temos escolha! — Sua voz permanecia estável, mesmo que eu estivesse à beira das lágrimas. — Você precisa entender que não está em condições de proteger ninguém. Você quem precisa ser protegida. Quer me ajudar? Então tente comer e se concentre em melhorar. Eu vou trazer os remédios.
Em nenhum momento ele ergueu a voz e sua expressão se mantinha séria, quase entediada, como se não aguentasse mais me ouvir suplicar. Queria tentar explicar que seu pai tinha me pedido para mantê-lo a salvo e reencontrar Carol, mas não conseguia encontrar as palavras.
Eu me enxergava com facilidade saindo daquela casa sozinha, se a situação estivesse invertida. Desde o dia em que fui liberta do cativeiro de Klaus com seus capangas atrás de mim, quando precisei enfrentá-los e depois seguir até o condomínio; apenas para precisar voltar (Leonardo estava me dando cobertura, mas não entrou no edifício) para resgatar os reféns, fazer as coisas sozinha naquele mundo não me assustava mais. A solidão que gelava meus ossos era a de me imaginar perdendo todos, com o buraco que nasceu após a morte da minha avó e continuava crescendo a cada perda apenas aumentando.
E, de certa maneira, eu sentia ele aumentar a cada instante. No começo, foi fácil alimentar a esperança, prometer a mim mesma que logo melhoraria e poderia ir atrás dos meus companheiros... mas os dias continuavam passando e eu só via a nossa distância aumentando. Eu não fazia a menor ideia se o grupo de Victória havia conseguido fugir, onde estavam Melissa e Paulina, ou se Leonardo e Guilherme foram atacados assim que pisaram em Blumenau.
Nunca foi fácil para mim não assumir responsabilidades, mesmo as cujos fardos quase me enlouqueciam. A verdade é que, após meu coração ser dilacerado pela milésima vez, eu entendi que era forte o suficiente para suportar aquele mundo... Para sofrer e me levantar. Justamente por isso, queria ser eu a carregar todo o peso. Se eu sofresse por quem eu amava, talvez pudesse vê-los livres da dor.
Durante todo aquele dia, tentei me convencer de que precisava deixar Samuel ir para ter alguma esperança de melhorar e conseguir reencontrar o grupo. Falei a mim mesma que faria o mesmo sem hesitar, se fosse ele quem precisasse de ajuda.
Mas nada disso impediu o aperto sufocante no meu coração ao vê-lo partir no dia seguinte. Implorei para que ele não fosse, disse que pensaríamos em outra solução, mas ele nem virou o rosto para ouvir minhas súplicas quando saiu.
✘✘✘
Nota da autora:
Samuel: Rebeca, você está muito ferida.
Rebeca: Ok
Samuel: Você não está em condições de me ajudar e precisa melhorar para sairmos daqui.
Rebeca: Correto
Samuel: Vou buscar remédios, ok? Você faria o mesmo por mim.
Rebeca: Parece justo.
Samuel: Então tá, estou saindo, ok?
Rebeca: PARE IMEDIATAMENTE NÃO SE ATREVA 😭
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Oi, amigos!
Antes de qualquer coisa, de novo, peço desculpas pelo atraso na atualização. Desculpa por se tornarem tão frequentes, mas esse ano está corrido e os preparos para repostar Em Decomposição acabaram me tomando muito tempo.
Aproveito para lembrar vocês de me seguirem no instagram (@autoramarinabasso) ou ficarem atentos ao meu mural no Wattpad quando não vêm atualização. Eu sempre aviso por esses dois canais.
Eu sei que você devem estar cansados de ver a Rebeca completamente destruída e se martirizando mais do que o normal, mas essa é uma parte muito importante desse livro 🙏 Tanto para o Samuel quanto para ela. Essa parte também é longa porque ela é longa NA HISTÓRIA: lembrem que eles já estão ali há mais de uma semana, e sem qualquer previsão de melhora (na verdade, as coisas não param de dar errado kkkk).
Que mundo vai esperar eles quando conseguirem sair dali (se conseguirem 👀)?
Descubra isso e muito mais no próximo episódio!!
Um rápido lembrete: nessa quinta-feira teremos uma live de leitura coletiva de Em Decomposição, falando dos primeiros capítulos postados, mudanças na revisão e, no geral, papeando sobre a saga. Vai acontecer no meu canal na Twitch (@hunt3rina) às 19h, caso queiram aparecer 🖤 Eu ficaria muito feliz de recebê-los.
Desejo um beijo e uma ótima semana para todos.
E não sejam mordidos!
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