9
Lilo insistira para que fossem todos no carro dele, depois voltassem para jantar e passassem a noite na fazenda, mas Nancy queria ir embora assim que visse a casa.
— Mas minha filha, já está escurecendo. Viajar à noite é perigoso.
— Que nada, Seu Lilo, já estou acostumada. Saindo lá pelas seis, quando forem oito horas já vamos estar em casa.
— Menina, essa Dutra é um perigo!
— Mas não vamos por ela. Ali em Taubaté já dá para pegar a Carvalho Pinto. Não se preocupe.
— Bem, vocês que sabem. Voltem com mais tempo.
— Voltaremos, sim.
Onofre também não achava uma boa pedida viajar à noite, ainda mais com Nancy ao volante. Pensara em ficar, depois voltar de ônibus, mas não seria correto para com as meninas.
Ao adentrar a casa, Nancy sentiu-se retornando ao passado, como se ela própria tivesse sido uma das personagens daquela fatídica cena. A casa sofrera reformas, mas a posição da cozinha em relação ao quarto, onde outrora dormiam as crianças... O corredor estreito... A parede do calendário... Era realmente a casa de seus sonhos, a casa com a qual, literalmente, sonhava todas as noites.
Não eram boas sensações, compartilhadas por Lilo, o que fez Onofre e Lia também sentirem um leve desconforto. O fazendeiro mostrou rapidamente tudo o que havia para ser mostrado, sem fazer questão de muitos detalhes e logo convidou a todos a saírem para o ar exterior, a fim de se libertarem daquela opressão.
Nancy, para espanto de todos, mudou de ideia:
— Gente, eu estou tendo um pressentimento, acho que devemos ficar sim, seu Lilo tem razão.
O ancião estampou no rosto um ar de felicidade:
— Boa resolução, menina.
No trajeto, Lia sentia-se satisfeita, apesar de tudo, por isso comentou:
— Puxa, ainda bem que deu tudo certo. E nós que pensamos que seu Lilo era um assassino. Que nada, um amor de pessoa. Vamos voltar um dia, não é, Nancy?
Ela tinha o pensamento longe, afinal continuavam sem ter todas as respostas.
— Nancy?
— Quê? Ah, desculpe. O que foi que você disse?
— Se a gente pode voltar algum dia...
— Claro. Vamos voltar, sim. Gostei do seu Lilo e agora, de alguma forma, me sinto ligada a ele, mas tem uma coisa que eu não lhes contei.
— E o que foi?
— Várias vezes, lá na fazenda, tive a impressão de já conhecer tudo aquilo. Dependendo do ângulo que eu olhava as coisas, principalmente as mais antigas, era como se já tivesse estado ali.
Seu Onofre, dessa feita no banco da frente, também fez um comentário:
— Também tenho algo que não falei a vocês.
— E o que foi, seu Onofre?
Lia, no banco de trás, sentira o coração disparar:
— É mesmo, seu Onofre? O que é?
— Calma, meninas. São duas colocações a respeito de todo esse caso.
Lia já tinha o coração aos pulos:
— Ai, estou ficando assustada. Fale logo.
— Bem, a primeira coisa é o seguinte: apesar de não demonstrar, estive o tempo todo imaginando qual seria a razão de nos terem trazido até aqui. Quando digo "trazido", quero falar das forças do Universo, do destino, ou algo assim. Abstraindo-se dos fatos, a primeira coisa que me ocorreu: haveria a possibilidade de Ana Maria não ter sido assassinada por José?
As duas estavam confusas.
— É apenas uma hipótese, não encarem como a verdade. Se ela tivesse morrido antes da irmã chegar, não teríamos seu testemunho acerca da identidade do assassino, mas, diante de sua declaração, somada a todos os agravantes, quem iria duvidar dela? Ninguém! Agora, o que nos garante que Ana Maria falou a verdade? Terá sido José mesmo ou foi outra pessoa e ela achou por bem incriminar o marido? Nancy viu um homem esfaquear Ana, mas não viu o rosto dele. Ou mais: quem garante que a irmã falou a verdade? Será que Ana realmente lhe contou algo ou ela inventou tudo, por estar querendo encobrir alguém? Alguém que Nancy viu em seu sonho, mas que pode não ser José. Uma dessas duas ideias talvez possa justificar os sonhos: um crime do passado, aparentemente resolvido, mas que, na verdade, condenou um inocente à morte.
Elas seguiam confusas. Nancy questionou:
— O senhor não acha tudo isso muita maluquice?
— Acho, sim, mas estou tentando descobrir o motivo desses sonhos. Já sabemos que expressam fatos reais, mas não sabemos o porquê deles.
— Essa é a minha maior questão — respondeu Nancy.
Lia fez um aparte:
— Com certeza a polícia viu tudo isso, não?
Onofre deu respaldo à ideia:
— Bem observado. É bem provável que alguém mais tenha ouvido Ana contar sobre José — na ambulância, por exemplo. E com certeza verificaram as digitais de José na faca. Há ainda o fato de ele ter fugido. E pode ser que tenham encontrado manchas de sangue em suas roupas, afinal, ele não desferiu apenas uma facada, a chance de ter se sujado com o sangue é muito grande. A polícia não ia errar nessas coisas. E Ana ou a irmã terem mentido, são possibilidades meio absurdas mesmo.
Lia soltou o ar dos pulmões pela boca, aliviada e feliz por ter ajudado, mas Nancy ainda tinha o semblante carregado:
— Viajamos cento e cinquenta quilômetros e parece que não andamos quase nada, essa é a verdade.
¤
À noite, seu Lilo recebeu a visita de dois conhecidos, o casal Célia e Silvio. Célia possuía certos dons, assim considerados por muitos, outros os denominando simplesmente de mediunidade.
— Como vão, meus amigos? — saudou-os o dono da fazenda Rincão.
— Muito bem — responderam quase em coro. — E parece que vocês têm visitas...
Lilo apresentou-os a seus convidados. Célia, ao cumprimentar Nancy, segurou algum tempo mais sua mão, dizendo após uma aparente meditação:
— Você tem muitas perguntas... Está bem inquieta.
Diante da surpresa de Nancy, Silvio apressou-se em dizer:
— Ah, não ligue, Célia é assim mesmo, é o que dizem ser "sensitiva".
Nancy não se sentiu confortável com o comentário, mas Célia logo caiu nas graças de Lia e as duas foram para um canto conversar, o que a preocupou, pois ela sabia da língua solta da companheira.
Durante o jantar — e já quase próximo de seu término, com seu Lilo muito feliz pela inesperada presença de tantas pessoas, conversavam sobre vários assuntos, mas o fazendeiro teve o cuidado de não dizer ao casal de amigos o real motivo da presença de seus convidados paulistanos. Mesmo assim, Célia dirigiu-se a Nancy de forma direta e objetiva, com uma pergunta que a surpreendeu:
— Você acredita na reencarnação?
— Reencarnação? Não, não acredito, mas por que está me perguntando isso?
Não somente Nancy surpreendera-se com a pergunta. Todos se entreolharam admirados. Célia prosseguiu:
— Eu sei que a família de seu Lilo é católica e não está nas crenças do Catolicismo a ideia da alma voltar à vida, noutro corpo e mesmo assim, muitos católicos também flertam com a possibilidade...
Seu Lilo conhecia bem as crenças de Célia e não se importava com suas inserções:
— Interessante, Célia... E o que você diz é verdade. Já soube de uma beata da igreja que foi 'pega' outro dia, tomando passe no centro espírita.
Falara de forma tão jocosa, que todos riram. Célica continuou:
— Ah, seu Lilo. Até sei quem é, mas vamos tomar cuidado com a maledicência... — Voltou-se novamente para Nancy: — Querida, você não acredita, mas tua companheira sim!
Lia confirmou:
— Sim, acredito. Já li alguns romances espíritas e tenho uma tia que frequenta o Espiritismo. Não entendo muito do assunto, mas, pelo que sei, acreditam que nossa vida é planejada antes de virmos ao mundo.
Passara despercebido o fato de Célia ter usado a palavra "companheira", tão compenetrados e curiosos estavam a respeito do rumo que tomava aquela conversa. A sensitiva parabenizou Lia:
— Isso mesmo, querida. O Espírito ou alma, segundo a crença espírita, preexiste ao corpo e planeja seu retorno, mergulhando numa nova vida, em novo corpo. Durante esse mergulho, esquece temporariamente de tudo que se passou antes, para poder retemperar-se nessa nova existência. Encarnar, desencanar e tornar a reencarnar. Essa é uma crença muito antiga e uma lei.
Nancy nem sabia que Lia lera tais livros, com certeza fora antes de se conhecerem. Ficou interessada:
— E qual o sentido disso?
— Evoluir — adiantou-se Silvio. — Aprimorar as virtudes, eliminar os defeitos, adquirir conhecimento e experiência. Atingir a perfeição e aproximar-se de Deus.
Seu Onofre entrou na conversa:
— Conheço um pouco dessa doutrina. Sempre achei que uma vida só não seria suficiente... Mas estou muito curioso por saber: por que fez essa pergunta, dona Célia?
A médium esboçou um sorriso com o canto dos lábios:
— Lia me contou sobre os sonhos, Nancy.
Nancy lançou um olhar de reprovação para Lia:
— Sabia, 'dona' Lia, que você não ia se aguentar... Sua língua não cabe dentro da boca, né?
— Desculpe, mas... Ora, eu acho que a Célia pode nos ajudar.
— Não sei como — rebateu Nancy.
Seu Onofre, ignorando o comentário, dirigiu-se a Célia, logo concluindo:
— Está considerando a possibilidade de...
Célia ajudou-o:
— De Nancy ser a reencarnação de Ana Maria, por que não?
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