7
A ansiedade tomou conta das duas. Seguiam agora atrás do carro por uma estrada de terra que não via chuva há muito tempo. Procuravam manter distância para que a poeira levantada pelo carro da frente baixasse, mas era quase impossível evitar ser engolido por ela. Não seguiam um carro, mas sim a uma nuvem de pó.
— Vamos torcer pra não cruzar com algum carro no outro sentido. Aí eu quero ver — comentou Nancy.
Contaram a seu Onofre de suas preocupações.
— Justa a preocupação, mas o homem rude dos seus sonhos, quantos anos tinha?
— Era jovem. Devia ter trinta anos. E a mulher uns vinte e cinco.
— Pois então! Seu Lilo tem oitenta anos — ele mesmo me disse, quando indaguei se morava há muito tempo na cidade: "Que é isso, meu caro, já tenho oitenta anos e desde que me entendo por gente, moro em Pindamonhangaba". Trinta anos atrás, ele tinha cinquenta. Não, não deve ser o homem que você viu esfaquear a mulher, mas tenho outra sensação...
— Qual? — indagou Lia.
— Posso estar enganado, é claro, mas tenho um leve pressentimento, baseado na amargura que ele demonstrou: Lilo Mendonça é pai da moça assassinada.
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A fazenda de Lilo era muito bonita. Ficava no alto de uma colina, de onde se avistava, segundo ele, quase toda a área de sua propriedade atual. Havia uma varanda com redes em volta da casa. Era uma casa antiga, porém muito bem conservada, de janelas grandes, mas todas equipadas com grades. "Sinal dos tempos", dizia Lilo. "Não dá mais para dormir despreocupado com portas e janelas fechadas só com tramelas".
Ele andava com dificuldade, mas sempre chegava, dizia. Sentou-se à mesa de uma sala de jantar:
— Por favor, sentem-se. Sintam-se à vontade.
Gritou para uma das criadas, a quem pediu que trouxesse um café com biscoitos. Os três o olhavam atentamente. Mesmo do alto de seus oitenta anos, percebia-se a ascendência moral que exercia sobre as pessoas. Aguardavam, ansiosamente, o que ele tinha a dizer — ou a perguntar.
— Estou curioso, realmente. Nunca pensei que nesse fim de vida, já com oitenta anos, fosse topar com um sujeito simpático — o senhor é novo ainda, tem quantos anos?
— Cinquenta e cinco.
— Bem, as moças nem preciso dizer. Novíssimas. Da mesma idade de Ana, quando conheceu José. Mas então, nunca imaginei que a essa altura da vida ia topar com alguém perguntando sobre a maldita loja dos Gouveia.
Falara com tristeza e ao mesmo tempo com raiva. Lia perguntou:
— Quem é Ana? Sua filha?
Ele aguardou a empregada servir a todos o café antes de responder:
— Sirvam-se à vontade, por favor. Mas antes de responder a qualquer pergunta, gostaria de saber como souberam da loja e, principalmente, do crime.
Olhando para Onofre, Nancy percebeu que este lhe fizera um sinal, como a dizer: "Conte tudo! Se seu sonho é mesmo uma visão do passado, agora vamos saber".
Nancy, então, contou toda a história a Lilo. À medida que contava, percebiam-se lágrimas nos olhos dele, que tentava conter inutilmente com os dedos já enrugados. Mantinha, no entanto, a calma e a lucidez. Quando se deu conta, já estava ele mesmo falando. Sua esposa e a filha mais velha já haviam falecido, mas ele tinha ainda mais três filhos, duas mulheres e um homem, todos vivos e casados. Ana Maria, a filha mais velha, vivera na fazenda, nesta mesma em que ele ainda morava. Ela sempre fora uma moça caseira, de ter poucos pretendentes. Aos 20 anos, em 1975, começou a namorar José, filho de um fazendeiro vizinho não muito importante na região.
Lilo não gostava do rapaz, achava-o muito rude. Todavia, permitiu o namoro, afinal, queria que a filha se soltasse um pouco. Namoraram dois anos e meio e ficaram noivos. Até então, tudo corria bem, porém, nos dois anos que se seguiram, as brigas começaram, dado o ciúme de José. Um dos grandes motivos era o assédio de João Gouveia, filho do dono da loja "Autopeças Pindamonhangaba". Às vésperas do casamento, José e Ana haviam brigado por causa de João. Ana garantia que não tinha nada com ele, que às vezes conversavam na praça, quando ela ia à cidade, nada mais. Mas José era muito ciumento e ela, então, depois de uma briga feia, resolveu romper o noivado.
— Algum tempo depois, ela revelou que estava grávida. Quando José ficou sabendo, pediu a ela que o perdoasse, que ele ia se modificar, até por causa do filho, que ele tinha certeza ser seu, pois ela estava grávida de dois meses e, dois meses antes, um dia antes da briga definitiva que resultara no rompimento do noivado, tinham tido relações. Dessa forma, eles acabaram por se casar e foram morar numa casa que tenho na cidade.
Sete meses depois nasciam duas crianças, gêmeos bivitelinos. E foi aí que toda a desgraça teve início, pois um dos garotos era loiro e de olhos azuis e não havia loiros de olhos azuis em nenhuma das duas famílias, pelo menos que se soubesse. E o pior: João Gouveia era loiro de olhos azuis! Reiniciaram-se, então, as brigas. Certo dia José pressionou Ana, que confessou: naquele dia em que romperam o noivado, ela fora à cidade e naquela tarde João a seduzira e ela, com raiva por ser acusada de algo que não fizera, manteve relações com ele também. José, ao saber disso, esfaqueou-a e fugiu. Ana não morreu na hora. A irmã chegou à casa e a encontrou ainda com vida. No caminho para o hospital ela teve tempo de contar tudo, porém não resistiu ao ferimento e morreu. José, foragido, foi morto pela polícia algum tempo depois. Ao ameaçar um policial com um pedaço de madeira, retirado de uma cerca caída, recebeu um tiro do militar, em legítima defesa. A tragédia toda ocorrera em 1982. Na época seu Lilo tinha 52 anos e a filha 27; o genro, José dos Santos Lima, 32.
— Cuidamos dos meninos por treze anos, sempre com a dúvida se eram filhos ou não de José. A família de José nem quis saber das crianças. Venderam a fazenda e foram embora, com raiva da minha filha, como se o filho deles não tivesse culpa na história também. Os Gouveia fecharam a loja e foram cuidar de uma fábrica que tinham aberto em São Paulo...
"Em 1995, o pai de João, o velho Gouveia, apareceu por aqui e exigiu que fosse feito o tal exame de DNA. Na época, era um exame caríssimo, muito mais do que hoje em dia, pois era novidade no Brasil, mas dinheiro não era problema pra eles...
"O exame foi e feito e revelou uma coisa que ninguém podia imaginar: o menino loiro era filho de João; já o moreno, não. Foi notícia em todos os jornais e ninguém entendeu como isso era possível...
Lia estava impressionada:
— Mas como?
Nancy também estava boquiaberta:
— Nunca ouvi falar de uma coisa dessas. O senhor já, seu Onofre?
Ele respondeu que não. Lilo chamou uma de suas filhas, que estava na fazenda e que tinha conhecimentos de Biologia, para explicar:
— É a chamada fecundação heteropaternal ou fecundação múltipla... Trata-se da fertilização de mais de um óvulo durante o mesmo ciclo. Ou seja, dois óvulos são fecundados por espermatozoides de homens diferentes, o que significa que será uma gravidez de gêmeos que não são filhos do mesmo pai.
Lia estava pasma:
— Meu Deus! Nunca imaginei uma coisa dessas... Então um filho era do João e o outro...
— Do José! — arrematou Lilo.
A filha deu continuidade à explicação:
— Esse é o caso da Ana Maria e seus gêmeos. Ela teve dupla ovulação. E os óvulos foram fecundados por espermatozoides diferentes, só que não do mesmo homem. Um era de José e o outro de João. José fecundou um deles numa noite. Na tarde seguinte, João fecundou o outro. É uma história incrível, mas com o advento do DNA, descobriu-se ser mais comum do que se pensava.
Lilo comentou:
— Os desígnios de Deus, quem entende? Fizeram o exame nos garotos e no miserável do João Gouveia. Ficou comprovado que o menino loiro era mesmo filho dele. O moreno não!
"O pessoal do laboratório perguntou se eu não queria que fosse exumado o corpo de José, para comprovar a paternidade do garoto moreno. Mandei eles para o inferno! Eles pensavam o quê, que minha filha era uma prostituta? Que tinha dormido com um terceiro homem em menos de dois dias? Se o moreninho não era filho de João, só podia ser de José! E assunto encerrado!
"Sabe, eu queria ficar com os dois meninos, não importava o que tinha acontecido, mas o loirinho foi levado embora por determinação da Justiça e eu nunca mais o vi, afinal, a família de João Gouveia o levou para Minas Gerais. O garoto que ficou conosco hoje tem 29 anos. Está em São Paulo e mora com a tia, minha outra filha, a mesma que encontrou Ana Maria. É publicitário. Quanto ao branquinho, filho do João Gouveia, procurou o irmão há uns quatro anos, mas os dois brigaram e não fizeram as pazes até hoje. Tenho esperanças que voltem às boas. Gostaria muito de ver os dois juntos novamente."
Nancy:
— E a casa em que a Ana morreu, ainda existe?
— Sim. Esteve alugada até bem pouco tempo, mas agora está fechada. Quer ir lá?
Nancy olhou para Lia, que parecia não fazer objeção.
— Gostaria, sim.
— Mas antes vou pedir a um empregado para mostrar a fazenda a vocês.
E seguiu por um dos corredores, saindo por um portal para os fundos da fazenda.
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