5
Nancy tinha dois irmãos homens, mais jovens, um com 10 anos e outro com 12. Havia um ano e pouco, assumira ser homossexual. Todos na família já desconfiavam, mas não tinham certeza, assim ela resolveu contar logo e enfrentar o preconceito de uma vez, haja vista a pressão psicológica que vivia. Seus pais, porém, surpreendentemente, pelo menos para ela, aceitaram de forma ampla, geral e irrestrita e estavam dispostos a dar todo apoio de que ela precisasse. Daí ela contou que estava namorando uma garota. Soara diferente para eles, o que denotava ainda algum traço mais conservador, mas não externaram o pensamento. Seu nome era Lia. O pai de Nancy, então, alugou a casa em seu próprio nome, arcando ele mesmo com o custo do aluguel. Impôs apenas uma condição: que elas voltassem a estudar, pois só possuíam o segundo grau. Queria as duas formadas e com profissão. O pai ainda lhe dera o carro de presente.
Já com Lia, a coisa tinha sido diferente. Ao contrário de Nancy, os pais dela não suportaram a revelação, sequer imaginavam tal coisa, embora considerassem estranho que ela nunca tivesse namorado. Lia foi expulsa de casa, ficando uns tempos no apartamento de uma tia, até ir morar com Nancy.
— Aquela senhora que vi algumas vezes é sua mãe, Nancy?
— É, é sim.
— Muito simpática. Mas seu pai nunca esteve lá.
— Não. Ele trabalha muito, quase não tem tempo. Mas eu sempre o visito. Eles gostam muito da Lia.
— Que bom que eles pensam assim, mas cuidado com os seus irmãos, hem? Logo vão querer flertar com a Lia.
Nancy estranhou a colocação e o próprio Onofre arrependeu-se de ter dito aquela asneira, embora em tom de brincadeira. A garota comentou:
— É mesmo, nunca tinha pensado nisso. Eles sabem que moramos juntas, mas não sabem da nossa relação.
— Ô, seu Onofre... — admoestou Lia. — Não fica colocando minhoca na cabeça dela, viu? Do jeito que é ciumenta...
— Ah, desculpem-me. Falei bobagem. Peço perdão.
Lia procurou tranquilizá-lo:
— A gente levou na brincadeira, não é, Nancy?
A companheira balançou afirmativamente a cabeça:
— Claro! Seu Onofre, o senhor já é de casa.
A tentação de dizer que se sentia um verdadeiro pai, principalmente de Lia, fora grande, mas se conteve. Perguntou:
— E seus pais, Lia?
— Ah, esses não querem me ver nem pintada de ouro. Não falam mais comigo.
Onofre procurou aliviar qualquer eventual tensão:
— Te deserdaram, então?
— Com certeza.
— E você tem irmãos?
— Tenho uma irmã. Ela é mais velha e casada, mora em Brasília com o marido e dois filhos. Faz tempo que não a vejo. Vem pouco a São Paulo, duas vezes por ano, no máximo.
— E o que ela pensa do seu relacionamento com Nancy?
— Também é contra. Lá em casa ninguém concorda.
Onofre procurou animá-la:
— Espero que seus pais mudem de ideia.
— Tomara. É o que a mãe da Nancy sempre diz, não adianta ficar alimentado ódio, só faz piorar as coisas. Ela sempre diz pra eu pensar neles com carinho, mesmo que me rejeitem.
— Está certa, afinal, são seus pais. Dê tempo ao tempo. Quem sabe não acabem mudando esses pensamentos eivados de preconceitos.
— Alguém já disse que o senhor fala muito difícil?
— Ah, sempre dizem, Lia. A Gema mesmo não cansa de me dizer. Em geral não entende metade do que eu falo.
Nancy observou que já estavam a um quilometro da entrada de Pindamonhangaba. Logo à frente, saiu à direita, pegando a alça de acesso à cidade. No próspero vale do Paraíba, faziam companhia a Pindamonhangaba os municípios de Jacareí, São José dos Campos, Caçapava, Taubaté e Aparecida (local da Basílica Nacional de Nossa Senhora Aparecida), bem como Guaratinguetá e Lorena — e no alto da serra da Mantiqueira, a mais famosa e fria de todas: Campos do Jordão.
Nancy cruzou a rodovia Presidente Dutra por cima, pois Pindamonhangaba ficava à esquerda de quem ia para o Rio de Janeiro. Já na estrada de acesso local, observou algumas indústrias, não muitas e um charmoso hotel. Dirigindo mais cinco quilômetros, logo estava na cidade. Antes de transpor uma linha de ferro, por meio de um viaduto de acentuado aclive, parou o carro no acostamento e perguntou:
— Para onde vamos agora?
Lia nem fazia ideia. Seu Onofre sugeriu:
— Acho que devíamos perguntar se alguém conhece a tal loja. A cidade não parece muito grande... Olha, vamos adotar a seguinte medida: até prova em contrário, eu sou pai da Lia e você, Nancy, uma sobrinha, está bem? Não é bom que saibam do relacionamento de vocês. Temos que facilitar as coisas para nós, se quisermos descobrir algo. Interioranos costumam ser muito preconceituosos... E isso também já é um preconceito da minha parte, mas que seja! Tudo bem?
As duas concordaram. Importava descobrir qualquer coisa, qualquer pista que levasse à solução daquele mistério. Perguntaram para várias pessoas e ninguém conhecia a loja de autopeças Pindamonhangaba. Cidade pequena e típica do interior, onde quase todos se conhecem, era difícil que não soubessem. Rodaram por toda a cidade, mas ninguém soube informar.
— Será que foi tiro n'água? Já rodamos por tudo, parece que não existe a tal loja. Só me pergunto: será que é uma loja que ainda vai existir?
Nancy não compreendeu:
— Como assim?
Onofre continuou o raciocínio:
— Se o sonho é um aviso sobre um crime no futuro, pode ser que a loja ainda nem exista. Por isso ninguém a conhece. Se ao menos você tivesse conseguido ver o ano do calendário...
Nancy mostrou-se descrente da possibilidade:
— Não acredito. Se alguém, Deus, sei lá, queria me dar um recado, ou melhor, um aviso, não ia me dar uma pista dessas.
Onofre conjecturou mais um pouco:
— É, mas não se esqueça de considerar que teríamos de estar à frente dos acontecimentos, para evitar que eles ocorram. Seria como um viajante do futuro, que chega ao passado para impedir um fato de acontecer.
O raciocínio era poético, mas improvável. Sentiam-se o próprio Michael J. Fox em "Back to the Future". Ficaram pensativos por alguns minutos, até que seu Onofre quebrou o silêncio:
— A menos que... Não, não pode ser... Será?
Ele se calou.
— A menos que o quê, seu Onofre?
— É mesmo, seu Onofre. O que é que não pode ser?
O simples fato de estarem ali, por causa de um sonho, já transportava qualquer ação para um campo sobrenatural, por isso mesmo, Onofre voltou a uma possibilidade transcendente anterior:
— Pensei ser um aviso, por isso estava imaginando que Nancy viu o futuro, algo que ainda vai acontecer. E qual nossa missão? Evitar que aconteça... Mas...
Ele ficou mais introspectivo:
— Talvez devamos considerar a primeira impressão de Nancy, que veio por intuição, não por raciocínio... Nancy disse: "Eu tenho certeza, isso tudo aconteceu! Em algum lugar, não sei onde, mas aconteceu"!
— No passado, então? — admirou-se Lia.
— Sim, no passado.
Nancy estava perdida:
— E isso quer dizer...
— Que talvez ninguém conheça a loja de autopeças Pindamonhangaba, não porque ela ainda vai existir um dia, mas porque, tendo existido, já não exista mais.
As duas estavam perplexas. Nancy argumentou:
— Se é uma visão do passado, então que raio de avisos é esse? Se chegamos depois do acontecido, que crime vamos evitar?
Onofre continuava pensativo, mas procurava levá-las a raciocinar junto com ele:
— Pode até ser uma visão do passado, mas buscando um aviso para o futuro, algo que aconteceu e que não deve se repetir, quem sabe? Algum simbolismo, típico dos sonhos.
Estava ficando confuso. Nancy declarou:
— A visão que tive foi bem clara, não foi nem um pouco simbólica. Ao contrário, o sangue era bem real. E se for um fato que já ocorreu, eu realmente não consigo entender o que estou fazendo aqui.
Lia sugeriu:
— Que tal irmos almoçar e depois a gente tenta resolver esse quebra-cabeças? Estou morrendo de fome.
Os dois abraçaram a ideia de corpo e alma, mais corpo do que alma, afinal, a fome também os assolava há algum tempo.
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