2
Nancy acordara sobressaltada, o coração aos saltos, olhos esbugalhados. Estava sem cor e sentara-se na cama com as pernas ainda esticadas. Lia acordou com o grito e assustou-se com o rosto lívido da companheira:
— O que foi, Nancy? Por que você gritou? Você está branca feito um fantasma.
— Não sei... Eu gritei?
— Gritou sim! Acho que a vizinhança toda ouviu.
— Puxa! Não me lembro. Será que tive um sonho?
— Sonho? Pelo grito, foi um pesadelo.
Lia levantou-se:
— Vou até a cozinha buscar um copo d'água com açúcar. Minha mãe sempre diz que é bom pra acalmar.
Voltou em seguida, trazendo o copo com água. Nancy ainda estava sentada na cama, mas agora com os pés para fora, sobre um tapete colorido. Recobrara um pouco do rubor das faces.
— Tome, de um gole só. Vai se sentir melhor.
— Ah, obrigada.
Fez o que Lia pediu e ainda aproveitou um resto de água, girando o copo, com o intuito de engolir o açúcar que ficara no fundo. Devolveu-o a Lia, que o colocou sobre o criado-mudo. Voltaram a dormir, dessa feita tranquilamente.
Pela manhã, quando Lia entrou em casa provinda da padaria, onde comprara pão e leite, encontrou Nancy sentada à mesa, pensativa:
— O que foi?
— Nada, não. Só estava tentando me lembrar do sonho que tive essa noite e não consigo. Nem tenho ideia do que foi. Só sei que não foi um pesadelo. Não era ninguém atrás de mim ou coisa parecida. Vi alguma coisa, ou alguém fazendo algo e me assustei. Por isso gritei.
— E que grito! O seu Onofre veio me perguntar o que tinha acontecido.
— As paredes são geminadas. A gente escuta tudo mesmo.
— É, mas ele disse que a dona Marieta veio perguntar pra ele também. E a casa dela é do outro lado da rua.
— Ah, a fofoqueira escutou? Era de se esperar. Aquela ali vive nos espionando. Bem, vamos tomar café?
— Você já fez?
— Já. Enquanto você foi e voltou.
Durante o café, Lia percebeu que Nancy estava diferente. Normalmente ela era comunicativa, brincalhona. Naquela manhã, porém, estava pensativa e calada. Lia sabia, no entanto, que ela não era pessoa de impressionar-se facilmente, principalmente com um sonho do qual nem se lembrava. E sabia que esse, apenas esse, devia ser o problema: ela queria lembrar-se! Precisava! Não era caso de abatimento ou medo, mas sim de teimosia. Nancy era turrona, teimosa e não gostava de ficar às escuras sobre o que quer que fosse.
¤
Os sonhos, ou pesadelos, continuaram. Nancy gritara mais vezes, para deleite de dona Marieta, que enfim encontrara algo mais para falar das duas:
— Eu não falei? Era só questão de tempo. No mínimo estão acontecendo as maiores orgias naquela casa.
Seu Onofre rebatia, dizendo que não era nada disso:
— A pobre da moça está tendo uns pesadelos, só isso. Nós devíamos pensar em como ajudá-la, isso sim.
— E como é que o senhor sabe?
— A Lia me contou, no domingo.
Dona Marieta olhou-o de soslaio:
— O senhor, hem? Defende essas duas com unhas e dentes. Não sei, não! O senhor tem alguma coisa com elas, é?
— A senhora me respeite, viu? E, não me obrigue a dizer coisas da senhora, coisas, inclusive, essas sim, muito reprováveis.
Marieta recuou apenas com o olhar. Desconversou logo e entrou. Era uma alcoviteira de primeira linha. Seu passatempo predileto era falar mal dos outros, mas sempre corria quando a corda podia estourar para o seu lado.
Seu Onofre, pessoa de bom senso, procurava não julgar ninguém, pelo simples fato de não se considerar o dono da verdade, mas sabia ser enérgico quando necessário. Enquanto dona Marieta procurava pelos em ovo, como se ela própria fosse uma santa e nunca tivesse, entre quatro paredes, feito coisa pior do que ela mesma imaginava para as meninas, ele procurava perscrutar as verdadeiras causas. Ademais, a opção das meninas de viverem juntas, segundo ele, nem deveria ser passível de comentários. "São escolhas particulares, ninguém tem nada a ver com isso". Quanto aos pesadelos de Nancy, estava preocupado. O carro dela estava na garagem e isso queria dizer que ela não tinha ido trabalhar. Com a anuência de sua esposa, tocou a campainha do número 56 da Rua Ernesto Nazareth. Lia atendeu.
— Oi, seu Onofre. Como vai?
— Eu vou bem e você?
— Tudo bem, também. Algum problema?
— Desculpe me intrometer... Só queria saber se Nancy está bem. Vi o carro na garagem e deduzi que ela não foi trabalhar. E ouvi ela gritar essa noite.
— Não é intromissão, não. É bom ter alguém como o senhor, que se preocupa com a gente. Me sinto protegida, é como se fosse o meu próprio pai.
Seu Onofre sentiu uma onda de felicidade percorrer seu interior. Ele e a esposa não tinham filhos e ouvir aquelas palavras de Lia, eram, para ele, uma alegria muito grande. Sentiu, porém, uma mágoa no tom de voz da garota, quando essa mencionara o pai. Mas não era hora para conversar sobre aquilo:
— Agradeço que pense assim. Eu não tenho filhos e gostaria de ter uma filha como você. Mas, quanto a Nancy, há algo que eu possa fazer pra ajudar? Aliás, você também não foi trabalhar. Estou começando a ficar preocupado.
— Estamos bem, fique descansado. São aqueles sonhos — eu prefiro dizer pesadelos. Só que dessa vez a Nancy se lembrou. Agora já sabe o que a tem assustado tanto. Que coisa estranha, como é que um sonho pode se repetir, assim? Mas ela não tem certeza se sonhou todos os dias com a mesma coisa, pois só hoje conseguiu lembrar. O senhor não quer entrar, aí ela própria lhe conta?
— Bem... Não sei se devo.
— Não está preocupado com os vizinhos, não é? Com o que eles vão dizer.
No fundo, estava. Mas era algo instintivo, não raciocinado. Não estava imune. Porém, contra reações assim era que ele costumava lutar. Depois, temer o preconceito alheio seria o mesmo que compactuar com as opiniões preconcebidas e discriminatórias da vizinhança:
— Vamos lá!
Ela abriu o portão e seu Onofre entrou. Dona Marieta espreitava a cena, de longe e falou a si mesma:
— Que pouca vergonha!
Onofre nunca tinha entrado na casa das garotas. Se dissesse que não nutria nenhuma curiosidade a esse respeito, estaria mentindo, mas havia muitos que gostariam de estar em seu lugar, coisa que ele não dava tanta importância assim. Dona Marieta, mesmo, era uma delas. Era uma casa simples, sem ornamentos, com móveis novos e simpáticos, porém sem nenhuma ostentação ou luxo. Nada do que dona Marieta esperava, como decorações obscenas, artigos e revistas eróticas. Como ele sempre dizia, a depravação estava apenas na mente tortuosa dela. Ele, porém, só não avançara na questão do erotismo, dizendo, por exemplo, que um quadro erótico só poderia ser considerado obsceno na cabeça de um moralista retrógrado, porque tal desdobramento seria demais para dona Marieta. Onofre buscava também respeitar os limites de cada um.
— Oi, seu Onofre.
Nancy estava sentada numa poltrona. Indicou o sofá a Onofre, pedindo que se sentasse.
— Obrigado. Desculpem-me a intromissão, mas Lia pediu que eu entrasse.
Nancy estava um pouco abatida:
— Acho que foi Deus quem mandou o senhor aqui. Eu já não sei mais o que fazer com esses benditos sonhos. Quem sabe o senhor, não é mesmo?
Lia sentou-se ao lado de Nancy, sobre o braço da poltrona:
— Eu falei pra ele que você conseguiu lembrar do sonho essa noite.
Nancy endireitou o corpo:
— É, é verdade. Foi bem horrível!
— Se não quiser falar...
— Não, seu Onofre. Vai ser bom.
Ele fez uma consideração:
— A Lia tocou num ponto importante... Se você só se lembrou hoje, como supõe que o sonho foi igual em todas as noites?
— É uma boa pergunta. Certeza, não tenho, mas desconfio que foi igual, sim.
Ela tomou fôlego:
— Vi nitidamente. Lembro com perfeição. Era como se fosse uma cena real. Eu não participava como personagem, eu estava olhando como espectador. Era uma casa simples, típica do interior. Havia um quarto de criança. Aliás, eram duas crianças, dormindo em berços diferentes. Eram gêmeos, tenho quase certeza. Não iguais, um era moreno e o outro, bem mais claro.
— Gêmeos bivitelinos? — sugeriu Onofre.
— Bivitelinos? — Nancy não conhecia a definição da Biologia.
— Sim, quando não são iguais!
— Ah, tá. Sim, creio que sim. E dormiam muito tranquilos. Eram lindos.
— E o que aconteceu com eles, que te assustou tanto?
— Não foi com eles. Continuaram lá, dormindo. Eu saí do quarto e fui até a cozinha. Era engraçado, eu me sentia como se conhecesse a casa, ou melhor, eu a conhecia! Sabia onde dava cada porta.
— E você já viu essa casa alguma vez?
— Nunca, a não ser no sonho. Engraçado que me sentia em casa.
— E na cozinha, o que aconteceu?
Nancy parou um pouco. Seus olhos brilhavam. Ela parecia vivenciar cada uma de suas palavras:
— Um crime! Um homem rude, de mãos grossas. Um homem do campo, creio eu. E uma moça delicada, bonita. Eles discutiam. Ela pedia que ele falasse baixo, pois ia acordar as crianças. Ele estava enfurecido. Daí passou a mão em uma faca sobre a pia, uma faca de cortar carne e a esfaqueou três vezes. Ela caiu, morta; e ele fugiu.
Onofre sentiu a emoção transbordar e sugeriu:
— Se quiser não precisa me dizer mais nada. Afinal, foi apenas um sonho.
— Aí é que está! Não foi, seu Onofre! Não foi apenas um sonho! Eu tenho certeza, isso tudo aconteceu! Em algum lugar, não sei onde, mas aconteceu!
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