Capítulo 62.
Estávamos muito cansadas na noite anterior que esquecemos de fechar a janela, por isso eu havia acordado com os primeiros raios de sol batendo no meu rosto, antes mesmo que o despertador pudesse tocar. Espreguicei-me, sentindo um leve latejar na cabeça, e Mei também acordou. Abriu a boca em um bocejo preguiçoso antes de apoiar a cabeça na minha barriga para voltar a dormir.
Sorri, esticando a mão para acariciar seus pelos. Antes do apocalipse, minha avó não gostava que Mei subisse nas camas ou sofás, por isso ela nunca dormia comigo. Desde que eu havia voltado após passarmos longos dias separadas, ela sempre dormia ao meu lado quando tinha a chance.
— Bom dia, amor — sussurrei, tentando não incomodar Melissa por enquanto. Sentia minhas pálpebras pesadas, mas eu raramente voltava a dormir depois de acordar. — Você vai ficar chateada se eu não te levar hoje?
Mei olhou para mim e balançou o rabo quando ouviu minha voz. Eu queria saber o que ela responderia se conseguisse me entender, mas precisei decidir sozinha que a deixaria no condomínio. Não pretendia passar a noite fora, então planejava fazer uma parada rápida na cidade indicada por Tom, reunir munição, quaisquer mantimentos úteis de fácil acesso e voltar antes do anoitecer. Agora Mei tinha a companhia constante das crianças (que ela adorava), então provavelmente ficaria menos triste — e mesmo que eu soubesse que ela era capaz de me acompanhar do lado de fora, depois de tantas tragédias, estava querendo evitar certos riscos.
O celular vibrou na mesa de cabeceira segundos, acompanhado dos primeiros toques de uma música suave que ecoou pelo quarto. Mei ergueu as orelhas, associando aquele som ao começo do dia, e enfiou o focinho na cara de Melissa.
— Melissa? — chamei. — Já são 7 horas. Se prepara para sairmos logo, quero voltar ainda hoje.
A garota gemeu, em completo desgosto, enfiando a cabeça sob o travesseiro para impedir as investidas de Mei, o que só a incentivou a colocar mais força na tentativa de lamber o rosto da minha amiga. Tranquei o riso, esperando que Melissa me perdoasse.
Levantei da cama ouvindo seus protestos e xingamentos. Troquei o pijama por um jeans surrado, uma regata básica preta e a jaqueta de couro por cima. O bom do inverno é que tornava suportável que usássemos mais peças para nos manter protegidos.
Vesti as luvas de couro, coloquei meu cinto e ajeitei os dois coldres, um para armas e outro para facas. Felizmente, quando deixamos o hospital, também me devolveram o facão. Conforme precisavam ser afiados, o brilho holográfico ia se perdendo, mas ainda me sentia nostálgica tendo-os comigo.
Por fim, calcei meus coturnos, percebendo o quanto estavam surrados. Talvez pedisse para os garotos arranjarem roupas novas para mim, se realmente fossem até um shopping... Dependendo da cidade, poderiam encontrar lojas com produtos de boa qualidade. Apesar de ser um apocalipse, ainda havia alguma alegria em ganhar roupas novas.
Minha mochila já estava pronta desde a noite passada, por isso apenas coloquei-a nas costas. Pegaria uma das barras de ferro perto da construção para deixar no carro, só por segurança. Antes de abrir a porta do quarto, olhei para Melissa, ainda desmaiada na cama:
— Vou tomar café. Não demora, beleza?
Melissa murmurou alguma coisa e atirou o travesseiro na minha direção, mas eu fechei a porta antes, assim que Mei passou por ela.
Atravessamos em silêncio a sala vazia, apenas com o barulho das unhas de Mei batendo contra o chão de madeira. Passei reto pela porta do quarto de Guilherme (tive a confirmação noite passada que o dividia com Leonardo) sabendo que em breve também estarem fora, então fui até onde Victória dormia, batendo de leve com os nós dos dedos na porta antes de abrir uma fresta.
— Vic?
Victória franziu os olhos quando um pouco de luz invadiu o quarto escuro, então tateou pela mesa de cabeceira até encontrar seus óculos. Finalmente, sorriu para mim após os colocar.
— Oi, Rebeca.
— Escuta, resolvi deixar a Mei aqui no condomínio hoje. Melissa vai comigo e os meninos vão sair também, hoje ou amanhã, então não posso deixá-la com o Gui. Você se incomoda de cuidar dela pra mim?
— Claro que não. — Ela abriu mais o sorriso e bateu no lado vago de sua cama de casal, convidando Mei a se juntar. — Eu amo cuidar da Mei.
— Obrigada, amiga. Desculpa te acordar. — Então olhei para Mei, que me encarava de volta, sem entender se devia ou não entrar no quarto. — Eu volto logo, meu amor. A Vic vai cuidar de você e misturar todos os dias sua ração com o resto do almoço, para você ficar bem feliz, ok? — Segurei o focinho de Mei e ergui um pouco sua cabeça, plantando-lhe um beijo. — Agora vai. — Estalei os dedos e apontei para dentro do quarto.
Meu me obedeceu, subindo na cama e começando a lamber alegremente o rosto de Victória. Senti um calor se espalhar pelo corpo olhando por mais alguns segundos para a minha companheira, depois fechei a porta. Apenas um único ganido chegou até mim, que foi respondido por Vic:
— Tá tudo bem, querida. Sua mamãe logo vai voltar. — Seu tom era calmo, tratando com todo o carinho a minha cachorra.
Também acabei sorrindo enquanto descia as escadarias e me dirigia para fora da casa. O sol brilhava no céu, mas seus raios eram fracos e o vento da manhã soprava forte, arrepiando meu corpo. Olhei para o lugar onde havíamos feito nossa reunião na noite anterior, incapaz de conter os bons sentimentos que me inundaram. Mal podia esperar para repetirmos aquilo, e a esperança de que logo aconteceria era a minha motivação para atravessar aquele dia enquanto ainda morria de sono.
Eu já sabia que a porta dos Rosa não estava trancada, pois dividíamos os mantimentos entre as casas para facilitar o acesso de todos, então quando necessário, podíamos buscá-los em qualquer lugar. Não esperava encontrar ninguém, pois normalmente tomávamos café apenas por volta das 8:00, mas para a minha surpresa, dei de cara com Carolina na cozinha.
— Ah, bom dia — murmurei, um pouco sem jeito. Claro que se estivesse esperando encontrar com alguém, pelo menos anunciaria minha chegada.
O cheiro de café sendo preparado dominava o cômodo, enquanto Carol organizava os mantimentos dentro do armário. Percebi o pequeno susto quando ouviu minha voz, mas logo sua expressão relaxou, olhando pra mim.
— Bom dia, Rebeca.
— Desculpa incomodar, mas estou saindo logo. Só vim buscar uma pistola, a que fica lá em casa está com Leonardo, mas os meninos também vão sair — justifiquei, sem jeito.
— Claro, fique à vontade — Carol assentiu, voltando a se concentrar em suas tarefas.
Notei que apesar de me dirigir poucas palavras, Carol não havia sido particularmente seca ou grosseira. Ainda assim, agradeci quando terminamos aquela conversa educada para que pudesse ir atrás do armamento.
Desmontei a arma, chequei se tudo estava certo e montei-a novamente, reunindo a quantidade adequada de balas para encher um segundo carregador. Claro que levaria outras, mas já havia aprendido com Leonardo que, via de regra, se a situação em que você se encontra exige mais do que dois carregadores de uma pistola, a melhor escolha normalmente é tentar fazer o mínimo de barulho e fugir.
Quando terminei os preparos e me dirigi à porta de entrada, ouvi novamente a voz de Carol:
— Você quer tomar um café? Acabei de preparar.
Apesar de sentir um pouco de incômodo com a possibilidade de ficar na cozinha com Carol, o cheiro de café e a possibilidade de comer um pouco de pão fresco feito por Darlene foram convencimento o suficiente. Carolina não havia falado direito comigo desde o dia em que me agrediu durante a reunião, trocando poucas palavras até então e apenas necessárias.
Tomei um pouco de café preto e comi pão com atum enlatado, mas realmente passamos a maior parte daqueles minutos em silêncio. Quando ouvi barulhos no andar superior, indicando que mais pessoas começavam a acordar, levantei-me com pressa.
O tempo passava, e eu ainda odiava despedidas.
— Tô indo, Carol, obrigada pelo café — falei, dirigindo-me à pia com a louça nas mãos.
— Pode deixar que eu lavo depois. Boa sorte. — Carol acenou com a cabeça.
— Ah, obrigada... Tentaremos voltar hoje! — Assenti, um pouco sem jeito, e me dirigi para a saída.
Até agora não tinha visto sinal de Melissa, mas não era algo alarmante, porque minha amiga não gostava de tomar café da manhã assim que acordava. Preferia deixar para comer daqui a algumas horas, mesmo que fosse apenas uma barrinha de cereal na estrada.
Quando passei pela casa onde Alex morava, Darlene estava abrindo as venezianas e me cumprimentou:
— Bom dia, Rebeca! Boa sorte hoje.
— Bom dia, Darlene! — respondi, um pouco alto demais. — Obrigada!
Quando, além do casal Rosa, só pessoas jovens moravam aqui, raramente o dia começava tão cedo, e era interessante perceber a mudança. Até mesmo as crianças estavam acostumadas a serem despertadas pouco depois do nascer do sol.
Apesar de contarmos com diversos luxos, como água tratada de um poço artesiano e painéis solares que nos forneciam luz elétrica, não éramos incentivados a abusar da energia durante a noite, para que ela não acabasse caso houvesse uma emergência (ou que o dia seguinte não contasse com muito sol, como era recorrente no inverno). Por isso, a maioria de nós preferia dormir com o anoitecer e acordar junto com a luz do sol, com exceção de noites como a passada.
Busquei na mochila a chave do meu HB20, dirigindo-me para onde os carros estavam estacionados. Graças à Bruna e Celso (novamente), conseguimos ligar a energia dos geradores ao portão principal, por isso não precisávamos mais abrir o portão manualmente.
Ao lado do carro que eu e Melissa usávamos, estava a nova Harley Davidson, que havia gerado brigas entre Leonardo e Paulina durante a última semana inteira. Ambos estavam dispostos a emprestá-la, mas definitivamente queriam ser os donos dela. A moto enorme realmente parecia tentadora, e decidi que pediria para Leonardo me ensinar a pilotá-la.
Até agora minha amiga não parecia ter saído do quarto, mas eu estava acostumada com os seus atrasos (afinal, passamos mais de duas semanas pisando no condomínio apenas por algumas horas e saindo no dia seguinte, já a conhecia bem demais). Felizmente da última vez que estivemos fora, encontramos uma loja que ainda vendia CD's e eu me abasteci o suficiente com álbuns que gostava. Estava mais do que disposta a entrar no carro e ouvir System of a Dawn até ela aparecer, quem sabe aproveitar e tirar um cochilo.
Quando sentei no banco, meu coração quase parou ao me deparar com Leonardo no carona. Automaticamente, levei a mão à pistola.
— BOM DIA, REBECA! — A voz de Guilherme, vinda do banco de trás, fez todos os pelos do meu corpo se arrepiarem.
Precisei olhar o rosto de cada um por alguns segundos até as batidas do meu coração se acalmarem. Uma das minhas mãos estava fechada com força na pistola e a outra pressionava os dedos contra o meu peito, como se de alguma forma pudesse acalmar o retumbar.
— VOCÊS SÃO IMBECIS?! — rosnei, soltando a pistola e passando a mão na parte raspada do meu cabelo, atirando-o para trás.
— Bom dia também, princesa — Leonardo se aproximou, plantando um beijo estalado na minha bochecha. — Você e esse seu bom humor!
Guilherme estava com os braços apoiados entre os dois bancos da frente, segurando a risada. Apesar das olheiras evidentes sob sua pele clara, nenhum dos dois parecia cansado, mesmo que tivéssemos dormido apenas cinco horas, no máximo.
— Qual o problema de vocês? O que estão fazendo aqui? — Respirei fundo.
— A gente combinou com a Melissa na noite passada. Já que iríamos sair também, resolvemos te dar um presente: a nossa companhia! — Guilherme comentou, um sorriso provocativo no seu rosto, provavelmente porque sabia que eu queria socá-los.
— Eu já preparei o nosso roteiro, então se quiser ter a decência de me deixar assumir o volante, eu agradeceria, já que você e o Guilherme dirigem como duas lesmas — Leonardo estendeu a mão em minha direção.
Acertei seu braço com um tapa, como se dissesse para se afastar.
— Fica na sua — murmurei, mas àquela altura, apesar da adrenalina após o susto ainda aquecer meu sangue, já estava menos zangada. — Eu dirijo!
O portão de entrada estava aberto, então enquanto Guilherme argumentava com "pedindo naquele tom, era óbvio que eu não cederia" e Leonardo respondia com "eu falei alguma mentira?", comecei a manobrar o carro. Liguei o rádio, indiferente à discussão, e as primeiras notas de Lonely Day chegaram aos meus ouvidos. Deixei um riso anasalado escapar com a ironia.
— Pega a esquerda — Leonardo indicou, após passarmos pelo portão principal.
— Por que? — questionei.
— Porque vamos para o shopping, óbvio — Guilherme respondeu — pegar o nosso playstation!
Encarei-o pelo retrovisor, seu sorriso ainda bonito mesmo com as pálpebras pesadas pela noite curta de sono. Em seguida, Leonardo bocejou e esticou o braço, apoiando-o atrás do meu banco.
Apesar de incrédula com o atrevimento daqueles dois, depois de toda a vontade de me opor aos seus pedidos só por teimosia se esvair, não consegui conter um sorriso. Antes que eu pudesse perceber, meu lapso de bom humor matinal evoluiu para uma gargalhada, enquanto eu virava o volante para desviar de um errante perdido na estrada.
Diferente do que a música que ecoava pelo carro dizia, eu sentia que nunca mais estaria sozinha.
✘✘
Nota da autora:
Olá, meus amados leitores e amigos 🖤
Eu acho que estou um pouco entorpecida- Nem consigo acreditar que chegamos ao fim de mais um livro.
Eu passei o mês inteiro pensando em alguma coisa decente para falar agora, mas simplesmente nada me vem à cabeça. Estou completamente exausta, porque basicamente escrevi os últimos três capítulos em três dias sem sair do quarto, mas a minha felicidade é inexplicável.
Eu amei ter escrito Em Decomposição... Mas é impossível explicar o quanto me apaixonei por Em Desespero. Perguntei para vocês no instagram qual preferiram, e eu já tenho a minha resposta 🖤 De qualquer forma, independente da preferência, espero ter agradado a todos com ambos.
Quem tá aqui desde o primeiro livro? Pois então devem saber que não me despeço por aqui! Não vou me alongar, pois em breve voltarei com um capítulo especial para agradecimentos + dividir com vocês o planejamento para os próximos livros e meus planos para o ano que vem.
Acharam que iam se livrar de mim tão rápido? 🤪
Mas, por enquanto, vou agradecer com cada pedacinho que existe dentro de mim por me acompanharem mais uma vez. Obrigada por sonharem novamente junto a mim e saibam que amo vocês com todas as forças.
Se não for pedir muito, caso tenha condições, considere apoiar meu trabalho e ganhar recompensas feitas por mim 🖤 (o capítulo final desse livro explica direitinho como).
Isso não é um adeus, é apenas uma breve despedida! Lembrem-se que tempos furiosos estão por vir...
Até lá, fiquem a salvo, nem por um segundo deixem de sonhar
e jamais sejam mordidos!
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