Capítulo 60.
De alguma forma, aquela noite parecia um mau presságio.
Apesar de estarmos em agosto, até mesmo o clima agradável era um alívio após os constantes dias frios que tivemos recentemente. Na noite morna com uma suave brisa, sequer faziam-se necessárias nossas jaquetas. Como sempre, sobre nós, o céu era uma obra galáctica sem precedentes.
Aconcheguei-me na cadeira, sentindo o coração leve enquanto olhava ao redor. Estávamos todos reunidos na rua entre a casa principal e a de Alex, para onde foi levada uma grelha portátil, cadeiras de cozinha, de praia e banquetas para sentarmos em um grande círculo. Praticamente todos os rostos estavam à vista, a maioria conversando e comendo, mas alguns um pouco mais afastados, de maneira discreta e respeitosa, como Antônio, Celso e as meninas novas. Os postes de luz do condomínio estiveram desativados desde que chegamos, tanto por falta de manutenção quanto por segurança, mas Celso também nos auxiliou para ligá-los novamente, de forma que facilitasse a circulação noturna (que era mais frequente agora que contávamos com novos membros). Dessa maneira, nossa pequena reunião também estava iluminada.
Dei outra mordida no meu hambúrguer, ainda sem acreditar naquele saboroso prato principal. O apocalipse acabou com o nosso acesso à produtos animais e à maioria dos legumes e verduras (enquanto os que plantamos não estivessem prontos para colher, pelo menos), por isso nos víamos obrigados a cada vez mais tentar trazer graça ao nosso cardápio com ideias veganas. Nada era muito mirabolante... Mas isso foi antes de Darlene, que já seguia essa dieta antes do apocalipse e conhecia muitas receitas. Nosso hambúrguer era de lentilha e quinoa, o pão não era feito com ovos e o queijo tinha base de leite de amêndoas; possuíamos alface, rúcula, cebola e todo o tipo de temperos de saquinho. Apesar de enjambrado, era o jantar mais gostoso que eu desfrutava desde o começo daquele caos. Mais até do que a sopa de galinha.
De um dos celulares pertencentes aos antigos donos do condomínio, tocava uma música qualquer em volume ambiente. A ideia havia sido de Guilherme, mas com uma troca de olhares pesarosa, eu e ele sabíamos quem teria proposto aquilo em outras circunstâncias.
É claro que apesar de parecer uma reunião descontraída, havia aquele quê pós-apocalíptico. Nossas conversas sempre ficavam baixas, as louças e copos eram manuseados com cuidado e ninguém estava realmente bem-vestido ou impecável. Uma pessoa sempre estava na torre de guarda, como de praxe, mas revezamos com mais frequência para que todos pudessem descontrair um pouco. Eu não precisaria me esticar muito para alcançar algum tipo de arma, se necessário.
— Tudo bem com você, Rebeca? — A voz calma de Tom me pegou de surpresa quando puxei o canivete do bolso, com a intenção de brincar fazendo movimentos de abertura.
Abri um sorriso, colocando o resto do hambúrguer na boca e limpando os dedos no papel toalha amassado sobre meu prato. Eu estava sentada em uma das duas cadeiras de praia, por isso precisava olhar para cima a fim de conversar com Tom em sua cadeira de rodas.
— Tudo ótimo — respondi, esticando-me para deixar o prato sujo na pequena mesa de centro que arrastamos até ali.
Mei levantou quase imediatamente e se aproximou como quem não queria nada para tentar lamber meu prato. Quando mandei se afastar, ela começou a cheirar o chão como se nunca tivesse tentado nada.
Tom deu uma risada e moveu um pouco a cadeira até se aproximar da grelha, pegando um dos hambúrgueres crus no momento em que Alex estava distraído conversando com Elisa. Ele voltou até o meu lado e ofereceu a comida a Mei, que quase abocanhou seu braço junto.
— Você tá aqui sozinha — falou, enquanto erguia a mão para acariciar atrás das orelhas do meu Pastor, fazendo-a bater a patinha traseira. — Achei que não estivesse se sentindo bem.
— Ah, não, não. De verdade, dessa vez, só sentei um pouco para comer com calma. — Olhei para o resto dos meus colegas; Guilherme, Melissa e Leonardo estavam em pé, próximos ao cooler com cervejas, conversando animadamente; Victória, Paulina e Samuel sentavam-se próximos à mesa de centro, comendo e conversando; enquanto Alexandre se dividia entre cuidar da carne e conversar com Elisa e Carolina. — Eu tô bem hoje.
— Certeza? — insistiu.
— Absoluta, Tom. — Sorri para ele, sincera. — E você, está se adaptando com tudo?
Ele tomou um gole da sua lata de cerveja, respirando profundamente pelo nariz.
— É tudo... Uma novidade. Mas não me deixo abalar e confio na previsão positiva de Anderson. — Abriu um sorriso, antes de continuar. — O importante é que a minha família está bem. Vê-los sãos e salvos é o suficiente para me manter otimista.
Assenti, erguendo meu copo para propor um brinde.
— Também fico feliz que Carol e Samuel estão bem.
— Eu não estava falando apenas deles, Rebeca.
Então ergueu sua lata de cerveja, batendo-a levemente contra meu copo, direcionando para mim seu sorriso. Pisquei os olhos algumas vezes até compreender o que ele quis dizer e como aquele carinho também era dirigido a mim.
— Obrigada, Tom... Por tudo e por essa noite — falei, olhando novamente para o clima quase festivo ao redor, iniciado por ideia dele e de Alex.
Depois de um pesadelo tão longo, aquele encontro improvisado era quase como descansar em uma cama confortável após um dia cansativo. Os repousos e remédios serviam para curar os ferimentos na pele, mas aquilo era uma maneira de ajudar a cicatrizar nossos corações feridos.
— Você quer sair amanhã, não é? — Questionou, casualmente, referindo-se à minha missão de buscar munição para o restante dos armamentos. Continuou, quando assenti: — já conseguiu uma dupla?
Deixei um gemido de culpa escapar enquanto tomava um longo gole de água para evitar aquele assunto. Observei Laura e Caio brincando perto do meio-fio. Quanto a menina mais nova chamou pela minha cachorra, Mei foi saltitando até ela, o que fez Bruxa sair correndo desajeitadamente para baixo das pernas de Carol e Massacre se levantar, com as orelhas erguidas, do lugar onde dormia perto da grelha.
— Se eu disse que não, você vai me deixar ir mesmo assim? — Tentei dar um sorriso bonito, para convencê-lo.
— De jeito nenhum, Rebeca. — Ele devolveu um sorriso irônico. — Da mesma forma que eu não deixaria Samuel ir sozinho. Como eu falei, quero minha família a salvo.
Revirei os olhos de brincadeira, pois a última coisa que aquelas palavras poderiam me fazer sentir era algo negativo.
— Que ótima hora para virar um pai preocupado — debochei, mas não contive o sorriso. — Melissa vai ficar brava, falou que não queria sair depois de recém voltar, mas vou insistir para ela ir comigo, então.
— Bom mesmo, Rebeca. Vamos todos tomar mais cuidado a partir de agora. — Tom tomou outro gole da cerveja, olhando casualmente ao redor. Quando fez contato visual com o filho, ergueu a lata que segurava, em um cumprimento. — E quando eu estiver melhor, queria levar Samuel para uma saída atrás de mantimentos. Gostaria que você também fosse. Ele é um menino reservado, mas gosta de você e acho que você pode ser um bom exemplo para ajudá-lo a lidar com o medo. O que você acha?
Fiquei em silêncio por alguns segundos, meu rosto provavelmente deixando evidente a surpresa agradável que aquelas palavras eram. Meu sorriso ficou ainda maior:
— Nossa, Tom, é claro que sim! Eu adoraria!
Tomas sorriu para mim e mais uma vez brindamos nossos copos. Conversamos sobre outros assuntos despretensiosos, trocando opiniões a respeito dos novos membros do nosso grupo, sobre o grupo do hospital e até mesmo nossos próximos objetivos. Apesar de sempre termos nos tratado com respeito e debatermos sobre estratégias e buscas por alimento, eu e Tom nunca realmente construímos um laço mais forte do que o que nos foi obrigado pelo apocalipse zumbi, então aquela era uma mudança bem-vinda.
Eventualmente Samuel se aproximou e pudemos fazer-lhe a mesma proposta que Tom me fez, que foi recebida com mais entusiasmo do que eu esperava. Conversamos um pouco e quando começamos a planejar as aulas de tiros, chamamos a atenção de Victória, que também se aproximou. Então, como se eu já não tivesse contado aquela história dezenas de vezes, detalhei novamente o desenrolar do tiroteio que Victoria iniciou contra os homens que mantinham Leonardo e Melissa como reféns. Minha amiga dava sorrisos sem graça, mas no fundo era evidente o quão lisonjeada ficava quando elogiávamos suas habilidades de atiradora.
Era próximo das 22h quando Celso timidamente murmurou um cumprimento de boa noite e levou a filha para casa. Minutos depois, Caio foi pego bocejando, o que motivou Elisa e Carolina a se despedirem para deitar. Quando Paulina fez menção de alcançar o fuzil para assumir o turno de vigia, Bruna pegou-o primeiro, assumindo a guarda junto com Antônio como agradecimento pela nossa hospitalidade. Todos ajudamos a levar as louças para dentro, lavá-las, guardar a maior parte da bagunça, colocar os cachorros para dentro (menos Mei, esta nunca saía do meu lado)... Quando a maior parte dos nossos companheiros se retirou para suas próprias casas, meu relógio de pulso já anunciava 23h da noite.
✘✘
— Agora sim a festa começa! — Leonardo fez o símbolo do heavy metal enquanto pegava o celular e apertava somente uma vez o botão de volume, fazendo Melissa gargalhar.
Grande parte do grupo já havia se retirado, principalmente os mais velhos e crianças. Apesar de termos dado uma geral no local onde acontecia nossa reunião, havíamos deixado ali o cooler com bebidas e a metade das cadeiras, porque sabíamos que alguns de nós continuariam a noite.
Paulina revirou os olhos, atitude constante diante das brincadeiras de Leonardo:
— Ótimo, minha hora de dormir, então.
— Ah, Paulina! — Leonardo criticou. — Não vem se pagar de velha chata porque você nunca foi assim, porra! Fica aqui e socializa com a gente.
— E eu lá quero socializar com a pirralhada? — A mulher mais velha provocou, mas sua expressão era apenas divertida.
— Nem vem com essa porque você já socializou até demais com alguns aqui — Leonardo abriu um sorriso debochado tão bonito que senti meu coração falhar uma batida.
A expressão alegre de Paulina imediatamente desapareceu e ela acertou um soco nem-tão-de-mentira no braço de Leonardo. Olhei para Melissa, que ficou vermelha em uma velocidade tão alarmante que temi que acabasse desmaiando. Escondeu o rosto no ombro de Guilherme, falando algo baixo que lhe arrancou uma risada.
Além de nós, estavam também presentes Victória, Alex e Samuel, que parecia mais à vontade agora que o número de pessoas havia diminuído. Sentávamos em círculo em volta de onde antes estava a grelha.
— Vocês se conheciam antes do apocalipse? — Guilherme perguntou, bebendo um gole da cerveja e olhando para os dois.
— Infelizmente — Paulina murmurou.
— Éramos melhores amigos — Leonardo falou ao mesmo tempo e Paulina não conseguiu segurar o riso, mas depois ele respondeu de verdade: — Minha mãe trabalhava na escola onde a Paulina dava aula e a gente trocava ideia de vez em quando.
— Você dava aula de que? Não sabia que era professora! — Victória perguntou, simpática.
— Biologia — respondeu. — Elisa era professora de matemática, também.
— Nossa, sério? — Victória suspirou, surpresa. — Eu não fazia ideia. É muito estranho não falar sobre esse tipo de coisa hoje em dia.
— Nem me fala — Paulina deu um sorriso melancólico. — E vocês eram todos do mesmo colégio? Todos têm a mesma idade?
— Eu tenho 18 anos. — Samuel falou.
— Não todos — Guilherme continuou. — Só eu, Rebeca, Melissa e Victória. Nós conhecemos Samuel quando, hm, um outro colega nosso nos salvou. Alex também estava junto com a família Rosa.
— Eu tenho 21. Ou... Estamos em agosto, né? — Alex brincou com um dos seus dreads. Diferente dos de Leonardo, eram mais grossos e compridos. — Então 22.
— Meu aniversário é só em outubro, ainda tenho 16. — Victória deu um sorriso sem graça, erguendo os dedos em sinal de paz.
— Você tem 16?! — questionei.
— Sim, acho que sou a mais nova, depois do Gui.
Só então percebi que não sabia quando era o aniversário de Guilherme. Eu sabia que o de Melissa era em abril, então ela também já tinha 17 anos, assim como eu.
— Quando você faz aniversário? — perguntei, olhando para Guilherme.
— 21 de junho — ele respondeu, erguendo uma sobrancelha.
— Você tinha 16 anos até agora?!
— É assim que funciona, né? — ele deu um sorriso sem graça. — Só você que faz aniversário no começo do ano.
Leonardo deixou uma risada escapar:
— Você não sabia quando era o aniversário dele? — Como de praxe, o tom de Leonardo deixou clara a provocação sem que ele precisasse colocar em palavras. Eu consegui ouvir claramente "Estavam se pegando e você nem sabia o aniversário dele?".
— É justamente o que a Vic falou! — defendi-me. — A gente só não costuma falar sobre isso hoje em dia!
Ainda com o sorriso no rosto, Leonardo deu uma piscada para mim, como se quisesse deixar claro que era apenas uma brincadeira. Então falou:
— Vamos fazer um jogo, então! Daí todo mundo se conhece melhor. — Ele se levantou da cadeira onde estava sentado, dirigindo-se ao cooler com bebidas, e tirou de lá uma garrafa de destilado. — Coisa simples: cada um fala seu nome, idade, signo, sei lá, qualquer coisa que julgar importante, e adiciona uma curiosidade sobre você. Depois bebe, claro.
Sacudi a cabeça, fingindo decepção, mas não consegui impedir um sorriso de se formar em meu rosto. De alguma forma, ao lado de tantas pessoas queridas, queria poder fazer aquela noite durar para sempre.
✘✘
Nota da autora:
Olá amigos, boa noite!
Eu tenho muita coisa para falar, então preparem-se!
Para quem não viu no meu instagram (@autoramarinabasso), está na hora de finalmente revelar o nome do terceiro livro da série! Preparem-se, pois ano que vem estaremos
Em Fúria! 🔥
AAAAAA eu guardei essa informação por tanto tempo e é muito bom finalmente poder falar 🙏
A outra novidade é que
EM DECOMPOSIÇÃO ESTÁ DE CAPA NOVA 🎉
Para quem ainda não sabe, Em Decomposição e Em Desespero receberão novas capas, junto com o anuncio oficial de Em Fúria (com sinopse e capa)!!
Como queria fazer uma revelação legal e juntando isso com o final do livro, está aberto finalmente o ESPECIAL DE ENCERRAMENTO. Teremos atualizações diárias dos últimos três capítulos + revelação de uma capa por dia no meu instagram, até o anuncio oficial do terceiro livro!
Tá confuso? Então vou organizar abaixo o cronograma:
Segunda-feira (hoje) – Atualização do capítulo 60 + Anúncio de capa nova de Em Decomposição no instagram.
Terça-feira (amanhã) – Atualização do capítulo 61 + Anúncio de capa nova de Em Desespero no instagram.
Quarta-feira (18/08) – Capítulo final + Anúncio oficial de Em Fúria, com capa e sinopse!
Espero do fundo do coração que gostem do final deste livro, assim como das novas capas e espero que tudo faça jus ao hype que eu botei 🙏 Peço desculpas por apenas conseguir fazer um especial curtinho, mas com o tempo que disponível, foi o que eu consegui!
Agora, finalmente, sobre esse capítulo: eu amo muito esse grupo, meu Deus 🥺 Qualquer interação com eles juntinhos já me deixa de coração quentinho. Eu realmente não estou pronta para esse livro chegar ao fim, mas ao mesmo tempo estou MUITO ansiosa pois tenho certeza que já vou fazer vocês surtarem no primeiro capítulo de Em Fúria.
Será que dá tempo desse livro terminar nessa paz, ou a autora filha da mãe vai conseguir enfiar mais uma tragédia? 👀
O que vocês esperam que vai acontecer para justificar a fúria do terceiro livro?
Um beijo gigantesco.
Não sejam mordidos, pois o nosso reencontro está marcado para amanhã!
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