Capítulo 58.
Era difícil acostumar-se com aquela nova rotina. Longe de ser ruim sentir o gosto agridoce da amiga e inimiga que era a esperança, mas certamente difícil.
Antes de todas aquelas semanas repletas de ansiedade e conflito, o condomínio sempre parecia vazio aos meus olhos — considerando as poucas vezes que eu colocava meus pés lá. Sempre que eu e Melissa voltávamos de nossas viagens, encontrávamos o exterior vazio, as casas em construção eternamente paradas e poucas indicações de que aquele lugar estava habitado.
Em números, realmente não havíamos crescido tanto: de onze, passamos a dezessete, mas agora até mesmo a aparência do lugar estava mudada. Duas semanas se passaram desde que eu, Paulina e Leonardo voltamos, encerrando oficialmente (pelo menos para mim) aquele capítulo de medo, sofrimento e conflitos. O que, por incrível que pudesse parecer, estava igualmente longe de significar tranquilidade.
Ainda trabalhávamos em dupla quando o assunto era reunir mantimentos e sempre pelo menos duas estavam fora. Mesmo assim, o condomínio parecia a mil e, claro, o espaço de revezamento entre os grupos era maior.
A mudança que mais me desconcertava, ainda que positivamente, era ver que as construções abandonadas em dois loteamentos foram reiniciadas. Antônio e Bruna, que era formada em arquitetura, chefiavam as novas obras, contando principalmente com a ajuda de Celso, Darlene e Alexandre (mas, claro, de qualquer pessoa que se visse livre de outras obrigações). Foram os dois homens que assumiram para si a tarefa e grande parte do motivo era a incomodação que suas presenças traziam no condomínio.
Tomas e Victória voltaram no dia anterior e a primeira reunião oficial que teríamos para discutir o futuro do grupo seria em alguns minutos. Dessa forma, ninguém realmente tomou a dianteira para expulsar qualquer um. A questão era muito mais complicada: Bruna e Darlene se mostraram membros valiosos para o grupo, com capacidade de se virar do lado de fora, mas igualmente prestativas quando dentro dos muros (o que sempre me fazia questionar como aguentaram viver tanto tempo sob as ordens dos homens de Klaus). Sem qualquer dúvida, juntaram-se ao nosso pequeno grupo, mas por incrível que pudesse parecer, suas relações com Celso e Antônio se fortaleceram. De certa maneira, assim como Leonardo, Paulina e Elisa sentiam-se confortáveis uns com os outros, aquele grupo, independente das condições, também passou meses vivendo juntos.
Então os ex-membros do grupo inimigo se mudaram sem maiores discussões para a casa mais afastada, onde antigamente eu passava o tempo. Faltavam portas e janelas e ela não estava mobiliada, mas logo começaram a trabalhar nisso, reunindo também móveis e materiais de construção em suas saídas atrás de mantimentos.
Por ter se tornado boa amiga de Carol e contar com ela como apoio durante a gestação, Elisa foi morar na casa dos Rosa, levando consigo Caio. Ela e a falecida irmã Graça assumiam juntas o papel de responsáveis pelas crianças na escola, então não era surpresa que ela e o garoto mais jovem acabassem se aproximando ainda mais dela após todo o conflito. Leonardo e Paulina ficaram junto com Alexandre em sua casa, junto também das ex-integrantes do grupo de Klaus, mas durou poucos dias e eventualmente Leonardo acabou vindo para a casa principal, onde morávamos eu, Melissa, Guilherme e Victória.
Eu ainda não havia me acostumado inteiramente aos nomes a menos.
Hector e Alana moraram conosco desde que chegamos ali, mas agora repousavam no extenso quintal atrás da casa, sob laranjeiras de folhagem cheias. Mariana também foi enterrada ali, e velada na mesma pequena cerimônia que fizemos para nos despedir de nossos amigos. Amarramos estacas de madeira em formato de cruz para adornar seus túmulos. Há muito tempo, o lugar onde Carlos fora enterrado também tinha uma, mas certo dia ela sumiu. Ninguém nunca perguntou a respeito.
Foi um clima... Estranho, para dizer o mínimo, quando alguém puxou uma prece, porque nem todas as vozes se juntaram. A maioria permaneceu em um silêncio respeitoso e meus olhos curiosos observaram atentamente quem: Melissa, mas eu realmente nunca havia a visto orar, assim como Guilherme e Alexandre; Leonardo, e Bruna estavam quietos e, para minha surpresa, desta vez Samuel também. Para mim, não havia mais sentido. Eu segui a religião de minha avó durante toda a vida, mas agora que ela, assim como tantos outros, haviam sido levados, a pureza que me permitia crer em algo além de mim mesma também fora.
— E aí — ouvi a voz de Melissa, que transparecia o bom humor contido no sorriso em sua face. Caminhou até o meu lado, apoiando-se no muro da mesma forma que eu — tá fazendo o que?
Estávamos próximas à torre de vigia (também erguida por Bruna e Antônio), uma construção simples, porém alta o suficiente para possibilitar que víssemos além dos muros. Eu normalmente gostava de sentar lá em cima, sentir o vento no rosto e apreciar o show que era a vista para o pôr-do-sol, mas naquele momento preferi ficar no chão, pertinho de Mei.
— Observando meu karma — abri um sorriso irônico, sem desviar os olhos da cena que acompanhava já há alguns minutos.
Quando Melissa seguiu meu olhar, não conteve uma gargalhada, entendendo ao que eu me referia. Guilherme, Leonardo e Caio jogavam bola no grande terreno vazio entre a casa principal e a residência dos Rosa. Os garotos mais velhos estavam distantes, chutando a bola um para o outro, enquanto Caio fazia o papel de "bobo" no meio, tentando recuperá-la. No começo, Guilherme e Leonardo estavam usando as mãos, mas como eram mais altos que o garoto de onze anos, ele exigiu que só fizessem passes usando os pés. Infelizmente o jogo não ficou nem minimamente mais fácil para ele e ao invés disso deu a oportunidade para os mais velhos ficarem se exibindo com embaixadinhas contínuas e passes altos, demonstrando toda a maturidade enquanto humilhavam um garoto com quase metade de sua idade.
— Então seus dois namorados se deram bem?
Melissa não perdia a chance de me provocar, e de alguma maneira eu sabia que ela havia pego aquele costume de Hector. Claro que eu nunca ligava, pois o importante era que por trás das brincadeiras, não existia julgamento.
Mesmo quando Melissa não estava nos melhores termos com Guilherme (depois que ele já havia se desculpado pelo comportamento daquela noite, mas não tempo o suficiente para a ferida cicatrizar), ela jamais tentou nos afastar, mas foi minha confidente enquanto eu mesma era incapaz de lidar com meus sentimentos. Depois, tampouco deu mais atenção do que alguns comentários maliciosos para minha relação estranha com Leonardo. Era irônico, pois antes do apocalipse, sequer havíamos trocado mais do que algumas palavras educadas, mas agora ela havia se tornado o tipo de amiga que valeria um milhão quando o mundo ainda nos permitia ter problemas normais de adolescentes.
— Bem demais, até. Sabia que eu fui chamar o Gui para sair comigo, atrás de comida e tal, e ele disse que não podia, pois já havia combinado com o Léo? — murmurei, em tom de deboche, mas não estava mais zangada do que me divertindo.
Minha amiga mal conseguia manter a seriedade:
— Você é o melhor entretenimento do apocalipse — ela limpou uma lágrima em seu rosto vermelho de tanto rir — mas falando sério agora, tá tudo bem com você? Eu pego no seu pé, mas não quero te ver mal com isso.
Melissa já sabia de tudo o que ocorrera durante nossa separação, desde as partes realmente importantes, como a convivência com o grupo do hospital, até meus dramas pessoais.
— Estou só brincando, amiga, tô tranquila com tudo. Eu decidi dar um tempo de... Qualquer coisa com eles. Pelo menos aqui dentro do condomínio.
— Mas quando sair com um deles... — provocou, e a calei com uma cotovelada leve nas costelas — é brincadeira! Tipo, a menos que você não queira que seja.
— Engraçadinha — revirei os olhos, mas no fundo eu e ela sabíamos que havia um fundo de verdade na brincadeira — e você, como está com a Paulina?
A expressão divertida em seu rosto se suavizou um pouco e Melissa começou a mexer timidamente em uma mecha de cabelo. Havia diminuído o comprimento nessas últimas semanas e agora seu rabo-de-cavalo estava apenas um pouco abaixo do ombro, ao invés de próximo à cintura.
— Ah, pra ser sincera, está complicado — murmurou, diminuindo o tom de voz e esticando a mão para fazer carinho na orelha de Mei — eu acho que ela nunca tinha pensado realmente em me ver mais de uma vez, sabe? Não de uma maneira escrota, mas ela já disse que é difícil, que eu tenho a mesma idade dos alunos dela...
Mordi o lábio inferior, porque eu era muito menos habilidosa com as palavras do que Melissa, que apesar de rir da minha cara, realmente conseguia dar bons conselhos.
— Sinto muito, Mel — sussurrei, arrastando as costas no muro até encostar nossos ombros, e Melissa aproveitou para deitar a cabeça no meu.
— Ah, não se preocupa. Tô igual você: é complicado, mas não me permito pensar mais nisso do que, sei lá, a "reunião de condomínio" que teremos agora ou estocar mais mantimentos, nos amigos que perdemos...
— Às vezes é bom que esses pequenos problemas ainda existam... Faz a gente ver que nem tudo é questão de vida ou morte.
Melissa ficou em silêncio por alguns segundos, mas eventualmente acertou-me com a cintura, fazendo com que eu me desequilibrasse.
— Ah sim, porque você tem problemas terríveis mesmo, tipo em qual dos dois gostosos você sen-
— Melissa!
Ela gargalhou e nossa pequena comoção animou até mesmo Mei, que se colocou de pé, balançando o enorme rabo. Adiantei-me para agarrar sua cintura, sabendo que fazer cosquinhas era a única maneira efetiva de fazê-la calar a boca, mas Melissa estava preparada e começou a correr no momento em que percebeu minha movimentação. Mei disparou logo depois, ansiosa com a brincadeira, e precisei correr para não ficar pra trás.
— Ei, Rebeca: — Melissa chamou, enquanto fugia de mim — a sensação de alívio depois de uma prova difícil!
Mal pude controlar o sorriso, pois em todo o tempo em que ficamos distantes, pensei em diversas coisas para o nosso pequeno jogo de relembrar momentos que sentíamos falta do mundo pré-apocalíptico.
— Ir ao cinema, — gritei de volta, atraindo a atenção de Bruna e Darlene enquanto passávamos correndo pelas pessoas que também aproveitavam o resto de sol — pipoca com manteiga!
Em momentos como aquele, pegava-me imaginando se em um futuro distante, sentiria falta também daquilo.
✘✘
— Oi — sussurrei para Victória, enquanto me ajeitava na cadeira ao seu lado — como você está?
Nem todos estavam reunidos conosco na casa da família Rosa. A reunião era de conhecimento geral, mas logo se tornou evidente que nem todos estavam convidados: Celso e Antônio evidentemente ficariam de fora, uma vez que seriam os assuntos principais da noite. Darlene educadamente preferiu não participar, enquanto Bruna fez questão, quando questionada. Não houve dúvida quando Pauline e Leonardo se sentaram na mesa, mas para a nossa surpresa, Alex preferiu ficar de fora daquela vez, junto com Elisa.
Cruzei olhares pesarosos com Melissa, que àquela altura também havia percebido como a morte de Hector afetara nosso amigo. Alexandre, apesar de carismático e agradável, tinha tendências a se isolar, por isso muito do seu tempo naquele condomínio foi dividido apenas com Hector. "Não tenho cabeça para decidir sobre a vida de outras duas pessoas, quando tanta gente já morreu" foram suas palavras.
— Ah, o melhor possível — Vic murmurou, ajeitando os óculos de aro fino — foi bom passar esse tempo no hospital, deu para arejar um pouco a cabeça. E você? Deve ter sido muito difícil também.
Eu não me atreveria a medir a dor dos outros, mas Victória definitivamente fora quem passou mais tempo com Alana desde que ela se juntou ao nosso grupo, tornando-se desde sua aluna em aulas de primeiros socorros, até confidente e amiga. Assim como Hector se tornou um melhor amigo para mim.
Antes de nos despedirmos no hospital, Victória veio dar suas condolências, expressando com belas palavras como nada no mundo poderia aplacar a dor que eu sentia, mas que tinha certeza que Hector não queria nos encontrar tão cedo, por isso não tínhamos o direito de desistir. Talvez não falasse aquilo apenas para mim.
Era incrível como desde a forma de falar até seu semblante estavam mudados. Talvez eu só tenha percebido quando a vi empunhar uma arma sem qualquer hesitação para salvar nossos amigos mantidos de refém, mas mesmo em comparação àquele dia, a estadia no hospital parecia ter trazido suas próprias marcas. Calma e delicadeza nunca lhe faltaram, mas era evidente como a assertividade de Alana parecia ter passado para ela, junto dos ensinamentos.
Victória e eu havíamos nos afastado graças à nossa briga, há tanto tempo atrás, antes de deixarmos a casa de Tom e Carol em Florianópolis, e mesmo após os pedidos de desculpa, nunca realmente nos reaproximamos. Agora tudo parecia irrelevante, pois depois de tanto tempo distantes, era como se um respeito mútuo tivesse tido espaço para crescer.
— Também. Sinto muito que não tenhamos esperado vocês para... Enterrá-los. — Murmurei, como se apenas proferir a palavra tornasse tudo o que aconteceu ainda pior. — Você sabe. Estavam se decom-
— Não se preocupe, Rebeca, eu entendo. Agradeço por não ter deixado eles lá.
Victória esteve com Tomas no hospital durante toda a recuperação, pois também era de seu interesse aprender algo com eles. Carol foi visitar o marido duas vezes, mas não ficou muito tempo lá, pois apesar de terem sido uma ajuda inestimável, sabíamos que não podíamos abusar da hospitalidade de Jin e Anderson.
Nossa conversa foi interrompida pelo barulho metálico das rodas girando. Já sabíamos o que estava por vir pelas notícias antecipadas de Victória, mas presenciar a cena ainda apertava meu coração.
Apesar de tudo, a expressão de Tom estava tranquila quando seus olhos se cruzaram com o resto do grupo. O semblante de Carol que parecia carregar todo o peso da fatalidade, enquanto empurrava o marido na cadeira de rodas.
— Boa noite, gente — seu sorriso se abriu, deixando algumas rugas próximas aos olhos evidentes. Acho que todos nós havíamos ganhado umas marcas a mais depois de tudo — desculpem a demora, ainda é um pouco difícil me habituar.
Fechei a minha mão em um punho como reflexo, esperando não deixar transparecer meus sentimentos. Não seria para sempre, eu sabia. Pelo menos, não era para ser: a cirurgia ainda era recente e após a recuperação, Tomas precisaria de várias sessões de fisioterapia para voltar a andar... Mas em nenhum momento censuraram nossas esperanças, o que podia significar que também estavam otimistas.
— Relaxa, Tom. É bom te ver de novo — Guilherme se esticou sobre a mesa para cumprimentar o homem com um soquinho. Como era muito próximo de Samuel, também criou laços com o resto da família.
— Tem certeza que está se sentindo bem, pai? — Samuel perguntou, a voz baixa, mas firme. Era outra mudança vê-lo ali conosco: Preferia evitar os momentos mais agitados, reservando-se a seus afazeres e passatempos, mas desde que o acaso o colocou no meio do perigo, parecia disposto a pelo menos participar como ouvinte.
— Não se preocupe, filho, o que não me faltou nesses dias foi descanso — brincou, mas seu sorriso pareceu genuíno — mais do que tudo, quero que possamos resolver as pendências do condomínio para que eu realmente consiga dormir bem.
A primeira coisa que repassamos, que era algo que frequentemente comentávamos quando eu e ele estávamos internados no hospital, foi a questão das armas. O confronto nos deixara com várias, mas a maioria foi imediatamente confiscada ao chegarmos no hospital, e ninguém teve a inocência de pedi-las de volta. Como já o conhecia, Leonardo previu aquela atitude de Jin e alertou para escondermos algumas (e eu não tive participação nessa ocasião, pois estava desmaiada). Apenas o suficiente para não deixar na cara, pois não aparecermos após todo aquele conflito de mãos vazias.
No fim, restavam-nos três fuzis (pois conseguimos encontrar mais armamento na oficina), quatro pistolas e dois revólveres. O real problema era a munição limitada, mas Tom apontou locais confiáveis para saquearmos em cidades próximas e ergui a mão, assumindo a tarefa, pois já estava parada no condomínio há uma semana inteira. Pela primeira vez, os olhos de Carol se cruzaram com os meus, mas ela não falou nada.
— Quem está com as armas? Aqueles homens têm alguma? — Tom perguntou.
— Não. Ninguém circula com elas, mas estão preparadas caso haja a necessidade — Leonardo respondeu e, mesmo nunca tendo trocado mais do que algumas palavras com Tom, pareciam se conhecer há tempos — e, claro, as duplas que saem, vão armadas.
— Ótimo, mas vamos mudar isso — Tom propôs: — pode ser a critério de rodízio, mas quero que alguém esteja sempre armado aqui dentro. Acidentes como o que feriu Samuel acontecem e se, por um descuido, outra criatura entrar, prefiro que possamos matar o mais rápido possível.
— Tiros vão atrair mais deles — Paulina pontuou — e não estou me opondo, mas quero que você lembre que agora têm crianças aqui.
— Não é para atirar em qualquer ocasião — Leonardo interrompeu, mostrando-se interessado na proposta de Tom — apenas para ter uma resposta rápida caso necessário.
— Não vou te dar outro discurso, Leonardo. Você sabe a implicação de ter armas perto de crianças, só quero que todos estejam cientes da responsabilidade.
Leonardo argumentou, e pela forma como poupavam palavras, aquele parecia ter sido um debate recorrente enquanto faziam parte da escola. Elisa não estava presente, mas Paulina expressou o temor dela pelo porte de armas dentro dos muros.
— Eu fui militar por três anos, Paulina, e concluí quatro cursos de tiro — argumentou. Apesar de quase sempre manter seu jeito descontraído e brincalhão, quando o assunto exigia, Leonardo assumia facilmente um semblante sério — sou licenciado para ensinar. Posso repassar tudo com quem quiser assumir a responsabilidade de andar armado, e inclusive ensinar o básico para Caio, mesmo que ele não chegue perto de uma.
— Você está maluco?!
— Paulina — Tomas limpou a garganta, chamando educadamente sua atenção — entendo a preocupação e por muito tempo também quis afastar o meu próprio filho da necessidade de encarar esse mundo, mas depois de tudo o que passamos, vejo como um mal necessário. As crianças precisarão entender que alguns de nós estarão armados, pois não podemos mais correr os mesmos riscos de antes. Inclusive, Leonardo, quero que ensine Samuel a atirar.
— Tom?! — Carol se ergueu, arrastando a cadeira no chão — Não tomamos nenhuma decisão!
— Não estou falando em dar uma arma para ele, mas permitir que aprenda o básico.
Quando Carolina abriu a boca novamente para argumentar, foi o próprio filho que a cortou:
— Mãe, eu tenho idade para tomar essa decisão. — Samuel manteve o contato visual com ela, o que costumava evitar quando falava com outras pessoas. — Quando Rebeca chegou para me salvar, eu poderia ter ajudado se soubesse atirar.
Bruna ergueu a mão timidamente, atraindo a atenção do grupo:
— Mesmo que não seja para andar armada, eu gostaria de receber instrução de tiros. Falo por Darlene também.
Aquele debate se estendeu por algum tempo, mas depois que contei que mesmo com um número ainda maior de crianças, o grupo do hospital andava armado dentro das próprias dependências, pareceu o suficiente para convencer quem ficou na dúvida. Não era uma votação formal, mas ficava evidente que estávamos dispostos a ouvir a maioria.
— A outra questão, claro, são Celso e Antônio — Tomas virou o rosto para Bruna, erguendo uma mão em sinal de respeito — peço perdão por falar dessa forma, mas-
— Entendo a hesitação do seu grupo — adiantou-se. Bruna era uma garota bonita, de cabelos loiros artificiais e aparência de quem se cuidava muito bem antes do apocalipse. O que podia enganar à primeira vista, mas era corajosa e assertiva quando abria a boca: — estou aqui para tentar representá-los de alguma forma.
— É ridículo sequer cogitar permitir que fiquem aqui — murmurou Paulina, cruzando os braços — e não consigo acreditar que você, principalmente, os defenda.
— Exato: se eu estou falando algo, é porque existe um lado que vocês não viram. — Bruna retrucou: — Não quero defender a passividade desses homens diante das injustiças que sofremos, mas eu seria ridícula de esperar uma atitude enquanto estavam sob as ordens de Klaus... Só recentemente entendi os motivos de Celso, porque até então não sabia que ele tinha alguém além de Mariana. E mesmo tendo sido um covarde, o fato de Antônio tê-lo traído foi o que possibilitou que vocês tivessem alguma chance, ou estou errada?
— E o que impede esse rato de trair o nosso grupo? — Leonardo empertigou-se em direção à mesa.
— Talvez o fato de que, pela primeira vez, ele faria parte de um grupo, não simplesmente estaria sob a ponta da arma de um lunático. Não esqueça que eu também "traí" aqueles homens.
— É importante pensar também — a voz suave de Victória chamou nossa atenção — no que significa expulsá-los. Daremos armamento e provisões e mandaremos seguirem suas vidas ou apenas os empurramos para fora dos portões? Sei que todos vocês conseguem ver que a linha de uma pena de morte fica tênue nesse mundo.
O silêncio caiu sobre nós por alguns segundos, enquanto cada argumento era digerido. Eu entendia o quão particular era para algumas daquelas pessoas a lembrança de que aqueles homens estavam juntos, por quaisquer razões, com um grupo cujos líderes não tinham vergonha de carregar símbolos de ódio.
— Victória ergueu um ponto importante — falei — pode ser injusto, mas Celso também tem uma filha. Não vejo uma solução humana que envolva mandá-lo embora.
Vi como Leonardo inspirou profundamente, provavelmente porque já esperava que eu assumisse aquele lado. Era difícil dizer que eu os defendia, apenas não encontrava uma solução mais fácil do que manter aquela espécie de trégua. Antônio era uma situação delicada, mas Celso fora quem me deu qualquer chance de sobreviver, explanando os planos de Klaus e me dando uma arma. Aquele foi o erro que deu fim a sua irmã.
— O que você está implicando? — Pela primeira vez na noite, ouvi a voz de Carol. Sua encarada era gélida sobre mim, uma expressão tão diferente em seu rosto bonito que me causou estranhamento.
Suspirei.
— Não sei. Entendo todos os lados, apenas não outra solução humana para a questão. Além do fato óbvio que esse conflito nos explicitou como o mundo permanece perigoso, mais pessoas capazes de-
Eu acompanhei toda a sua movimentação, ciente de que seu semblante estava diferente, apenas jamais teria esperado o golpe. Carol acertou meu rosto com a mão fechada, e mesmo que a dor não pudesse se comparar a outros golpes recentes que eu levara, fora o suficiente para me atordoar ainda mais profundamente.
— Por que você ainda acha que tem que dar opinião? As suas ideias de merda já não causaram problemas o suficiente?!
Quase imediatamente, o barulho de cadeiras sendo arrastadas arranhou meus ouvidos. Sons de exclamação se fizeram presente em diversas intensidades. Tom chamou, com o choque evidente na voz, pela mulher, e Victória deixou um gritinho de susto escapar
— Carol! — a voz de Guilherme veio primeiro, conforme ele se ergueu do assento.
— Ei! — Leonardo ecoou os movimentos.
Senti o sangue ferver, mas não pelo motivo que esperava. Fuzilei-o com os olhos:
— Não se metam — rosnei. Virei o rosto para Carol, jogando com a cabeça uma mecha escura para longe dos meus olhos. Independente da força, seu golpe acertara em cheio na cicatriz da minha bochecha e eu sentia o sangue começando a escapar do ferimento recém aberto. — Pode acertar de novo, se isso te fizer se sentir melhor.
Eu não quis ser cínica, mas naquele momento não havia nada que eu falasse que consertasse a situação. Os olhos de Carol pareciam pegar fogo e ela não hesitou quando ergueu o punho e me acertou de novo, provavelmente porque achava que era uma provocação. Não era.
— Graças a você minha família foi quase-
— Mãe!
— Carol! — Tom ergueu a voz, mas foi Paulina quem se levantou para impedir que ela me socasse uma terceira vez. — Rebeca, desculpe, eu-
— Não tem problema, Tom. Talvez eu mereça esses — respondi, limpando o rastro de sangue com as costas da mão. Em nenhum momento desviei os olhos de Carol: — Não precisa perder o seu tempo me falando coisas que eu já sei: senti na própria pele o quanto cada escolha errada nos custou!
— Carolina — Melissa também se ergueu, mas não se aproximou — não esqueça que Rebeca voltou para salvar Samuel.
— Eu não aceito a tentativa dela de virar um mártir! — Respondeu-me a mulher mais velha, desvencilhando-se com um puxão do aperto de Paulina. — Não sei quando alguém decidiu que você era capaz de tomar decisões por todos, mas é bom que seja capaz de assumir seus erros também! Já passou da hora de calar sua boca e deixar pessoas mais responsáveis assumirem seu lugar.
Carolina proferiu todas aquelas palavras com o dedo apontado para o meu rosto, e novamente o meu silêncio pode ter lhe soado como provocação, pois afastou-se logo depois, saindo daquele cômodo.
A comoção que se iniciou foi instantânea, iniciada por Samuel, que se ergueu da mesa para seguir a mãe. Victória e Melissa se aproximaram, a primeira estendendo-me um guardanapo para estancar o sangue.
Apesar de muitas vozes ecoando pela sala, não consegui prestar atenção em ninguém, enquanto fitava a direção pela qual Carol seguiu. Assim como Tom ou Victória já haviam feito comigo, sabia que a situação era um combustível propenso para explosões repletas de palavras mal calculadas. Não eram elas que doíam naquele momento, mas o fato de que, por mais que eu me esforçasse para afastar aquela dor que corroía, no fundo também acreditava nela.
— Estou bem — finalmente respondi, quando Leonardo, Guilherme e Tomas também haviam se aproximado. Afastei o guardanapo do meu rosto, amassando o papel manchado de sangue.
— Rebeca, peço desculpas pela Carol. Toda essa situação a afetou muito, mas não quero que pense que-
— Tom — interrompi, olhando-o nos olhos. Era muito diferente precisar abaixar o olhar para isso — não se preocupe, prometo que estou bem. Podemos terminar essa reunião? Ainda nos restam muitas coisas a consertar...
✘✘
Nota da autora:
Boa noite, amigos!
Uau, desculpem a demora, mas acho que finais de livro são o meu gatilho haha Eu perco completamente a noção e começo a escrever sem parar. Esse capítulo, que comecei a revisar quando tinha 2k palavras, acabou com quase 4,5k.
Espero que tenham gostado, apesar da demora 💖
Me contem: esperavam essa reação da Carol? 👀 Concordam com os pontos erguidos pelos personagens?
Quem disse que depois da guerra havia paz, mentiu.
Cara, eu nem acredito que já estamos no capítulo 58. Segundo o meu planejamento (que vocês sabem que não é a coisa mais confiável do mundo...), restam apenas 2 capítulos...
Eu vou falar sobre isso com mais calma nos agradecimentos, mas eu acho que amei mais ainda escrever Em Desespero do que o primeiro livro. Se está doendo para vocês, eu nem consigo expressar exatamente o que eu tô sentindo sabendo que o final desse livro se aproxima.
Para quem ainda não sabe, temos mais 3 livros a caminho. A jornada da Rebeca ainda está bem longe de acabar e vocês vão precisar me aturar por muito tempo, para o bem ou para o mal.
Dito isso: suposições a respeito do próximo título? 👀
(mas para aqueles muito curiosos: saibam que assinando meu Catarse vocês já ganham acesso às capas novas -- incluindo a do próximo livro!)
Aliás, falei no capítulo anterior que eu havia vacinado e fiquei mal por quase uma semana. Juntando isso com o lançamento do meu Catarse e todo o trabalho com o outro livro, acabei ficando meio ausente com os comentários. Prometo tentar colocar tudo em dia assim que possível 💕 O apoio de vocês faz toda a diferença para mim.
Por favor, não se esqueçam de deixar a estrelinha!
Um beijo gigante, e vejo vocês segunda-feira que vem!
Não sejam mordidos, pois o fim se aproxima.
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