Capítulo 5.
O céu de final de maio amanheceu cinza. O término do verão já se tornava evidente conforme o vento ficava mais gelado e nossas roupas mais compridas.
Melissa bocejou, o rosto exausto e com olheiras, enquanto amarrava os cabelos. Acordar cedo nunca fora um problema para mim, e depois do apocalipse se tornava cada vez mais habitual, mesmo tendo poucas horas de sono por noite. Minha amiga, pelo contrário, ainda acordava com a lentidão de quem precisava ir para a aula.
— Prontas? — Hector colocou a última mochila no porta-malas do HB20. A previsão era que voltássemos em três dias, e além de quatro mochilas, uma mala extra com alguns suprimentos também estava lá. Tom se certificara de tudo.
— Sim. — Falei, abaixada, contra o pelo de Mei. Achei que não choraria, mas a única palavra que Hector disse já me fez tremer e sentir meus olhos lacrimejarem. Eu já havia saído várias vezes, e em nenhuma deixei Mei para trás. Durante a noite, enquanto organizávamos nosso plano, eu não sentia qualquer medo, mas somente a existência da possibilidade de não voltar a ver Mei me fazia tremer.
— Vamos cuidar bem dela, Rebeca. — Alana falou, também acariciando a cabeça do meu Pastor.
Mei estava alegre há poucos minutos atrás, enquanto saíamos com mochilas e carregávamos o carro, como sempre ficava quando estávamos de saída. Ela também tinha medo dos zumbis e seu sono era sempre mais leve quando estávamos do lado de fora dos muros, mas em sua inocência canina, cada vez que saíamos era como um passeio gigante.
Quando me abracei e comecei a sussurrar que logo voltaria e que ela deveria se comportar, seu ânimo foi embora, reconhecendo as minhas atitudes de despedida. Nesse momento Mei estava desolada, ganindo cada vez que eu me afastava.
— Vai ser horrível sem você também, meu amor. — Respondi seus chorinhos, com o coração partido. — Mas você precisa ficar aqui para proteger todo mundo, entendeu?
Era triste ter que deixar a minha fiel escudeira para trás, mas igualmente essencial: precisávamos que o plano de Tom funcionasse.
Tom me olhava com solidariedade, como quem dizia que eu poderia levar o tempo que precisasse, mas não quis abusar de sua educação. Abraçando Mei pela última vez, beijei a ponta do seu focinho e respirei fundo antes de olhar para Guilherme:
— Cuida dela, tá? — Era óbvio que depois de mim e Melissa, Guilherme era a pessoa favorita de Mei. O que não devia ser surpresa, pela quantidade de tempo que passávamos juntos e em como Guilherme sempre trazia algo para Mei quando vinha me ver. — Ela vai te seguir o tempo todo, assim como fica comigo. É provável que não queira comer hoje, por isso pode tentar dar a besteira que parecer mais atrativa, se ela não quiser ração. Vai ficar meio cabisbaixa o dia inteiro, mas acredito que amanhã esteja melhor.
— Não se preocupa, vou cuidar tão bem dela que quando você voltar ela nem vai mais querer saber de você. — Guilherme brincou, e quando esticou a mão na direção de Mei, ela o lambeu.
Sorri, mas mesmo Melissa, que parecia em completo sofrimento pelo sono, encontrou forças para lançar um olhar de desaprovação para ele, provavelmente porque achou aquela brincadeira idiota. Ou porque achava Guilherme idiota.
— Por favor tomem cuidado. Tenham certeza de quem eles são antes de se aproximar! — Carol implorava, enquanto abraçava o marido mais uma vez.
— É, pai. Não vá fazer nada idiota. — Samuel tentou sorrir, mas a verdade era que estava parecia mais abatido do que Mei.
— Vocês também, queridos — Carol direcionou os olhos claros para nós, com ternura. — Sei que todos são altamente capazes de cuidar de tudo, e justamente por isso: não baixem a guarda!
Despedimos-nos de todos, e senti um arrepio: não fazíamos mais aquilo quando saíamos para buscar mantimentos. Dar um beijo e um abraço cada vez que saíamos ou que voltávamos já deixara de parecer necessário, mas agora, quase automaticamente, fizemos de novo. Dessa vez não estávamos saindo somente para buscar comida. Tudo poderia dar errado.
Quando entrei no carro, olhei para Mei e Guilherme ao lado da minha janela.
— Toma cuidado — Guilherme disse, mas não se aproximou muito. Apesar do que fazíamos, nunca mais demonstramos qualquer afeto quando mais gente estava por perto.
— Vou tomar, você sabe. Mantenha-se forte e proteja o pessoal daqui. — Eu sabia que Guilherme se opunha a ideia de nos arriscarmos daquela forma, mas agradeci por ele não falar sobre isso. Não era como se eu tivesse escolha.
— Você sabe que eu não...
— Consegue sim — interrompi. Sabia o que ele iria falar, e da mesma forma que ele não concordava com a minha escolha, eu não concordava com a posição inútil em que ele se colocava. — Consegue porque eu conseguiria.
A forma como fui incisiva o pegou de surpresa e ele abaixou os olhos, passando a mão distraidamente pela cabeça de Mei e deixei um suspiro desapontado escapar.
Tom começou a dar a ré com o carro e ouvimos as últimas despedidas e desejos de boa sorte. Somente no último segundo antes de deixarmos os muros do condomínio, olhei para trás a tempo de ver Guilherme assentindo para mim, um olhar diferente no rosto.
Mas logo já estávamos na estrada e aquele era um problema do passado conforme uma nova inquietação assolava meu coração. Tom acelerou o carro, deixando nossos colegas para trás, e nos conduzindo para o que tinha chance de ser a coisa mais perigosa que já fizemos até então.
✘✘
Acordei com um susto, sem sequer saber quando havia fechado os olhos.
Olhei para o lado, e vi os cabelos loiros de Melissa embolados em seu rosto, enquanto ela também estava em sono profundo. Agora o sol já estava na metade do céu e fazia calor, bem diferente daquela manhã.
— Hm, que merda... — Murmurei, limpando um pouco de baba do canto da boca. — Desculpem, eu peguei no sono.
Tom me olhou pelo retrovisor e sorriu.
— Não precisa se preocupar, Rebeca, mas estamos quase chegando. O caminho foi tranquilo o suficiente e Hector ficou acordado me guiando.
— Já chegamos na cidade?
— Quase chegamos em Botuverá. Nem tão perto quanto eu imaginei que fosse, mas com certeza é essa a cidade. — Quem me respondeu foi Hector, que me olhava pelo retrovisor lateral.
— Município — Tom corrigiu.
Era um lugar pequeno e bonito, comparada com a capital. Mesmo quando não conseguíamos ir por caminhos alternativos e precisávamos pegar a rodovia principal, haviam alguns acidentes e engarrafamentos, mas o som de zumbis era escasso. Conforme a paisagem verde lentamente era substituída por casas e muros, os grunhidos começavam a se fazer presentes.
Quando a estrada se converteu em ruas menores e algumas lojas começaram a aparecer, Tom desacelerou o carro e, por hábito, deu seta antes de encostar em um estacionamento vazio.
Melissa acordou reclamando, mas já estava ciente de que depois da entrada da cidade, seguiríamos o caminho à pé até o colégio, que devia ficar quase dez quilômetros para dentro.
— Quando Alex e eu passamos por aqui a maioria das casas estava fechada. Quando não estavam vazias, os próprios muros prendiam os mortos lá dentro. — Hector explicou, colocando as alças da mochila nas costas.
— Hm, cidade pequena — Tom pontuou. — Muita gente deve ter parentes na capital ou ao redor. Tenho certeza de que a epidemia se tornou pior nos lugares com mais densidade demográfica primeiro.
— Pode ter dado tempo para que as pessoas fugissem para o mais longe possível. Ou para que tomassem a decisão errada e fossem para a capital atrás de suas famílias — conclui seu raciocínio e Tom assentiu.
— Bom para a gente — o homem falo. — mas tomem cuidado. Rebeca, Melissa, desculpem a pergunta, mas trouxeram outras roupas?
Hector abriu um sorriso divertido, enquanto Tomas parecia extremamente desconfortável em tocar naquele assunto. Eu e Melissa já estávamos cientes de todo o seu plano, e ele parecia bastante aceitável. Nenhuma de nós teve vergonha ao olhar para os jeans surrados e jaqueta de couro que usávamos, antes que eu respondesse:
— Sim, estamos prontas. Quando for seguro, nos trocamos.
Logo abandonamos o carro e começamos a nos movimentar por terra, a formação básica com dois na frente e dois atrás. Eu e Hector estávamos com facões em punho, mas enquanto eu tinha o canivete guardado no bolso, ele estava com sua pistola embainhada. Depois de muita discussão, Tom preferiu deixar a sua com Alex, que deveria tomar conta caso qualquer coisa fugisse do controle no condomínio.
Em outro momento em que eu e Melissa estávamos fora, Tom e Hector chegaram de uma pilhagem em uma loja de artigos de caça com balas de sobra para as pistolas que tínhamos. Todos receberam instruções sobre o básico das armas, com direito a se afastar do condomínio para treinar disparos.
Quando voltamos, também pudemos treinar, já tendo sido instruídas por Hector antes sobre como montar e desmontar, travar e disparar a arma (infelizmente, na época, não dispúnhamos de balas para treinar). Era muito pouco do que realmente seria necessário para formar um bom atirador, mas todos sentiam-se mais seguros sabendo que qualquer um ali poderia manusear uma arma.
"Mesmo que Melissa já tivesse sido obrigada a usar uma." Pensei, desanimada.
— Devemos parar? — Minha amiga apontou com o queixo a fachada de um mercadinho simples. Uma das janelas estava quebrada, mas ele não parecia em grande desordem. Havia um zumbi parado à frente da porta, como se estivesse tentando lembrar o que precisava comprar.
— Já limpamos esse da outra vez. — Hector respondeu em um sussurro. — Mais para dentro da cidade encontramos outro, grande. Não deu tempo de ir lá porque... Enfim — ele deu de ombros, o motivo óbvio, já que estávamos ali.
Antes de pós-apocalíptico, aquele município parecia uma cidade fantasma. Havia os rastros, claro: corpos em diversos níveis de decomposição pela rua, mortos rangendo os dentes de dentro de portões gradeados, carros acidentados e o constante rosnado. Mas em comparação com outras que estivemos, era relativamente tranquila. Quando encontramos um grupo de zumbi, este tinha 6 membros lentos (um sequer tinha pernas, por isso somente se arrastava) e conseguimos dar conta sem esforço.
Era desconfortável não ter armas de média distância, contando somente com um facão e um canivete de apoio, para eliminar as ameaças. Enquanto a maioria dos zumbis eram lentos e até mesmo conseguiam ser pegos desprevenidos por nós, elas eram praticamente inúteis contra os corredores ou os que eram fisicamente superiores. Você precisava estar perto para cravar a faca e mirar em pontos de fácil perfuração (às vezes era necessário torcê-la, aumentando o machucado). A vantagem, claro, era a precisão e pouco esforço físico: na maioria das vezes era preciso mais de um golpe de bastão para acabar com eles, e cansativo era pouco para descrever aquilo.
Mesmo assim, Melissa e Tom estavam com barras de ferro grossas tiradas dos materiais de construção depositados no condomínio.
— Amiga — Melissa chamou a minha atenção, olhando para algo à minha direita.
Assenti e virei para o zumbi que se aproximava. Uma mulher velha e pequena. Usava somente uma saia longa rasgada e de seu peito devorado conseguíamos ver os ossos de sua caixa torácica à mostra, com larvas comendo o resto de carne que havia ali. Alguns sempre estavam em estados piores do outros. Nunca saberia dizer se preferia ver alguém inteiro, a imagem semelhante a de um ser humano maculada somente por olhos injetados e veias saltadas na pele empalidecida que indicavam a doença; ou algo completamente mutilado e visceral, mais parecido como um monstro de filmes.
Me aproximei com cuidado, estudando os movimentos lentos da velha. Não era rápida nem ágil, então puxei-a pela parte de trás da cabeça e trouxe de encontro com a lâmina da faca. Ela agarrou a minha jaqueta de couro por alguns instantes, mas logo o afrouxou o aperto. Tive tempo de tirar a faca antes que o peso do cadáver a puxasse para o chão. A bonita lâmina com brilho arco-íris estava suja de um sangue negro.
Alana nos ensinou os pontos mais frágeis do crânio e onde deveríamos mirar quando quiséssemos perfurá-lo. Sempre nos olhos ou nas áreas ao redor, e colocando força, mas com cuidado para puxar a faca de volta pelo mesmo corte. Era desagradável chegar tão perto, mas eu começava a criar segurança.
— Saudades do bastão? — Hector perguntou quando olhei para a minha luva suja com cara de nojo.
— Um pouco, mas me acostumando — respondi e limpei a mão na saia da velha. — Era um pouco menos nojento. E seguro, claro.
— Podemos tentar procurar algo na volta. Acho que ainda podem ter algumas barras de ferro com tamanho bom no condomínio. — Ouvi a voz de Tom enquanto voltávamos a caminhar e, quase um minuto depois, um som metálico alto. Virei para trás a tempo de ver um zumbi golpeado caindo no chão, imóvel. Tom ergueu o polegar para nós, sinalizando que estava tudo bem.
— Melhor evitar — Hector respondeu, referindo-se ao golpe. — Vamos acelerar e só lutar se for extremamente necessário para não perder tempo, nem atrair mais deles.
O outro homem concordou — fiquem de olho nos arredores, sempre procurem lugares seguros para corrermos se algo der errado. Quanto tempo falta, Hector?
— Uns 10, 20 minutos de caminhada. É perto da entrada da cidade. — Ele respondeu.
Conforme combinado, aceleramos para uma quase-corrida. Logo que possível nos afastamos da rua principal, seguindo por caminhos mais estreitos e com curvas. Hector estava na frente nos guiando. Eram poucos zumbis, mas esses ficavam para trás em seus passos cambaleantes. Nunca formavam grupos preocupantes e somente dois que encontramos corríamos, e esses Melissa conteve.
Mantivemos o passo sob o sol forte e só paramos quando chegamos na escola.
✘✘
Nota da autora:
Olá amigos, tudo bom?
Peço desculpas pela demora na atualização, mas hoje de manhã meu pai teve de fazer uma cirurgia e acabei ficando em função disso. Felizmente já está tudo bem ❤
Pela primeira vez a Rebeca vai sair e deixar a Mei pra trás 😥 Porém acho que o grupo mais forte está formando... Será que a galera do condomínio vai ficar bem?
Vou deixar o hype (spoiler da autora pode?): semana que vem conheceremos gente nova, para o bem ou para o mal.
Então não sejam mordidos até lá ❤
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