Capítulo 48.
— Não — a palavra arranhou a minha garganta — não, não, não...
Foi como se meu corpo se partisse em milhares de pedacinhos, um vácuo insuportável se formando em meu peito, engolindo qualquer sentimento além da dor e do medo. Estávamos tão perto de voltar para casa, de tudo terminar bem... Não era justo. Não era justo!
A tontura me atingiu, implacável. Cambaleei até sentir alguém me oferecendo apoio e percebi que era Victória. Todos os outros tinham variadas expressões de choque em seus rostos, mas Vic parecia calma.
— Você sabia? — lamentei, sentindo as lágrimas escorrendo pelas minhas bochechas. Pareciam arder. Nem mesmo a dor na minha perna era equivalente.
Então percebi que ela não estava calma. Tentava conter a careta de choro que ameaçava se formar, firmando os lábios um no outro enquanto fechava os olhos para impedir as lágrimas de caírem. Victória assentiu com a cabeça.
— Eu pedi para ela não contar, Rebeca — Alana me explicou, a voz baixa em sua calma implacável. Meu coração latejava ao ver como ela se atrevia a sorrir: — Foi ainda quando estávamos na escola, no meio do tiroteio, a Vic me ajudou a limpar, mas... Acho que não tem jeito mesmo.
— Alana, por que você não falou pra ninguém? — Guilherme se adiantou. Suas mãos tremiam, como era recorrente quando a ansiedade começava a sair de controle. Sua voz falhou conforme ele falava: — A gente podia ter feito algo, pensado em alguma coisa... Poderíamos... — mas não se atreveu a terminar.
— Amputar? — Alana suspirou — Seria muito arriscado, precisaria de recursos... Simplesmente não havia tempo. Tom e Alex estavam seriamente feridos e o meu dever é prestar atendimento a quem precisa de ajuda. Agora já é tarde. O vírus já se espalhou, sinto como a febre está alta e... Simplesmente dói muito.
Ninguém falou nada por alguns segundos, o crepitar do fogo e os grunhidos crescentes transformando-se no som ambiente daquele inferno.
Daquele inferno literal. Porque só podíamos estar lá.
— Não se preocupem, eu não tratei de nenhum deles sem tomar cuidado. Usei luvas enquanto estava lá e não encostei diretamente em nenhum machucado. Pedi para Vic me ajudar com os ferimentos mais leves por isso — seus olhos castanhos focaram em mim, e pela primeira vez ela estava em um ângulo que permitia o fogo iluminar seu rosto: estava assustadoramente pálida e suas olheiras começavam a se acinzentar. Como eu não percebi antes? — Rebeca, tive o cuidado de não encostar diretamente no seu machucado também. Não precisa se...
Como muitas outras vezes na minha vida, movi-me antes que eu pudesse pensar, sem saber ao certo o que eu iria fazer. A dor era sufocante, e aquele buraco de vácuo no lugar do meu coração levava até a minha última grama de esperança. Por um curto momento achei que bateria em Alana — como... Como ela se atrevia a esconder aquilo. A sofrer sozinha. Quanto medo estava sentindo?
Mas no fim ela me recebeu em um abraço quando manquei em sua direção. Como era seu juramento, amparou-me quando minhas pernas fraquejaram:
— Não! — Lamentei de novo, na ânsia infantil de que aquilo fizesse alguma diferença. Seu corpo estava quente — Alana, a gente tenta fazer alguma coisa... Ainda dá tempo de ir para o hospital!
— Não, Rebeca. Já arriscamos demais — ela sussurrou para mim — Se o grupo do hospital é tão precavido como Leonardo avisou, estar com alguém infectado pode colocar tudo em risco. Além disso, Rebeca eu... Só estou cansada. Acho que a febre está aumentando... Por favor, é melhor você ficar longe de mim. Está muito ferida, não vamos correr nenhum risco.
— Não, não, não... A gente tava tão perto... Eu não aguento perder mais alguém! — eu queria gritar, mas nem para isso tive força.
Alguém me puxou dos braços de Alana, mas eu não soube quem. Ela parecia tão estranhamente... Bem. Viva. Falando com a sua típica voz calma e certeza nas palavras. Mas bastava um ângulo certo para extinguir as sombras e evidenciar as olheiras crescentes, as veias que começavam a se destacar...
— Amiga, eu sinto muito — Victória a abraçou, independente dos protestos de Alana. Ela tentava segurar as lágrimas, mas parecia igualmente a ponto de entrar em prantos — eu queria ter feito alguma coisa...
Queria mandar que elas parassem de falar aquelas coisas. Quis gritar quando Paulina repetiu que não era justo ou quando Guilherme deixou mais lágrimas caírem. Por um só segundo queria acreditar que havia mais algo para fazer e que aquela impotência que devorava todo o meu corpo era apenas uma ilusão.
— Não tem motivo para arriscarmos mais tentando me levar junto — ela deu outro sorriso fraco — e eu sinceramente não acho que vá aguentar mais... Estou começando a sentir muito frio e sono, e a dor já é terrível, mas...
Então uma lágrima brilhou em seu rosto. Ela fechou os olhos, também tentando conter o choro:
— Eu não quero me transformar. Por favor, me deixem para trás, mas não... Não essas coisas. Não queria precisar pedir isso para alguém, mas... Acho que um tiro-
Não ouvi mais nada.
Como se a mesma dor agoniante do tiro que eu levei houvesse embranquecido de novo a minha visão. Pensei que ia desmaiar e presumo que tenha ficado fora de órbita por mais de minuto, até que a voz de Leonardo me arrancou daquele transe:
— Eu faço. Não precisa ser um de vocês... Não precisa ser pior do que já é.
A discussão já havia se iniciado? Tentei limpar minha mente anuviada. Victória, chorando, disse que não conseguia fazer aquilo. Nem Guilherme. Samuel apenas estava quieto. Mesmo Paulina parecia prestes a vomitar — então, como se aquela confusão não fosse terminar nunca, Celso pediu para nos apressarmos. Disse que mais zumbis estavam chegando.
Cambaleei quando o apoio que Leonardo me dava se foi e observei com horror enquanto ele caminhava na direção de Alana. Em um momento completamente delirante, imaginei que ela ainda estivesse com os cabelos azuis e o antigo corte. Havíamos voltado para aqueles primeiros dias de incerteza e desespero, e a sua expressão transmitia aquele mesmo medo. Não... Ela não podia morrer assim.
Fiz mais uma vez aquilo que já se tornava costume. Engoli a faca enterrada na minha garganta e me obriguei a respirar fundo. A afastar o medo, a tontura, a dor...
— Não, eu faço — interrompi Leonardo, surpresa com o quão estável parecia minha voz. A atenção voltou para mim: — se é para ser assim, você merece terminar com alguém que começou junto com você.
O assustador é que tudo estava sendo rápido, porque simplesmente não havia tempo para discutir! Paulina se afastou para ajudar o grupo que lidava com os zumbis; Guilherme percebeu o choque que Samuel carregava em seu rosto e foi para perto dele; Victória parecia prestes a desmaiar. Foram segundos de um debate rápido dos quais eu estava atordoada demais para participar. Sabia que Alana havia protestado e, com poucas palavras, calado todo mundo. Ninguém argumentou, porque não havia o que argumentar. Não quando zumbis se amontoavam para nos prender ali.
— Você não precisa fazer isso, Rebeca — Leonardo me censurou.
— Nem a Alana precisava esconder a mordida por um dia inteiro e engolir a dor sozinha — retruquei, mancando em sua direção. A dor era sufocante, mas nem se equiparava a que corroía meu peito — mas ela fez. Eu posso ajudar ela agora.
— Obrigada, Rebeca — ela limpou os olhos. Percebi que veias vermelhas se destacavam ali também — eu não queria pedir algo assim para você, mas... Estou com tanto medo.
Então ela desabou. Cheguei a tempo de envolvê-la em um abraço quando cobriu os olhos com as mãos e desatou a chorar. Leonardo apenas observou, visivelmente consternado, mas não dei atenção às suas tentativas de protesto.
— Não é justo com você! — ela lamentou — Não queria te fazer passar por mais isso... Você já... Só hoje... Me desculpa. Eu não queria...
— Tá tudo bem — encontrei uma calma que não me parecia familiar enquanto acariciava seus cabelos. Lembrei do dia em que trouxe a tinta para esconder o azul desbotado, e Alana ajudou a cortar meus próprios cabelos — hoje você quem foi incrível. Meu Deus, você aguentou o dia inteiro assim, Alana...
Ficamos quietas por alguns segundos enquanto as convulsões do choro iam se acalmando e aos poucos ela estabilizava a respiração. Limpou as lágrimas, ainda sob meu abraço, e virou o rosto para mim. Senti meu coração apertar percebendo o quão atordoada ela parecia, como se tivesse dificuldade em se manter em pé.
— Dói tanto, Rebeca — mas seu rosto não era mais triste. Ela sustentava aquele mesmo sorriso complacente: — não sei como você aguenta tanta coisa.
— Aguento porque nunca estive sozinha... Que nem você não está agora — tentei sorrir, mas a verdade era que aquilo só me machucava.
— Rebeca, só por favor... Não demore — ela fungou e esticou o braço para pegar a pistola já engatilhada das mãos de Leonardo. Ele cedeu e ela a colocou em minhas mãos. A empunhadura parecia me queimar — Eu realmente não estou me sentindo bem. Na verdade, minha visão está completamente embaçada... Acho que o infectado tem que morrer antes de se transformar, mas por favor, não arrisque. Já foram perdas demais.
Mordi o lábio inferior, colocando toda a minha concentração em engolir o choro. Como se meu coração tivesse se transformado em uma bola de espinhos, cada pulsar doía em uma agonia interminável, mas... Não podia demonstrar. Não em frente a Alana. Mesmo em toda a sua maturidade e disciplina, ela não era capaz de disfarçar o medo que sentia e aquilo era o pior. Alana ironicamente foi quem nos afastara do medo tantas vezes, tratando de machucados e assegurando que tudo ficaria bem... Ela não podia morrer com aquele sentimento.
Respirei fundo mais uma vez enquanto assentia a seu pedido, tentando estabilizar minha voz. Em seguida, puxei-a para um abraço, percebendo como seu corpo tremia. A mão com a qual eu segurava a pistola parecia disposta a soltar aquele peso e negar o inevitável, mas afastei aquela ideia.
— Alana, o que você fez foi incrível. Você é tão forte, meu Deus! Salvou a nossa vida tantas vezes... Para ser sincera, se não fosse você naquela tarde em Florianópolis, sequer teríamos saído vivos! — Minha voz ameaçou quebrar na última palavra, então respirei mais uma vez antes de continuar: — Foi você, desde o começo, que salvou todos nós. Todas as vezes. Desculpa p-por... Ter sido tão teimosa.
Para a minha completa descrença, Alana deixou um riso escapar.
— Rebeca — senti seus dedos passando carinhosamente pelos meus cabelos. Alana era um pouco mais alta do que eu, e minha cabeça estava apoiada em seu ombro — eu me sinto egoísta por te pedir algo assim, mas fico feliz que você esteja aqui agora. Eu estava com medo antes, mas a sua presença traz uma segurança pra gente... Sempre trouxe. Desde o começo foi você que se arriscou pela segurança dos outros, que garantiu que tudo ficaria bem mesmo nos piores momentos... E que fez tudo ficar bem. Na medida do possível, porque esse é um mundo difícil demais agora. Por favor, não carregue arrependimentos grandes demais. E se eu puder te pedir uma coisa é que também aceite ajuda: aceite ser protegida da mesma forma que protege. Você é a mulher mais incrível e corajosa que eu já conheci, mas não precisa carregar o mundo inteiro nas costas. O peso é muito grande.
— Eu prometo... Eu vou — assenti, sentindo a camiseta de Alana úmida pelas minhas lágrimas.
— Mas pelo menos não me resta preocupações... Eu sei que quem continuará a luta é o grupo de pessoas mais fortes que restaram. Olhar para vocês me faz acreditar que esse mundo horrível tem alguma esperança.
Percebi que Alana olhava para algo sobre o meu ombro e, sem soltá-la, virei o rosto para também observar o resto do nosso grupo. Queria que Melissa estivesse aqui...
Percebi que pela primeira vez em todos aqueles minutos o corpo de Alana parou de tremer. O calor ainda indicava que a febre estava alta, mas agora mesmo as lágrimas haviam secado enquanto um sorriso sincero emoldurava seu rosto.
Eu queria que ela morresse sem sentir medo. Aquele sentimento deveria ser reservado somente a quem ficaria.
— Sabe qual é o maior absurdo de todos? — murmurei, erguendo meu rosto para cima — Como o céu ainda se atreve a ser bonito em um mundo como esse.
Alana olhou para cima e viu o mesmo céu escuro que eu, onde as nuvens começavam a se dissipar, permitindo finalmente que as estrelas voltassem à noite que lhes era de direito, iluminando-a com infinitos pontos brilhantes de esperança.
Vi seu peito se inflar lentamente enquanto inspirava o ar frio da noite. Ela sorria. Talvez já soubesse, mas eu esperava que não.
De qualquer forma, não estava mais tremendo.
O último estampido daquela batalha ecoou sob o céu noturno quando Alana se foi. Talvez ela tenha percebido quando eu movi meu braço, mas não olhou para baixo em nenhum momento. Eu preferia acreditar que quando apertei o gatilho para estourar seu cérebro, ela estava focada apenas no infinito que nos cobria.
A realidade, pesada como o corpo sem vida que precisei amparar, interessava somente a mim.
Para a minha surpresa, meu corpo não se rachou com uma dor esmagadora. Na verdade, por todos aqueles segundos, não senti nada — mas não me atrevi a olhar, pois sabia que o corpo que eu segurava agora tinha um buraco sob os cabelos de onde o sangue vertia. Não queria que ela caísse, mas a minha fraqueza ou o peso do corpo foi mais forte, e precisei deitá-la sobre o chão molhado.
Leonardo segurou meu braço quando cambaleei, mas após encontrar estabilidade, afastei-o. Aquele zumbido infernal havia voltado, pois mais uma vez estive à queima-roupa do tiro, mas agora parecia sufocar todas as outras vozes que, bem ao longe, eu sabia que estavam presentes.
Achei que iria vomitar.
Senti minhas pernas fracas quando ergui os olhos para tentar identificar para onde eu caminhava — mas talvez não importasse, talvez eu só quisesse me afastar da realidade do que eu havia acabado de fazer. Meus olhos cruzaram com os rosto que me olhavam, mas por algum motivo eu não conseguia ler suas expressões... Pareciam embaçados. Na verdade, era como se meu próprio corpo começasse a embaçar.
Então o chão se desfez sob mim e tudo ficou escuro antes que eu caísse.
✘✘
Nota da autora:
Faltou um aviso de gatilho? Um "esse capítulo pode acabar com você"? 🤔
Porque meu Deus, acabou comigo. Escrevi quase 80% em uma só noite assim que terminei o anterior (e depois achei que tinha perdido, mas só tinha esquecido de dar um título pro documento...) e nossa. Apesar de toda a dor, como autora, talvez um dos meus capítulos preferidos.
Espero que vocês também amem essa história apesar de toda a dor que ela causa kkk
Mas assim declaro, oficialmente, finalizada a saga contra o Klaus (pelo menos a parte onde a Rebeca estará consciente). Agora, o que resta? Quando ela vai acordar? Teorias? 👀
Se serve de consolo, nem tudo é ruim... Eu acho... Semana passada informei que apresentaria o meu TCC e venho, com muita alegria, informar que eu passei com 9,0 🥰 Foi um trabalho muito especial para mim, de um livro que com certeza influencia DEMAIS a minha carreira de escritora (As Brumas de Avalon, se interessar) e sei lá, são uns 50kg tirados dos meus ombros.
Não vou mentir que esse ano está sendo MUITO complicado para mim, escrevendo dois livros, trabalhando em dois empregos nesse último mês (é sério kk) e até então fazendo o TCC, enquanto tento adiantar futuros projetos. Como sempre, levo tudo à beira do surto, e por isso todo o carinho que vocês me dão faz toda a diferença. Obrigada, novamente, por acompanharem essa história e serem os leitores tão incríveis que são 💕
Agora, será que finalmente acabou o caos?
Segunda-feira que vem eu conto.
Não sejam mordidos (as perdas já foram muitas...).
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