Capítulo 36.
Eu não sabia dizer se mais alguém estava atrás de mim, as batidas do meu próprio coração ensurdecendo meus sentidos. Corri na direção do grito atenta a tudo, buscando qualquer sinal de perigo, qualquer possibilidade de entrar acidentalmente na linha de visão de uma das duplas de Klaus — apenas pensar naquele nome, o som profano que sua pronúncia tinha, fazia-me ter dificuldade para respirar.
Virei uma esquina e reconheci aquela rua, a alguns quarteirões da casa onde Hector fez vigia em nossa primeira visita à escola. Sabia que a quadra onde eu estava terminava em um terreno baldio, por isso parei grudada ao muro da última casa, antes que a perda de cobertura comprometesse nossa posição. Só então ouvi passos atrás de mim e estendi a mão para impedir que a pessoa seguisse adiante, e para minha surpresa quem interceptei foi Victória. Parecia cansada por acompanhar meu ritmo, mas tentava desesperadamente ver o que acontecia, igualmente preocupada com o grito de Melissa.
Grudamos no muro da casa que nos deixava em um ponto cego para os homens e nos aproximamos agachadas de sua borda. Mesmo com o mato crescido do terreno baldio, podíamos ver sem dificuldade as figuras em pé do outro lado da rua, a vinte metros de distância. Talvez menos.
Engoli a saliva com dificuldade, como se ela fosse um pedaço de gelo entalado na garganta. Reconheci os cabelos loiros de Melissa e o corte repicado de Alana, ambos de costas para nós. Suas figuras pareciam frágeis diante da dupla de homens que eu reconheci de vista entre os que me assistiram ser queimada. Mas o que tinha o revólver empunhado não estava com elas na mira, e sim um garoto de pele escura, mantido de joelhos no chão pelo braço que o homem torcia em suas costas. Reconheci Leonardo pela bandana roxa que mantinha seus cabelos longe dos olhos.
Senti algo indescritível no peito, como se meu coração fosse segurado por garras sufocantes que o impedissem de bater. Não via Mei em lugar nenhum, e quando eu não estava perto, era sempre com Melissa que ela ficava. As lágrimas começaram a escorrer antes que eu pudesse impedir, cegando minha visão.
— Mei não... — murmurei, chamando a atenção de Victória. Ela ergueu as sobrancelhas e imediatamente envolveu minha mão com a sua, apertando-a.
Mesmo assim, não tirava os olhos dos homens a nossa frente, mas em seu rosto havia uma expressão que não me era familiar em seu rosto. Victória, sempre assustada quando longe dos muros do condomínio, agora tinha um semblante diferente: não confiante ou desprovido de medo, mas encarava a situação à frente como se estivesse buscando algo.
— Amiga, não dá pra saber. Não tem corpo em lugar nenhum — murmurou, sua voz normalmente baixa ainda mais diminuída, quase impossível de ouvir — Aquele garoto... É amigo?
Por um segundo fiquei confusa e só então lembrei que a maioria do meu grupo nunca conheceu as pessoas da escola. Assenti para Victória, que olhou para mim em busca de respostas, antes de voltar a fitar a cena à nossa frente.
Paulina já havia chegado, e meu corpo congelou quando ela sugou o ar ao ver Leonardo sob a mira de um revólver. Estávamos longe, mas não seria difícil nos ouvirem. Qualquer tentativa de aproximação só colocaria nossos amigos em risco, e Alana e Melissa estavam de costas para nós. O homem com o revólver não parava de gesticular, apontando vez para a cabeça de Leonardo, vez para Alana e Melissa.
— O que podemos fazer? — perguntei baixinho, vendo como Guilherme e Alex desaceleraram a corrida ao perceber que havíamos parado também. Seus rostos também transmitiam o mesmo desespero que eu sentia.
— Rebeca — Victória me chamou, e mais uma vez virei para encontrar seu semblante sério, analisando a situação. Ela falou, com tanta calma como se estivéssemos discutindo o que comer: — eu consigo dar um tiro limpo na cabeça do cara com o revólver. Você consegue acertar o outro, que está com o fuzil, dessa distância?
— Você enlouqueceu? — questionei, erguendo minimamente a voz — Ele está com a arma na cabeça do Leonardo, se você errar e ele puxar o gatilho...
— Não — ela me cortou — eu não erro esse tiro. Preciso saber se você consegue pegar o outro antes que ele pegue o fuzil, não tem que ser na cabeça, só precisa incapacitá-lo.
Olhei para frente, completamente atônita diante daquelas palavras. A disposição deles era ruim para nós, com Melissa e Alana mais próximas e os dois homens alguns passos atrás. Da nossa posição eu tinha mira limpa para o que tinha o fuzil pendurado pelo cordão de couro, mas seria impossível Victória conseguir aquele tiro sem acertar Melissa, que cobria parcialmente a visão do outro homem.
— Inferno, tem zumbi perto — Alex alertou baixinho, chamando minha atenção, Olhei para os lados, vendo que uma dupla de mortos vivos havia mudado a trajetória no meio da rua e vinha em nossa direção.
— Pera, deixa que eu faço eles me seguirem, fiquem quietos — Guilherme falou, abandonando sua posição e correndo na direção contrária a que viemos, de maneira que chamasse a atenção dos zumbis sem ser visto pela dupla de homens armados.
— Rebeca — Victória me chamou, puxando a pistola que estava guardada na parte de trás da sua calça — precisa ser rápido, me confirma isso — percebi como suas mãos seguravam com estabilidade a arma enquanto ela soltava a trava de segurança, sem tirar os olhos de Melissa e Alana. Não parecia a mesma Victória de alguns meses atrás. Eu nem sabia como aquela pistola havia ficado com ela.
— Não sei, Vic — respondi, procurando a arma que estava comigo, estendida por Alex quando ele se afastou para lidar com os zumbis.
Destravei-a, mas ao contrário de Victória, minhas mãos não estavam estáveis. Eu nunca fui uma boa atiradora, mesmo tendo treinado mais do que uma vez com Hector. Sabia manusear uma pistola, mas a única vez que usei contra alguém foi naquela mesma madrugada, somente porque não tinha qualquer escolha além de matar Enrico. E atirei a queima-roupa.
Olhei para trás, decidida a trocar de lugar com Alex, quem provavelmente conseguiria executar melhor aquela tarefa, mas ele, Guilherme e Paulina estavam ocupados lidando com o grupo crescente de mortos que se aproximava. Independente do plano de Victória, nosso tempo estava se esgotando.
— Rebeca — Victória pressionou, calmamente.
— Inferno — rosnei — tudo bem, acho que consigo — respondi, sentindo todo o meu corpo começando a suar.
O mato crescido do terreno baldio nos dava cobertura, mas não havia possibilidade de ficar em pé para me posicionar. Respirei fundo, deitando-me no chão e me arrastei com cuidado até conseguir uma brecha entre o matagal para conseguir mirar. Busquei encontrar equilíbrio abaixando a cabeça e apoiando os cotovelos na calçada fria. Alinhei a mira da arma ao peito do homem com o fuzil, que parecia mais nervoso com a situação do que o seu companheiro que ladrava ordens e perguntas. Alana estava perigosamente perto da minha linha de tiro, e mesmo tendo apoio para os cotovelos, via nervosamente como a ponta da minha mira ora ia alguns milímetros para um lado, ora para o outro.
— Fica preparada — Victória me instruiu, erguendo a voz somente o necessário para me alcançar — assim que ele tirar o revólver da cabeça do cara, eu atiro. Você precisa responder rápido, ao som do meu disparo — Victória, agachada, ergueu os braços tentativamente para conferir a mira, estalando a língua — eu só preciso...
Prendi a respiração ao ouvir a movimentação do matagal que indicava que Victória estava se embrenhando dentro dele. Minha amiga esgueirava-se com uma calma surpreendente por entre o mato alto, sempre com a pistola erguida, procurando o ângulo ideal. Parecia quase insano que aquele tiro preciso dependesse de Victória, mas Guilherme tinha razão: fiquei muito tempo fora do condomínio, e muitas coisas passaram despercebidas. Vic sempre apresentou uma calma inabalável, desde o dia em que nos vimos presos naquele colégio repleto de zumbis onde o pânico era a única lei. Esse foi um dos motivos para se dar bem auxiliando Alana e aprendendo a tratar de ferimentos. Apesar de horrorizada com a situação, teve calma para lidar com meus ferimentos e se manteve firme até para suturar meu corte, coisa que nunca fizera sozinha até então.
— Victória! — ouvi a voz de Alex próxima. Não estava alta, mas por não falar em um sussurro, já me trouxe um frio na espinha. Virei o rosto por impulso, meu coração batendo tão alto que eu mesma conseguia ouvir.
Victória havia entrado completamente no terreno baldio, parcialmente ocultada da minha visão pelo mato crescido. Uma placa de "aluga-se" enferrujada oferecia cobertura para que ela conseguisse se posicionar de joelhos para estabilizar a mira, ainda sem tirar os olhos do nosso alvo. O problema é que daquele mesmo mato, um zumbi havia se erguido e cambaleava trôpego na direção da minha amiga, que ou não o havia visto, ou o ignorava.
Antes que aquele impulso idiota que me dominava falasse mais alto e eu me movesse para protegê-la, o trovão do tiro gelou meu sangue, obrigando-me a voltar o foco para a mira da arma, felizmente mantida estável já que eu não havia movido mais do que o rosto. Meu coração retumbava com tanta força e os poucos segundos que demorei para encher os pulmões de ar pareceram o suficiente para comprometer tudo. Exalei, relaxei os ombros.
E apertei o gatilho.
Era impossível não me sentir atordoada por, mais uma vez, escutar aquele estouro tão próximo. Logo que atirei, minhas mãos voltaram a tremer quase descontroladamente — por isso eu preferia lidar com as ameaças usando um taco pesado ou uma faca afiada. Estava nervosa, quase esperando que o tiro acertasse Alana, mas o cambalear do homem denunciou que eu havia acertado. Para o meu espanto, outro estouro antecedeu um buraco de bala em sua testa, este não graças a mim. Olhei para o outro homem a tempo de ver seu corpo imóvel por alguns segundos, a pistola apontando vagamente para frente, mas em sua expressão só havia a surpresa de ter tido seu olho explodido por um tiro certeiro. De maneira quase cômica, no instante seguinte os dois caíram no chão como sacos vazios.
Mas não me atrevi a sentir alívio, pois já estava me movendo na direção de Victória. D essa vez meus movimentos não vacilaram mesmo quando vi ele avançar e agarrar os cabelos alisados da minha amiga, mas não houve espaço para o pânico. Em movimento rápido, Victória disparou seu terceiro tiro à queima roupa, que atravessou a cabeça do zumbi e fez sangue manchar a vegetação verde. Quando a criatura cedeu e caiu no chão, apesar de quase derrubar Vic com o puxão que deu em seus cabelos, minha amiga conseguiu se desvencilhar do aperto e cambalear para longe.
— Meu Deus — finalmente soltei, meu tom um pouco mais alto do que um sussurro. Não estava falando para ninguém em especial, apenas deixando o nervosismo extravasar de alguma forma.
Victória olhou para mim, um sorriso hesitante nos lábios:
— Desculpa por atirar mesmo depois que você acertou. Fiquei com medo que ele reagisse.
Demorei alguns segundos para entender por que diabos ela pedia desculpas, quase envergonhada, até entender que se referia ao seu segundo tiro perfeito, na testa do homem que eu só consegui acertar o peito. Deixei um riso que demonstrava toda a minha perplexidade escapar, achando aquele pedido tão hilário que por um segundo me fez esquecer o mundo que nos rodeava.
— Victória, isso foi incrível! Você está bem? — perguntei, referindo-me ao zumbi que agarrou seus cabelos.
— Estou, foi só um susto — ela puxou os fios longos para trás, prendendo-os com um nó frouxo. Já faziam alguns meses desde o começo do apocalipse e sua raiz cacheada começava a se tornar perceptível.
Então fui arrancada daquele devaneio bobo por um som diferente. Devido às circunstâncias que estávamos, não poderia ser um grito, mas o chamado era alto o suficiente para chegar até mim:
— Rebeca?! — a voz de Melissa era desesperada.
— Elas estão bem? — Guilherme arfou, amparando a aproximação de um zumbi erguendo um pouco o braço ruim, para então se movimentar rapidamente e usar o próprio impulso para derrubá-lo.
Meu sangue voltou a esquentar com a pergunta e travei a pistola antes de guardá-la de qualquer forma na calça e me levantar. Melissa olhava desconfiada na nossa direção, provavelmente tentando entender quem dera aqueles tiros salvadores, e não me importei que seu primeiro chute fosse tão longe da realidade (eu também nunca adivinharia). Senti o coração errar as batidas vendo seus cabelos loiros, e mesmo que a ansiedade de não encontrar Mei em lugar nenhum estivesse presente como um prego na minha garganta, corri em sua direção porque só queria poder abraçá-la para atestar que estava viva, já que havíamos acabado com as ameaças — por enquanto.
✘✘
Nota da autora:
Boa noite amigos 💖
Já aviso que a fila para mamar a Victória começa atrás da linha amarela, favor não tumultuar.
Quando eu falo que vou surpreender vocês, nem sempre vai ser pro mal, viu?
Para quem estava se perguntando onde a Mei estava: a Rebeca deixou ela na escola com a Melissa antes de sair com o Hector. Agora, porque ela não está aí? 👀
Sei lá, só consigo dizer que estou adorando essa confusão toda, pode parecer *surpreendente* mas adoro um pouco de caos e espero que vocês também, porque está longe de acabar.
Aliás, aproveito para uma pequena divulgação para quem ainda não sabe: a MariaLuizaVillela fez um fc para o livro no instagram 🥺 não é porque eu sou a autora, mas puta que pariu os memes são INCRÍVEIS, juro pela Mei. Sigam @em.decomposicao porque vale MUITO a pena (e prestigiamos um trabalho absurdo).
Acho que por hoje é isso, felizmente terminamos sem lágrimas essa semana 💞 um beijo para todos.
Não sejam mordidos e votem para a Karol sair do BBB.
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