Capítulo 34.
Tomei um último gole de energético e dei o trago final no cigarro antes de jogar a bituca dentro da lata e amassá-la, sem tirar os olhos da paisagem acinzentada do início da manhã. A dor e o cansaço ainda estavam presentes, mas depois de comer alguma coisa e secar uma lata de redbull, pelo menos não me sentia mais prestes a desmaiar.
— Você tá fumando pra caralho — a voz tranquila de Guilherme chamou minha atenção, do banco do motorista ao meu lado. Ergui uma sobrancelha. O silêncio não era exatamente tranquilizador, mas parecia ainda mais estranho ouvir aquilo diante do que estávamos prestes a fazer — Não to mandando você parar, mas tenta dar uma maneirada. Imagina que história merda pra contar: sobrevivi ao apocalipse zumbi para morrer de câncer.
Tranquei o riso. Só mesmo Guilherme para fazer piada àquela hora.
— Não enche, só hoje eu tomei um tiro e enfiaram minha cara em uma lareira, eu mereço fumar — respondi, mas minha irritação era fingida. Adicionei, baixinho: — Mas vou dar uma segurada.
Guilherme sorriu um pouco, sem tirar os olhos da estrada. Ainda estávamos longe da escola e aquele pedaço de pista tinha um número significativo de carros abandonados e engarrafamentos que nos obrigavam a manobrar em baixa velocidade.
Eu e Guilherme guiávamos o caminho no HB20, enquanto Carol e Victória estavam atrás, respectivamente com um Onix e um Ford Ka. Alex era o último do comboio com o Fiorino. Pegamos todos os carros que haviam no condomínio (alguns reunidos em nossas buscas por comida) pois mesmo sabendo que Tom fora com a Picape e que haviam carros lá, não tínhamos noção do que nos aguardava na escola e o plano era trazer todos de volta conosco.
— Você não quer tentar descansar um pouco? — Guilherme perguntou.
— Mesmo se eu quisesse, não ia conseguir com o carro sacudindo. Você dirige mal pra caralho — brinquei, mas como se para pontuar, Guilherme deixou o carro morrer. Não contive o riso.
— Vai se foder! — Guilherme abandonou o volante para apertar minha cintura, enquanto eu tentava me afastar.
— Eu nem sabia que você dirigia — protestei, entre risadas.
Guilherme girou a chave na ignição quando terminou de me fazer cócegas e o ronco suave do carro recomeçou. Alguns mortos-vivos à deriva vinham em nossa direção, mas logo voltamos a andar. Gui colocou o polegar para fora, fazendo sinal para Carol indicando que estava tudo bem.
— Hector me ajudou na época em que você e Melissa viviam fora, Vic e Alana também aprenderam — Guilherme manobrou o carro com extremo cuidado para desviar de um acidente e voltar à estrada.
Assenti, mas a pontada que o nome do Hector trouxe ao meu coração foi forte. Achava que não tinha mais lágrimas para chorar, mas as lembranças as trouxeram de volta. Não consegui me conter e logo estava tentando engolir um choro sufocante.
— Rebeca... — Guilherme começou, mas parou. Não havia nada o que dizer.
— Não acredito que estou aqui rindo menos de algumas horas depois de perder meu melhor amigo — coloquei as mãos no rosto, envergonhada e com o coração destruído.
Guilherme pousou a mão direita na minha coxa. As lágrimas não pararam de cair por longos minutos, onde perdi o ar pela intensidade que chorava. Apesar da dor e dos batimentos cardíacos acelerados, minha ansiedade parecia controlada.
— Não se sinta culpada por isso, o luto é estranho mesmo — Guilherme comentou quando meu choro começou a morrer — Uma hora você não consegue parar de chorar, na outra você até faz piada. Logo, quando lembrar dele, vai começar a sentir mais saudades do que tristeza. Pelo menos assim é saudável. Quando aconteceu com a sua avó, você se isolou. Não foi sua culpa, claro, mas aí fica muito pior. O ideal é estar junto com pessoas que gostam de você, assim vocês conseguem suportar juntos.
Funguei algumas vezes, secando as lágrimas com as costas das mãos e agradeci as palavras. Alcancei uma das garrafas de água que deixamos no porta-luvas e bebi vários até me acalmar completamente.
Depois de algum tempo em silêncio, Guilherme falou:
— A Vic me contou o motivo de vocês terem saído — olhei para ele, transtornada demais para entender — pelos remédios.
— Ah. Gui, eu... Estava sendo irresponsável de novo.
— Não sei, mas eu agradeço por você se preocupar comigo — ele me cortou — Você estava certa. Hector também. A forma como eu estava lidando com as coisas não iria me ajudar em nada. Ter medo é normal, mas eu não posso virar refém dele ou pensar que sou só um peso morto para sempre. Victória me mostrou isso. Ela não é como você, que assume a linha de frente e enfia faca em zumbi por espontânea vontade, mas foi quem teve a iniciativa de aprender primeiros socorros com Alana, começar a dirigir... Nessa semana que estávamos no escuro, pediu que Alex auxiliasse para praticarmos tiros. Carol também é assim. Ela quem gere o condomínio, mantimentos, organiza escalas de limpeza, de busca, preocupa-se com o emocional de todos e tal. Você quem disse que esse mundo é muito mais do que matar zumbis. Eu não posso só tentar fugir dele. De certa forma, isso é desistir.
— Eu também fugi — murmurei — Te ofendi tanto por não ter tido a reação que eu queria naquela noite, mas depois... Eu te abandonei. A todo mundo, na verdade. Sucumbi ao medo também: dos meus traumas, da convivência prejudicada, de precisar lidar com outra noite como aquela. Acho que isso que me fez voltar à escola, de certa forma parecia uma chance de recomeçar, com novas pessoas e novas perspectivas... — mordi o lábio inferior, lembrando-me que eu sequer sabia onde Gustavo e Leonardo estavam — Como se eu pudesse apagar as coisas ruins que aconteceram. Como se isso fosse justo. Eu errei tentando fugir da responsabilidade e errei sendo imatura com você. Queria te entupir de tarja preta ao invés de, sei lá, tentar conversar?
— Sabe, mas você não está tão errada. Você tem esse ímpeto de buscar algo a mais, essa coragem. Isso te move. Para o bem ou para o mal, você se afastou da estagnação que eu cheguei no condomínio. Não existe nada de errado em ter um lugar seguro ou em dividir as tarefas da forma mais coerente, mas quando a gente se acomoda na segurança, nas pessoas que se arriscam um pouco mais do que nós... É estranho, né? Parece que nunca encontramos a forma certa de sobreviver.
— É, mas claramente a minha forma é a errada. Coloquei todos em risco.
— Você tentou ajudar aquele grupo. O grupo com um médico que tratou de Samuel sem hesitar. Você não quis colocar um pai assustado sob mais pressão do que já estava e achou que daria conta... Não me entenda mal, pela sua segurança eu quero que você seja capaz de reconsiderar algumas decisões, mas ao mesmo tempo não é justo se martirizar por isso. Você foi atrás de uma abelha sem ter noção que te levaria a um vespeiro. Alex e Hector chegaram até a escola buscando comida, era uma questão de tempo até precisarem ir mais longe... Podia ter sido qualquer um a encontrar com eles, Rebeca. Podia ter sido alguém que não resistiria à tortura e contaria mais.
— Eu não resisti a tortura e contei demais — murmurei, sentindo um calafrio ao lembrar de Klaus e da barra de ferro fumegante. O simples pensamento desregulou minhas batidas. Guilherme abriu a boca para falar mais, porém o cortei: — Você é muito compreensivo com meus erros.
— Como poderia não ser, se eu também errei? — ele tirou os olhos da estrada por alguns segundos e olhou para mim enquanto dava um sorriso pesaroso — Tendo duvidado de Melissa naquela noite, permitir ser manipulado. Apesar dela ter me perdoado depois, quando me desculpei, sei que a reação inicial de alguns de nós contribuiu para piorar como ela se sentia no condomínio. Por isso vocês duas se afastaram, hoje consigo ver.
"O foda é que todo mundo vai errar, Rebeca, mas a situação em que estamos é sem qualquer precedentes. Hoje em dia nossos erros significam mais, nossas desavenças... Nos juntamos como grupo porque assim é o melhor para sobreviver, mas isso não torna as coisas mais simples. As decisões difíceis continuarão precisando ser feitas, e as situações ruins nunca acabarão. Então ou os seus erros te matam, ou você vive para remediá-los."
O silêncio caiu sobre nós, sendo preenchido somente pelo roncos suave do carro, alguns grunhidos eventuais de zumbis no caminho. A mão de Guilherme esteve pousada na minha coxa a maior parte do tempo, quando ele não a usava para trocar a marcha, e agradeci a proximidade.
— Quando mesmo você ficou tão inteligente? — brinquei, depois de algum tempo — Achei que era eu que dava os discursos motivacionais.
— Como sempre, você julgando minha inteligência só por causa da minha beleza — ele brincou, fazendo referência ao que eu dissera no dia em que nos beijamos — a posição de oradora ainda é sua, não se preocupa, mas achei que você talvez precisasse ouvir um pouco de incentivo também. Você é dura o suficiente consigo mesma.
Contive o riso com a brincadeira. Peguei-me pensando que Guilherme e Leonardo podiam se dar bem, e por um momento percebi que meu coração se apertou com o sentimento bobo de nervosismo diante da possibilidade desse encontro.
Mas claro que os devaneios infantis foram soterrados pelo medo por Leonardo e Gustavo, de quem até agora eu não tinha notícias. Pelo menos não estavam com o grupo de Klaus, mesmo tendo ido naquela direção. Acreditava que chegaríamos na escola e encontraríamos com eles, caso contrário, restava aceitar que morreram para zumbis na estrada.
— Obrigada, Gui — murmurei, tentando afastar aqueles pensamentos que podiam gerar um gatilho pior. Aproximei-me um rouco e grudei meus lábios em sua bochecha, apreciando o contato. Faziam apenas alguns dias, mas pareciam décadas desde a última vez que tivera um contato agradável com outro ser humano.
✘✘
Assim que Guilherme freou o carro, pulei para fora, ansiosa diante da visão de tantos zumbis. Não era nada como Florianópolis, mas as ruas usualmente calmas daquela cidadezinha pequena estavam movimentadas. As criaturas mais próximas viraram em nossa direção, enquanto as mais distantes pareciam indispostas a desviar de seu objetivo, indo em direção à escola.
Estávamos há menos de um quilômetro, mas era impossível ter uma noção completa do que acontecia. Meu coração estava disparado e, como se para afogar aquela angústia, afastei-me para golpear dois zumbis que sequer estavam perto o suficiente. Meus braços doeram com o impacto da barra de ferro contra o crânio duro do primeiro zumbi e deixei um sibilar de dor escapar.
— Tem algo errado! — grunhi, assim que Alex e Victória se aproximaram, também portando armas de curto alcance para conter as criaturas — Aconteceu alguma coisa na escola.
— Os mortos estão se direcionando para lá! — Alex apontou — Quando eu e Hector viemos, as ruas estavam quase vazias.
— Meu Deus — senti minha respiração descompassada ao pensar em Mei. Sabia que Melissa daria a vida para protegê-la, mas a ansiedade era difícil de conter — Precisamos ir!
— Rebeca, pera — Alex colocou uma mão no meu ombro, imobilizando-me — Qual a chance de serem aquelas pessoas? Quero ter certeza de como devemos agir. Sabe dizer com quantos inimigos estaríamos lidando?
— C-Celso falou que tentaria atrasá-los. Não sei se eles viriam tão rápido... — Tentei respirar fundo para pensar com clareza. Victória se afastou para golpear um zumbi, enquanto Guilherme o finalizou usando um facão com a mão esquerda. — Não tenho certeza de quantos são... Matamos cinco, eu acho. Talvez restem dez... — Havia uma parte pesarosa de mim que temia que quem chegara até ali podia não ser o grupo de Klaus, mas aquele outro pessoal com quem eles dividiam a cidade.
Percebi uma expressão de medo no rosto de Alex, que ele se esforçou para conter, encarando-me com seriedade. Carol estava apavorada, mas não se pronunciou, mantendo as mãos sobre a boca.
— Devíamos rondar as ruas em volta, não ir direto para o colégio — comecei, esforçando-me para manter a voz estável — Os homens do grupo de Klaus andam em duplas, mas se vieram para atacar, não faria sentido que fizessem guarda longe do colégio. Se não for isso e algo chamou a atenção dos zumbis, precisamos agir. Eles podem estar correndo perigo...
Um barulho inconfundível pontuou minha fala e um calafrio atravessou minha espinha. Um tiro. Antes que pudesse processar, outros dois trovejaram, e senti dificuldade em levar ar aos pulmões. Os zumbis começaram a produzir mais sons, acelerando em direção à fonte da explosão: a escola.
O segundo choque, veio como um grito:
— Rebeca! — era uma voz familiar, mas que a princípio o pavor me impediu de reconhecer. Obriguei meu corpo a ignorar o torpor e virar para trás, em busca daquela pessoa.
— Paulina! — arfei, vendo a mulher baixa correr em minha direção. Não sabia de onde vinha, mas não estava distante. Só parou de correr quando chegou até mim, atirando seu peso em um abraço apertado — Paulina, o que está acontecendo?! Onde estão os outros-
— Eu não acredito que você está viva! — Ela me cortou, afastando-se e me olhando de cima abaixo, como se de alguma forma quisesse atestar que eu estava ali. O desespero estava evidente em sua expressão: — Esses homens chegaram do nada derrubando o portão! Começou um tiroteio, chegaram zumbis... Rebeca, preciso da sua ajuda, precisamos encontrar os outros!
✘✘
Nota da autora:
Eeeee, consegui entregar o capítulo mais cedo 🎉🎉 Prometo que a partir de agora vou tentar ao máximo evitar atualizações quase de madrugada!
Antes de tudo eu quero dar um avisinho para vocês de um erro na história que será corrigido. Se vocês olhassem para um mapa de Santa Catarina perceberiam que existe um pequeno erro na divisão dos locais onde se passa essa história: tecnicamente não faria sentido a Rebeca ir até o condomínio sem passar pela escola, porque Blumenau é logo em cima de Botuverá. Só queria avisar que enquanto eu escrevia a história, escolhi localizações provisórias sem o cuidado de ver como interferiria no decorrer da história, então vou ressaltar: as cidades citadas são provisórias. Como o enredo inteiro não estava pronto na hora que comecei a escrever, esse tipo de deslize passou, porém assim que finalizar a história vou adequar as localizações para algo mais geograficamente correto. O ponto é: além do caminho ser mais seguro, a trajetória da oficina até o condomínio é mais rápida do que para a escola. Dessa forma, peço desculpas pelo amadorismo 🙏
Confesso que fiquei um pouco soft escrevendo essa conversa do Gui e da Rebeca. Independente de um casal ou não, eles são ótimos amigos.
Dito isso, declaro aberto o ☠ show do caos ☠ Preparem seus corações, porque os próximos capítulos vão ser frenéticos.
Não sejam mordidos (mas algumas pessoas com certeza serão).
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