Capítulo 30.
Engoli o ar em uma lufada desesperada quando abri os olhos, todo o meu corpo incendiado de adrenalina, pronta para me atirar no segundo seguinte sobre o homem que apontava a pistola para Hector e salvar meu amigo.
Mas a fisgada lancinante de dor deixou minha visão turva, obrigando-me a fechar os olhos. Minha cabeça pulsava com uma enxaqueca violenta e quando, por impulso, levei a mão até a testa, a dor que pareceu rasgar meu rosto quase me fez berrar. Abri os olhos para ver que não estava mais na entrada da oficina, não havia Hector ou pistolas ameaçando sua vida.
Eu estava só no banheiro em que me prenderam.
A realização veio como uma pancada, violando minha mente com a cena cruel de seu assassinato, acompanhada do tiro que estourou meus ouvidos. Agora a dor da enxaqueca se tornava insignificante enquanto garras geladas se fechavam em meu coração em uma agonia indescritível, como se meus sentidos fossem aplacado por que impedia o ar de chegar aos meus pulmões, um vazio que ardia, que me fazia querer gritar até que minha garganta se rasgasse. Fechei as mãos em punho, cravando as unhas nas palmas e tirando sangue, como se de alguma forma aquela dor física pudesse afastar aquela outra coisa, aquele sofrimento que eu sequer sabia nomear.
Queria gritar por Hector, queria ter impedido que ele sentisse toda aquela dor, queria poder ter dito de novo o quanto eu o amava. O quanto estava arrependida por tê-lo trazido até ali. Porque a verdade era que Hector estava morto e seu sangue manchava minhas mãos, e pensar naquilo deixava tudo muito pior. De todo aquele sofrimento, brotaram lágrimas quentes que escorreram por minhas bochechas. Quando tentei abraçar os joelhos para me consolar, outra pontada de dor ardeu em meu braço e sibilei. Lembrei das queimaduras, finalmente compreendendo o motivo da dor contínua que ainda castigava meu corpo.
Ergui a manga da jaqueta, tremendo ao ver as duas marcas avermelhadas tão vívidas que pareciam incandescentes. Toda a lateral do meu rosto também ardia, mas eu sequer tinha noção da extensão da queimadura. Em um lapso quase infantil, peguei-me pensando se agora eu estaria feia. Preocupar-me com aquilo na situação onde eu estava, provavelmente contando as últimas horas de vida, foi tão insensato que eu quase achei graça. Infelizmente, só consegui chorar.
Esforcei-me para lembrar os acontecimentos que se desencadearam após a morte de Hector e como exatamente eu chegara naquele banheiro. A dor anuviava meus sentidos da mesma forma que o fez na hora em que o mataram e quanto mais eu me esforçava, mais intensa a enxaqueca ficava. Lembrei-me do choque que se instaurou na sala antes do meu grito romper o silêncio da noite. Vi lágrimas nos olhos de Mariana e o mais completo horror dominando a expressão de Celso, mas no segundo seguinte ele já havia desaparecido e imaginei que o homem não poderia se dar ao luxo de deixar alguém perceber como aquilo lhe afetava.
Klaus falou algo para mim, gesticulando com a pistola empunhada em seu braço negro, mas eu não ouvi suas palavras ou sequer percebi sua expressão, meus olhos eternamente pregados no corpo sem vida que jazia no chão. Dentre tantos que eu já tivera o desprazer de ver, com certeza o que abriu a pior das feridas.
Lembro como um borrão quando Celso aproximou-se de Klaus, murmurando algo e olhando de relance para mim. Não sabia o que era, mas vi uma sombra de preocupação passando pelo rosto do ruivo quando ele respondeu, mas a dor me distraía. Agora me perguntava o que Celso havia feito. Sabia que a partir do momento em que envolvesse a escola, ele seria obrigado a agir, motivado pelo medo de perder sua filha. Era um golpe sujo, mas talvez a única forma de eu ter certeza que ele agiria e, quem sabe, oferecer uma última ajuda aos meus companheiros que estavam lá.
Com um arrepio, lembrei que Klaus deu uma ordem e quando acordei já estava no banheiro. Pela dor latente em minha cabeça, supunha que havia levado um golpe. Essa era a única informação que eu tinha, ainda comprometida pela falta de clareza com a qual meu cérebro funcionava no momento. Não fazia ideia de quanto tempo se passara, se minutos, horas ou dias, tampouco sabia o que eles reservavam a mim. Estar viva não era animador, pois o único motivo para o meu destino não ter sido o mesmo de Hector era que ainda havia mais para tirar de mim. Mais informações, mais sessões de tortura cuja dor eu não sabia se seria capaz de enfrentar, mais daquele interminável pesadelo.
Permaneci quieta, revivendo incansavelmente o tormento. Às vezes a dor se tornava tanta que meus olhos pesavam e quando eu conseguia abri-los, a vertigem vinha quase incapacitante. Não sabia dizer com precisão há quanto tempo não comia e precisava me contentar com a água da pia, que tinha um gosto de merda que em outra ocasião poderia ter me perturbado, mas o torpor sufocava qualquer outro pensamento.
Chorei até o ponto de intensificar minha dor de cabeça, depois até ter certeza de que havia secado completamente. Para enfim voltar a chorar intensamente. Sentia-me no limbo, ou talvez fosse o próprio inferno.
Lembrei da primeira vez que vi Hector no corredor daquela escola a tantos quilômetros de distância. Da sua expressão séria, do cenho franzido a cada nova conclusão que tinha sobre as criaturas que nos predavam. Dos dias em minha casa, que me permitiram tornar-se sua amiga e admirar de perto sua inteligência, força e resiliência. Hector exalava aquela aura que se tornara perigosa no mundo em que vivíamos: segurança. Estar com ele, contar com seu pensamento rápido e boas ideias me fazia pensar que éramos intocáveis. Por um tempo isso foi no que eu acreditei, até que enfim fomos tocados e tivemos nossas vidas profanadas por perigos que nenhum de nós imaginaria.
Tranquei a respiração quando ouvi uma movimentação do lado de fora da porta, seguida de tentativas imprecisas de virar a chave. Meu coração retumbou, e quando achei que só restava apatia dentro de mim, uma avalanche de medo congelou meus movimentos. A agonia da perda havia entorpecido meus sentidos, mas a partir do segundo em que voltar a ser torturada ou abusada de alguma maneira parecia inexorável, o horror ardeu como um combustível. Por um curto período, até mesmo a dor excruciante das queimaduras parecia um problema pequeno.
Tentei me levantar, mas a dor e a fraqueza foram mais forte e me fizeram cair de joelhos no exato momento em que a porta foi escancarada e Celso estava lá.
Abri a boca e minha garganta arranhou de tal forma que só consegui soltar uma enxurrada de tossidas que rapidamente saíram de controle. O homem sequer abriu a boca, mas foi rápido ao me oferecer apoio para que eu conseguisse ir até a pia e tomar um pouco de água.
— Rebeca, como você está se sentindo? — ele perguntou, e por todo o tempo em que tomei água, ofereceu-me apoio segurando meu braço. Seus olhos passaram por todo o meu corpo em um pesar preocupado. Percebi que um hematoma grande se formava na lateral do seu rosto sob um corte na bochecha.
— Dói muito — falei, quando finalmente consegui controlar a tosse. Os caminhos de lágrima marcados no meu rosto estavam novamente úmidos depois do meu ataque.
— Olha, é tudo que eu consegui arrumar — ele enfiou uma das mãos no bolso e quando a abriu na minha frente vi dois comprimidos brancos — são fortes, para a dor. Eu também sinto muito pelo seu amigo.
Naquela altura sequer me questionei como ou porquê Celso estava ali, mas aceitei de bom grado os comprimidos, engolindo-os de uma vez só enquanto o homem falava:
— Suas queimaduras... Mariana acha que foram de segundo grau. Quando Klaus mandou te trazer de volta, ela deixou um pouco de água correr sobre, mas ficou com medo de colocar algo em cima e piorar. Infelizmente não temos como tratar direito aqui... Rebeca, escute, preciso que preste atenção.
Só quando ele ergueu um pouco a voz percebi que meus olhos novamente ameaçavam se fechar, minha cabeça parecendo cada vez mais leve. Esforcei-me para focar minha atenção nele e afastar a dor. A urgência em sua voz me ligou para a situação em que estávamos com um estalo, e meu coração tranquilizado pela presença de Celso voltou a retumbar.
— Vamos, precisamos ir — puxou-me com força pelo braço. Em um sussurro, tentou me tranquilizar: — não fale nada, não olhe para ninguém, só escute, pelo seu bem e pelo seus amigos na escola — continuou, falando baixo o suficiente para que só eu conseguisse ouvir — Quando Klaus matou seu amigo, foi em um acesso de raiva. Normalmente ele é muito calculista, mas às vezes se descontrola e age sem pensar, e ver você resistindo às torturas com certeza foi o ápice. Aproveitei essa chance para dizer que já havia passado pela escola que você descreveu, mas o grupo de lá era muito precário e eu duvidava que tivessem vindo de lá. Klaus não é burro, viu que você e seu amigo estavam saudáveis e bem equipados da primeira vez, por isso desconfiou desde o príncipio que estivessem com o grupo do hospital.
Caminhávamos lado a lado pelo corredor iluminado pela lanterna Celso, que tremia de nervosismo. Ainda assim, conseguia manter sua voz baixa e seu aperto no meu braço havia se afrouxado, mas permanecia com a mão lá. Continuou:
— Fiz ele se questionar se não havia se precipitado e acabado com a única chance de te arrancar a verdade, já que as torturas não eram efetivas. Sugeri para que apelar para a estratégia preferida de Klaus: fingir libertar um prisioneiro abalado e enviar um destacamento para seguí-lo, para que nos guie cegamente até onde precisamos ir. Klaus usou algumas vezes para encontrar outros grupos, saqueá-los... Ele não parecia empolgado, desconfia muito de você, mas consegui convencê-lo.
Tropecei nos meus próprios pés no momento em que um outro homem passou por nós. Estava completamente atordoada e não me dei conta de sua presença até que estivesse do nosso lado, mas seguiu caminhando sem olhar duas vezes. A dor latejava em meu braço e cabeça, meu coração ainda parecia esmagado pela perda de Hector, mas me esforcei ao máximo para manter o passo.
— O que — tentei falar, mas fui cortada.
— Cale a boca, se nos ouvirem está acabado — sua voz era tão baixa que eu tinha dificuldade para ouvir, e embora o aperto no meu braço fosse apenas fingimento, seus passos eram largos e rápidos. Me guiou até a entrada da concessionária, ao invés da oficina. Estava movimentada, mas ninguém parecia ter coragem de fixar seus olhos em nós. Não vi Klaus ou as mulheres em lugar algum.
Caminhamos quietos até a porta de vidro que eu usara para contornar o prédio há poucas horas atrás, enquanto eu e Hector ainda tínhamos esperança de sair dali com vida. A lembrança trouxe mais lágrimas e todo meu corpo se torceu em agonia. Senti a iminência de um ataque de ansiedade e tentei controlar minha respiração.
Precisava pensar em Mei. Precisava me manter viva e voltar para salvá-la. Processei com dificuldade as informações que Celso me dava, esperando silenciosamente por mais.
Abandonamos a proteção da concessionária e o frio da noite cortou meu rosto. Não pude conter o grito de agonia. Precisava que aquele remédio fizesse efeito se fosse obrigada a andar mais, porque a cada segundo sentia que podia sucumbir desmaiar.
— Escuta, Rebeca — ele me segurou pelos ombros, virando-me de frente. Estávamos sozinhos na noite escura, mas sua voz ainda era cuidadosa: — Assim que você sair, duas ou mais pessoas vão atrás de você. Não sei se Enrico, Adão... Eu sei que isso muda tudo, mas não tenho mais informações para te dar. Ouça bem: não siga na direção do hospital — ele apontou para a minha esquerda em um gesto rápido — evite esse caminho, pode ser a confirmação que eles precisam e basta isso para te matarem. Ou fazerem pior. Florianópolis também é para lá, Botuverá é na direção contrária. Use isso para se orientar, você precisa manter os homens que te seguem curiosos com a sua trajetória. Pegue, esconda.
Celso colocou a mão no bolso da jaqueta e reconheci o brilho do meu canivete sob a lua minguante. O metal frio parecia estar em temperatura ambiente quando o segurei, tal era a fraqueza do meu corpo. Obedeci sua ordem e o guardei no bolso.
— Rebeca, eu... Não sei o que estou te pedindo — ele passou uma das mãos pelos cabelos curtos — Se você simplesmente despistar os homens, eles podem voltar e alertar Klaus, então ele vai deduzir que te ajudei. Adão quer ir até a escola e não sei por quanto tempo posso enrolá-lo... Preciso que pense em algo, que esteja atenta... Sei que você não é muito mais do que uma criança, mas agora talvez seja nossa única esperança. Você disse que tem um grupo, né? Peça ajuda para eles, se conseguir.
Ouvimos um som de dentro da concessionária que gelou meu sangue. Alguém se aproximava. Celso concluiu, apressado:
— Tente parar em algum lugar e encontrar comida, algo para cuidar dos seus ferimentos... Vou avisar que foi uma sugestão minha para que consigamos nos manter ao seu encalço. E Rebeca... Dependendo de quem for, podem simplesmente desrespeitar a ordem de Klaus. Pegar você, fazer o que quiserem. Esteja atenta, talvez você precise lutar pela sua vida.
No segundo seguinte a porta se escancarou e Enrico saiu de lá, levando um cigarro até a boca e fazendo fogo com o isqueiro. Seus olhos escuros caíram sobre mim e um sorriso malicioso se formou em seu rosto:
— Piranha de sorte né, Celso? — aproximou-se de nós — Aproveita da boa vontade do Klaus e corre pra sua longe daquela sua escola, se enfia embaixo de uma pedra e torce pra nunca mais cruzar o nosso caminho. Ou para ninguém mudar de ideia e ir atrás de você agora — ele deu uma risada seca — imagina o que poderíamos fazer.
Senti a mão de Celso no meu braço fazer uma leve pressão, como um aviso. Em seguida ele me empurrou para frente, acertando com a sola da sua bota na lateral do meu corpo e me atirando no chão.
Conseguiu imitar uma risada quase natural.
— Vaza daqui, imunda, antes que o Klaus mude de ideia.
A dor de apoiar o peso do meu corpo no braço queimado quase me cegou, mas esforcei-me para erguer-me sob as pernas trêmulas e conseguir algum tipo de estabilidade. Olhei para trás uma última vez, vendo que sob a atuação de Celso, seus olhos quase invisíveis na noite escura tinham um brilho de preocupação.
Não sabia dizer se o remédio havia começado a fazer efeito ou era somente o choque de adrenalina que me tomou quando olhei para a rua escura no auge da madrugada, vazia, não fossem alguns errantes cambaleando. A cidade parecia fantasmagórica no horizonte escuro. Mesmo quando eu e Melissa saímos em viagens por comida, em um tempo que parecia tão bom e distante, jamais nos atrevíamos a andar durante a noite. A escuridão de uma cidade grande sem iluminação é aterradora, e o perigo de simplesmente esbarrar em um zumbi, mortal.
Fiquei parada por alguns segundos, sentindo o resto do torpor dar lugar a algo que aquecia meu sangue. Mesmo assim, a dor em meu coração era implacável e quase pensei que poderia simplesmente desistir ali. Mas já havia sofrido uma perda e talvez aquela era a minha única chance de evitar outras.
— Cuidado para não ser mordida! — a voz de Enrico era debochada.
Reunindo o último resquício de força do meu corpo, comecei a correr para um destino pelo qual eu não sabia se teria forças para lutar.
✘✘
Nota da autora:
Boa madrugada, amigos.
Passei um pouquinho do horário e peço desculpas. Estou tentando concluir meu TCC e dedicando todo o tempo possível a ele, por isso estou ficando um pouco sobrecarregada e não dando conta total de tudo. Espero que o capítulo compense.
Já posso falar sobre a morte do Hector ou ainda tá doendo muito? Espero que não me odeiem (tanto), sei que é uma perda inestimável e que talvez seja um final injusto, mas infelizmente o apocalipse zumbi nunca teve a intenção de trazer justiça ao mundo.
Eu ainda quero falar mais sobre o que Em Desespero representa, sobre minhas escolhas nesse libro, mas claro que é o tipo de coisa que vai ficar para o final. Do fundo do meu coração, espero que essa história esteja de fato trazendo desespero a vocês.
Agora nos resta torcer para a Rebeca.
Um beijo para todos! Apesar de ser um filho da puta, sigam o conselho de Enrico e também não sejam mordidos!
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