Capítulo 27.
Troquei um olhar desesperado com Hector, o pavor da situação tomando meu corpo e tornando o raciocínio difícil. O garoto baleado convulsionava aos nossos pés enquanto o zumbido persistia em meu ouvido e fazia minha cabeça latejar. Ouvia a movimentação que vinha da sala de entrada, antecipando o momento em que eles chegariam até o corredor e descobrissem nossa fuga. Quando finalmente pensei que deveríamos correr, a voz de Bruna me pegou de surpresa:
— Enrico, por que você fez isso?! — ela gritou, como se estivesse alarmada.
— Bruna, tá tudo bem? — a voz masculina respondeu, ainda sem entrar em nossa linha de visão. Estávamos mal posicionados no meio do corredor, mas ainda era difícil decidir qual seria o melhor movimento.
Antes que a mulher respondesse, Hector agarrou minha mão e correu em direção à entrada, e por um momento imaginei que ele tinha enlouquecido, até se posicionar rente à parede de esquina entre o corredor e a entrada da oficina. Um sofá ficava posicionado colado à parede e poderia servir de cobertura se saíssemos do corredor, mas também criava distância entre nós e quem quer que estivesse vindo em nossa direção.
Em alguns segundos um homem adiantou-se na direção do corredor, com a arma em punhos, apontando para onde estávamos. Como Hector estava melhor posicionado, respondeu imediatamente com um tiro.
— Cacete! — Vi seus olhos arregalados, mas Hector errou. Sem demora entendi porque: o corredor em que estávamos ficava na reta da cozinha improvisada, onde três mulheres agora estavam encolhidas e gritavam após o barulho de tiro. Hector propositalmente não tentou acertar, pois podia correr o risco de pegar nelas. O homem correu para trás, onde não tínhamos mais visão — Eles fugiram! Estão armados!
— Eu errei — Hector lamentou em um suspiro que só eu pude ouvir.
— Não importa, o que fazemos agora? — questionei, sentindo as gotas de suor escorrendo pelo meu rosto.
Hector se abaixou e tentou colocar a cabeça para o lado de fora, mas o barulho imediato de um tiro o fez retornar. As garotas na cozinha gritaram e pude vê-las com clareza, pois não havia nada além da sala de entrada entre nós: uma mulher mais velha, de cabelos e pele clara, abraçada em uma jovem com quem era muito parecida, mas que não aparentava mais que 16 anos. Também vi Joana, a mulher morena que me desamarrou quando Enrico mandou me prender. Ela nos encarava, confusa, e só entendi sua expressão quando olhei para trás e vi como Bruna fazia gestos e movia os lábios enquanto apontava para nós. Depois de alguns segundos compreendi que ela tentava dizer "vão nos ajudar" com movimentos exagerados com a boca. A expressão de Joana não parecia nem remotamente mais tranquila.
— Bruna, — puxei sua mão, para que se aproximasse de mim e ouvisse meus sussurros — quando homens estão naquela sala, você sabe?
— Acho que... Quatro, com Natan... — ela olhou rapidamente para trás, onde garoto morto agora jazia imóvel no chão — Seu amigo falou que Enrico está preso e eu matei Marcelo, então restam Antônio, Matias e Kleber, que está ferido.
— Tem outra maneira de tirar as meninas de lá?
— Não, tem que ser por essa sala — Bruna me respondeu.
Hector murmurou um palavrão, ao mesmo tempo que a mesma voz masculina ecoou pela sala:
— Larguem a arma, vocês estão em menor número! — ele ladrou — Estamos todos armados e Klaus está voltando!
Hector olhou para mim, com gotas de suor escorrendo por sua testa, apesar do frio que o fim de tarde fazia.
— Estão blefando — sussurrei para acalmá-lo, antes de gritar de volta: — Estamos com uma das suas de refém, e o menino! Larguem as armas, não temos nada a perder — foi a minha vez de mentir.
A sala ficou em silêncio por alguns segundos. Meus olhos estavam fixos em Joana e na dupla de meninas, esperando que pudesse fazê-las entender que estávamos do mesmo lado.
Dessa vez não houve resposta, mas escutei um sussurro entre os homens: "Klaus está voltando, só precisamos mantê-los aqui. Já estão fodidos..." seguido de um "shh" como resposta". Um frio correu por minha espinha e não senti mais segurança em minha crença de que não passava de um blefe.
Mesmo com a respiração descompassada, esforcei-me ao máximo para pensar no que poderíamos fazer. Se Hector não tivesse sido e nos colocado em uma posição melhor, nossa única escolha teria sido nos esconder no banheiro para evitar ficar na linha de tiro, e não teríamos para onde correr.
— Bruna, existe alguma maneira de sair por esse lado? — perguntei, apontando na direção contrária à entrada, por onde Celso me levara outra noite para ver Hector.
— Dá para sair pela porta da concessionária, seguindo na direção de onde viemos, mas por que?
— Rebeca, não podemos... — meu amigo começou.
— Não vamos fugir. Hector, segura as coisas aqui, preciso de um minuto para dar a volta no prédio e vou pegá-los por trás.
Meu amigo se virou para me olhar e sua movimentação fez sua sombra balançar na parede. Ouvi a explosão de um tiro e uma repreensão por parte dos homens. Minha cabeça latejava.
— Você está maluca?! — Hector brigou, mas ainda em um sussurro.
— Vamos ficar aqui parados até Klaus e os outros voltarem? Confia em mim, Hector, consigo surpreendê-los.
— Que merda, Rebeca — Hector grunhiu, mas não foi uma negação. Ele sabia perfeitamente bem que não estávamos em uma boa posição, se quiséssemos salvar também aquelas mulheres.
Me afastei antes de começar a correr, temendo que pudessem ouvir meus passos. Passei pelo garoto — agora — morto e segui por todo o corredor até me deparar com o que seria a parte da concessionária. Olhei atentamente ao redor, mesmo no escuro tentando guardar cada detalhe que poderia ser útil na minha mente. Não demorei até encontrar o cadáver do homem que Hector relatara, o corte de faca deformando seu rosto. Segui em frente.
Haviam divisórias improvisadas em um dos lados da sala, entre camas e colchões que configuravam dormitórios improvisados. Contando mentalmente os segundos, passei meus olhos em busca de algo útil, mas encontrei somente um facão abandonado que agarrei sem hesitar. Não havia tempo para ser minuciosa, mas me contentaria com aquilo. Mantive uma faca empunhada enquanto embainhava a outra, seguindo em direção para a porta de vidro da concessionária.
Todas as janelas foram barricadas improvisadamente enquanto a porta de vidro estava coberta por papelões. Quando enfiei os dedos para abri-la, surpreendi-me ao ainda ver a luz alaranjada do sol de fim de tarde iluminando uma rua que mesmo em seus dias bons, não deveria ser muito movimentada. Haviam zumbis, mas o suficiente para que eu pudesse ignorar e correr em volta do terreno que abrigava a concessionária e oficina, indo em direção ao pátio pelo qual entramos. Um dos mortos estava particularmente perto, mas não ousei perder minha faca cravando-a nele, então o afastei com um chute e voltei a correr. Ignorava a sensação de queimação nas pernas, acelerando para não desperdiçar nem um segundo.
Quando os muros finalmente deram lugar a um portão gradeado, senti um déjà vu desagradável vendo a entrada da oficina, com as carcaças de veículos abandonadas a esmo. Praticamente nenhum dos carros estavam ali, provavelmente tendo sido levados pelo grupo de Klaus, mas percebi um caminhão grande com a caçamba espaçosa repleta de galões de gasolina. Era um pouco assustador ver como aqueles homens dispunham de uma frota tão completa.
Não perdi mais tempo e agarrei o portão de correr, que graças à falta de luz podia ser aberto manualmente. Tentei fazer o mais rápido e silenciosamente possível, contando mentalmente os segundos que se passavam. Todo o meu corpo tremia, coberto por uma camada fina de suor. Eu estava mal vestida para a estação, mas sequer sentia o vento frio arrepiar minha pele, ou a fome latejante de quem não comia há um dia inteiro.
Tudo podia dar errado em questão de segundos, mas não me permitir pensar naquilo. Meu plano sequer era dos mais inteligentes e sentia que um relógio de areia descia cada vez mais rápido, ameaçando nos soterrar.
Corri pelo pátio, agradecendo pelo sol que se punha ser coberto pelo imponente prédio da oficina. Se eu abrisse a porta principal, nenhum raio de luz alertaria sobre a minha presença.
Senti mais uma vez o calafrio da incerteza percorrer meu corpo, mas defronte à entrada dupla de metal, não me permiti ser atrasada por ele. Abri com cuidado a porta e meu corpo tremeu assim que uma pequena fresta se formou, dando-me visão do interior do prédio. Consegui ver dois homens de costas para mim, escondidos atrás da mesa de bilhar. Somente suas cabeças e braços estavam para fora, apontando pistolas na direção do corredor onde Hector estava. O terceiro homem, de aparência mais jovem, estava sentado no sofá, seu rosto também atento à esquina do corredor. Logo percebi que aquele era o que fora baleado, pela quantidade de bandagens que circulavam sua coxa. Era meu alvo.
Esgueirei-me pela, movendo-me o mais rápido possível para sair da linha de visão do homem baleado, que bastava um movimento para me encontrar com sua visão periférica. Ainda estava longe dele por sete, talvez seis passos. Abaixei-me com cuidado, pois a parte de trás do sofá onde ele estava podia me cobrir caso se virasse, e engatinhei o mais discretamente possível até lá. A sala estava afundada em um silêncio sepulcral, onde todos estavam nervosos demais para vacilar. Cada estalo que meu corpo fazia descompassava meu coração. Vi gotas de suor escorrendo do meu rosto para o piso gelado, mas sequer perdi tempo esfregando-as, permanecendo concentrada até meu objetivo.
Percebi que havia trancado a respiração, mas não tinha coragem de soltá-la. A menos de dois passos do homem baleado, notei que mesmo que o tivesse sob minha lâmina e com o sofá oferecendo cobertura para a maior parte do meu corpo, ainda era arriscado para Hector sair do corredor. Tinha plena convicção de que ele responderia quando eu o chamasse, mas precisava criar um espaço de tempo seguro.
Agarrei a faca embainhada, percebendo como a minha mão tremia, mas por sorte não precisava de precisão para arremessá-la com força na janelinha de vidro sobre a porta principal. Sem acompanhar sua trajetória ou o imediato barulho de estilhaço de vidro, preferi me adiantar e agarrar com toda a força a cabeça do homem à minha frente, mantendo-a estável enquanto levava a lâmina da outra faca até sua garganta.
— Hector, agora! — berrei, acompanhando com os olhos os dois homens armados percebendo minha presença e empunhando suas armas em minha direção. Por sorte a maior parte do meu corpo estava sob cobertura do sofá, enquanto tentava proteger ao máximo meu corpo e cabeça por trás do corpo do meu refém. Não havia como atirar em mim sem acertá-lo.
Quase de imediato Hector surgiu de trás do sofá, ao invés de vir do corredor. Quando os dois homens viraram na direção do meu amigo, mais um disparo fez meu ouvido zunir, mas a única pessoa que mirava devidamente era Hector e eu sabia que o tiro viera de sua arma.
A bala foi certeira na cabeça do mais velho, projetada violentamente para trás, salpicando o chão de sangue. O segundo não conteve um grito de surpresa e se escondeu completamente atrás da mesa.
— Só sobrou você! — berrei — Larga a arma, ergue as mãos e não vamos matar mais ninguém!
— Filha da puta... Antônio, larga a arma, eles nos pegaram! — o homem sob meu aperto murmurou e por impulso apertei mais a lâmina em seu pescoço, arrancando-lhe um gemido de protesto junto com um pouco de sangue. Ele atirou a pistola que segurava no chão, de maneira que não pudesse alcançá-la.
Antônio, que deveria ter por volta de 40 anos e cabelo com fios brancos aparecendo, estava em choque enquanto me encarava, incapaz sequer de empunhar a pistola novamente como ameaça. Provavelmente o pouco de sangue que escorreu pela garganta de seu colega foi o estalo que precisou para que ele jogasse a pistola longe e erguesse as mãos.
Os ombros de Hector relaxaram e percebi seus lábios murmurando um agradecimento, sem vacilar a mira da pistola.
— Bruna, eles estão desarmados, estamos seguros. Preciso que chame as outras mulheres para nos ajudarem a sair daqui, com urgência — Hector deu o comando, e assim que Bruna saiu da cobertura do corredor, continuou: — recolha as armas deles, vamos precisar, caso Klaus chegue.
— Joana, Yasmim! — a mulher loira chamou, enquanto se apressava em recolher as duas pistolas no chão — Arranjem uma corda, deve haver uma onde eles dormem.
— Bruna, isso é loucura! — Joana finalmente saiu da área da cozinha e seus olhos caíram em mim, ainda segurando a cabeça do homem ferido — Quando Klaus voltar...
— Não tivemos escolha! — Hector respondeu, alto, e se dirigiu para o homem Antônio: — Você! Vai devagar para o sofá, fica do lado do seu amigo. Anda!
Joana observou a situação por mais alguns segundos.
— Natan, Marcelo e Enrico, onde estão? — perguntou para Bruna, que destravar uma das pistolas e erguia a mira para onde eu e meu refém estávamos, acenando com a cabeça para que eu soltasse.
— Natan tomou o primeiro tiro, Marcelo eu mesma matei — falou, a satisfação inegável em sua voz — Enrico está apagado e preso no segundo andar, não precisamos lidar com ele. Por favor, Joana, precisamos ser rápidas.
Afastei-me do homem ao comando de Bruna, mas imediatamente senti o meu coração congelar quando raios de sol invadiram a sala escura. Hector, com o rosto tomado de pavor, virou imediatamente na direção de uma porta sendo aberta, na parede oposta à porta dupla de entrada.
Para o meu alívio a primeira pessoa a entrar na sala, de mãos erguidas, era uma mulher baixa com os cabelos escuros presos em um coque frouxo. Reconheci-a como Mariana, a irmã de Celso. Logo atrás dela haviam mais duas mulheres, com os rostos apavorados.
— Vocês enlouqueceram... — foi a primeira coisa que ela falou, sem se deixar intimidar por Hector, que a tinha sob a mira. — Celso mandou que ficassem quietos e obedecessem. Quando Klaus...
— Quando Klaus voltar, estaríamos fodidos do mesmo jeito! — Respondi, entendendo o que ela pretendia dizer — Celso esperava o quê? Que fossemos torturados...
Deixei as palavras se perderem no ar assim que as sobrancelhas de Mariana ergueram em completo pavor, olhando para os homens no sofá, ainda sob a mira de Bruna. Quase havia deixado escapar que Celso era um aliado na frente daqueles homens.
— Olha, não tem mais volta! — Hector emendou, provavelmente percebendo o deslize — Chame todas as mulheres que estão aqui, precisamos prendê-los rápido e partir imediatamente. Temos um lugar seguro para ir.
✘✘
Nota da autora:
Boa tarde, amigos, tudo bem?
Pelo menos podemos respirar aliviados por essa semana. Quem não estava colocando fé na Rebeca e no Hector mesmo? 👀
Amigos, fiz um esqueminha da planta da oficina onde essa cena se desenrolou para me orientar na hora de escrever e resolvi compartilhar, caso ajude a visualizar melhor o capítulo. Lembrando que é só um rascunho sem qualquer compromisso com medidas exatas:
Ao lado do corredor é uma escadaria, e do lado dela fica a porta por onde Mari entrou. Seguindo pelo corredor, é onde chega até a parte da concessionária. Sei que é um pouco confuso já que a o livro se passa na visão da Rebeca e ela não tem conhecimento total do lugar, então espero ter dado uma ajudada 🙏
Algumas pessoas me perguntaram recentemente e percebi que ainda não falei sobre: quantos capítulos Em Desespero terá? Antes de tudo, sou patética com especulações de capítulos e sempre erro por muito, mas acredito que Em Desespero manterá a média de Em Decomposição, que são por volta de 50 a 60 capítulos. Então sim, estamos na metade da história (para o bem ou para o mal, ainda tem caminho pela frente!).
Quero pedir uma licença e um favor para vocês, se não for muito... Se você está gostando da história e quiser me dar uma força, não esqueça de deixar o voto nos capítulos (e checar se fez nos anteriores!) 👉👈 Sei que é chato pedir, mas me ajuda bastante (e também dá uma força naqueles dias que a gente se sente insegura sobre tudo kkkk).
Muito obrigada, de novo, por todo o carinho e apoio que recebo 💞
Também peço para ficarem atentos ao livro Em Decomposição, pois pretendo postar um capítulo de agradecimento pelo Wattys com uma pequena surpresa (quem está no grupo do whats já sabe 👀).
Desejo para todos um incrível natal, com muita alegria e sem mordidas.
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