Capítulo 26.
Usando a parede como apoio, ergui-me com um pouco de dificuldade nas pernas trêmulas. O tempo se arrastava vagarosamente por horas que pareceram dias, mas um barulho repentino quebrou o silêncio e chamou minha atenção. Sabia que vinha do corredor e não da janelinha do banheiro, a qual presumia que dava para um pátio — mas infelizmente o vidro opaco me impedia de olhar o exterior com clareza.
Era difícil dizer quantas horas haviam se passado desde que Celso me trouxera de volta, mas sabia que o fim do segundo dia se aproximava, como era indicado pela luz alaranjada do pôr do sol. Consegui dormir um pouco no que restara da noite anterior, mas era longe de ser o suficiente. Os machucados latejavam e todo o lado esquerdo do meu rosto, onde Enrico me batera, estava levemente inchado. Demorei um tempo para entender que a dor que eu sentia ao respirar era graças ao golpe que recebi na barriga, e quando ergui a blusa para verificar, deparei-me com um feio hematoma arroxeado.
Ainda assim, a dor não era pior do que a sensação de fraqueza por estar há horas sem comer nada além da barrinha de cereal que Celso me trouxera. Felizmente havia água à disposição, e lembrar que Hector não podia contar com isso fazia meu corpo estremecer.
Era difícil ouvir alguma coisa, mas estive o dia inteiro atenta a qualquer som. Ouvi passos indo e vindo por baixo da porta, algumas vozes no pátio, mas nada além disso. Ninguém viera até mim, fosse para trazer alguma comida, fosse para me torturar e o dia se arrastou lentamente. Provavelmente Celso já havia ido embora, mas eu não sabia ao certo quantas pessoas restavam ali.
A ansiedade era a pior parte, como algo corrompendo cada pedaço do meu corpo. O combinado entre eu, Melissa e Paulina era de estar de volta assim que possível, tendo somente uma noite de tolerância. Aquela hora elas já deveriam desconfiar de que algo dera errado, mas pensar no que fariam com essa informação me angustiava. Torcia para que não cometessem o mesmo erro que eu e acabassem com os segredos, que pedissem ajuda, que levassem a todos o mais rápido o possível para o condomínio. Mas pensar que poderiam estar vindo a nosso resgate, pensar nelas dando de cara com a gangue de Klaus nas ruas... Era como se minha garganta estivesse sendo apertada por garras implacáveis.
O que seria de mim quando Klaus e seus homens voltassem? Recusava-me a pensar. A complacência é um sentimento perigoso, pois aceitar mesmo o pior dos destinos às vezes parece melhor do que a agonia da incerteza. Aceitar que eu não sairia dali viva, que sentiria dores indescritíveis era aterrorizante, mas pelo menos me dava o alívio de pensar que uma hora chegaria ao fim. Queria ainda acreditar em Deus para quem sabe barganhar, para implorar que todos conseguissem se manter vivos, que Guilherme e Melissa conseguissem proteger Mei até o fim e pedir para tomar somente a minha vida, deixando Hector a salvo. Mas não, eu não acreditava. Aquele mundo tirou coisas demais de mim para isso.
Eventualmente mesmo esses questionamentos se tornaram irrelevantes, pois algo acontecera do lado de fora. Um barulho que poderia passar quase despercebido por alguém que não estivesse atento no momento certo. Um baque surdo, tão assustadoramente parecido com o som que fazia quando meu bastão colidia com os zumbis que quase me fez desconfiar que eles estavam ali dentro. Aproximei-me da porta com as pernas bambas, na esperança de tentar identificar pelo vão alguma coisa. Sentia minhas mãos suando, imaginando se teria de lutar pela vida agora.
— Rebeca, sou eu.
O alívio que a voz de Hector me trouxera era indescritível simplesmente por significar que ele estava vivo. Ainda assim, precisei me manter cética, temendo que alguém o trouxera ali para tentar arrancar alguma informação com nós dois juntos.
— Hector? Hector, você está-
Minha frase morreu no ar em antecipação quando ouvi o barulho da chave girando na tranca. Busquei, por impulso, por minha faca, mas meus bolsos estavam vazios. Pensei rapidamente no golpe que Paulina nos ensinara, torcendo para que nunca chegasse uma hora para usá-lo.
Mas quando a porta se abriu, era somente Hector que me esperava do lado de fora. Hector, de pulsos livres e uma pistola em mãos, com uma mulher atrás de si.
— O que — balbuciei, o choque incapacitando meu cérebro de finalizar qualquer sentença. Aquela não era a arma habitual de Hector, que ficara no condomínio junto de Alex, mas eu não sabia de onde ele havia tirado ela.
Com um suspiro de surpresa, reparei no raspado grosseiro em sua lateral, indicando que a numeração fora propositalmente apagada Nem a arma de Hector ou de Tom possuíam aquela marca, então só poderia ser de algum dos homens de Klaus.
Antes que eu pudesse concluir qualquer pensamento, senti o peso de Hector me puxando para um abraço. Por cima do seu ombro, meus olhos se encontraram com a mulher que o acompanhava, baixa e de cabelos artificialmente loiros, cuja raíz já estava completamente crescida.
— Como você? — foi tudo que consegui perguntar. A mulher não parecia incomodada com o nosso reencontro, mas olhava receosa de um lado para o outro.
— Bruna, fica aqui fora. — Hector me soltou e olhou para ela, que imediatamente arregalou os olhos — Vou explicar o que vamos fazer para Rebeca, mas é muito perigoso aqui no corredor. Se alguém vier aja naturalmente, estaremos ouvindo.
— Mas eu... Tá, tudo bem. Por favor, vamos logo, é perigoso demais, precisarei de ajuda se algum deles vier — ela respondeu, envolvendo o corpo com os próprios braços e encarando o resto do corredor, que levava até a sala pela qual entramos no dia anterior.
Hector não respondeu, ao invés disso entrou no pequeno banheiro que eu passei as últimas horas e fechou a porta atrás de si. As olheiras sob seus olhos eram escuras e profundas e somente agora havia percebido que uma das lentes de seu óculos estava quebrada. Ainda havia rastros de sangue seco em seu rosto, mas em algum momento ele conseguira limpar a maior parte.
— Hector, o que está acontecendo?! — sussurrei, incapaz de manter o nervosismo sob controle. Minhas mãos tremiam e meus ouvidos estavam tão atentos que pareciam aptos a captar um grão de poeira voando — Você fugiu?!
— Consegui derrubar o de cabelos compridos. Ele foi até a sala onde me prenderam e fingi estar com os braços amarrados. Quando ele se aproximou, acertei-o e consegui roubar a arma — explicou meu amigo, que enquanto falava, escaneava todo aquele banheirinho com os olhos, como se buscasse algo que pudesse nos ajudar. Eventualmente sua postura vacilou e ele se aproximou da pia.
A verdade é que apesar de parecer heróico, Hector não tinha um semblante nem minimamente tranquilo. Pelo contrário, seu rosto estava completamente suado e suas mãos também tremiam, enquanto ele se abaixava para beber água da torneira.
— Meu Deus, Hector! — embaralhei-me nas palavras, sem conseguir encontrar o que queria dizer. Estava feliz de vê-lo ali e vivo, mas a realidade da situação ainda pesava logo a minha frente: o que ele fizera era grave, e poderíamos não sair dali vivos. — Vamos tentar fugir? Celso falou...
— Eu sei o que Celso falou, eu não pretendia, mas... — seus olhos amendoados chegaram aos meus e encontrei uma hesitação em seu rosto, como se não soubesse ao certo se continuaria falando. Eventualmente ele respirou fundo e desviou o olhar, completando a frase: — Eu não tive escolha.
— Como assim?!
— Aquele homem, Enrico, é o nome dele. O seu líder mandou não tocar em nós, mas ele parecia bem disposto a me matar com aquela faca... Acho que queria arrancar alguma coisa de mim, porque começou a falar... A falar... — Hector deixou as palavras se perderem no ar, como se fossem duras demais para expressar — As coisas que ele faria com você. Disse que se eu não falasse de onde viemos, te arrastaria até lá e...
Hector tinha dificuldades para falar, incapaz de manter o contato visual. Via como aquelas lembranças lhe perturbavam e ele apertava as mãos em punhos.
— E me estupraria na sua frente — completei o óbvio.
— Eu não consegui, Rebeca — ele balançou a cabeça em negação — Eu não iria suportar isso. Eu comecei a fingir um ataque. Chorar, implorar... Sinceramente nem sei se poderia chamar de fingimento. Uma hora ele chegou perto demais, estava rindo, continuava falando sobre... Eu o acertei com força, ele com certeza não esperava. Foi direto para o chão e eu já estava em cima dele, acertando outros socos. Ele nem alcançou a arma na cintura...
— Você... Atirou nele? — perguntei.
— Não, só apaguei ele e o tranquei lá. Não tive coragem de... Na hora a sensação é assustadora. Só queria me livrar dele o mais rápido possível e me certificar que você estava bem!
— Tudo bem, Hector — coloquei minhas mãos sob seus braços, como se aquele ato pudesse acalmá-lo. — E essa mulher?
— Encontrei com ela logo que desci as escadarias. Um homem velho estava gritando com ela, ameaçando-a com uma faca no pescoço. Ele estava de costas para mim, mas ela me viu e... Não tentou avisá-lo. — Hector encheu as mãos com água e atirou em seu rosto, limpando os resquícios de sangue seco — Rebeca, isso aqui parece um filme de terror! De novo pensei em atirar nele, mas não podia arriscar fazer barulho. Não sem garantir que você estava a salvo. Então dei uma coronhada, mas porra, parece mais fácil nos filmes! Precisei dar três até ele apagar de vez... Pedi para a garota não gritar e expliquei que podia ajudar ela a fugir. Sabe o que ela fez? — sua expressão mudou um pouco para abrir um sorriso malicioso — Pegou a faca que o cara usou para ameaçá-la e enfiou na cabeça dele. Não julgo, claro, ela falou que ele era um estuprador de merda.
Arregalei os olhos, não esperando aquilo.
— Caralho.
— Sim, imagina o que essas mulheres estão passando... — sua expressão ficou séria — Ela veio comigo na hora e me mostrou onde você estava, falou quantos caras ainda estão aqui. Toma, fica você com isso — Hector passou um pouco de água na lâmina do facão para tirar o sangue e me estendeu.
— Obrigada. Quantos são? — perguntei.
— Além de Enrico, que está trancado, e o cara que ela matou, têm quatro. Um foi baleado no confronto com outro grupo e está ferido.
— Só quatro homens? Não conseguimos fugir sem chamar atenção? Esse lugar parece enorme.
Hector me olhou seriamente.
— Rebeca, não podemos fugir. Você pode fazer o que achar melhor, mas eu não vou sair daqui sem as outras mulheres. Têm mais cinco presas aqui além da Bruna e da irmã do Celso. Eles as mantêm aqui trabalhando para eles, mas alguns dos caras abusam delas... Klaus e Adão são os que mandam, não fazem nada contra a vontade delas, mas também não ligam para o que os outros fazem.
Senti minha respiração presa na garganta, querendo ao máximo afastar aquelas imagens da cabeça, mas não era possível.
— Meu Deus...
— Sim. Uma delas tem 16 anos, e fica com Klaus porque assim ele não deixa mais nenhum deles tocar nela.
As palavras de Hector chegaram até mim como um golpe mais forte do que os que eu levara na tarde anterior. Senti meu sangue esquentar e a respiração se tornar pesada. 16 anos. Era a idade do Hector, mais nova do que eu e me peguei pensando em quais horrores aquela garota não presenciara nos últimos meses. Hector estava certo. Não poderíamos deixar essas meninas para trás.
— Não vou deixar você pra trás, vamos-
— O que você tá fazendo aí, Bruna? — Ouvimos uma voz masculina e um frio atingiu minha espinha — Cadê o Marcelo?!
— E-eu... Ouvimos uma coisa, ele me mandou ver — a mulher respondeu, mas sua voz era incerta, incapaz de esconder seu medo.
— Ouviu o que? — a voz se aproximou, e percebi que pertencia ao garoto mais jovem. Ele estava sério e caminhava na direção do banheiro.
Troquei olhares com Hector e vi o pânico evidente em seu olhar. Percebi seu dedo destravando a arma e ele levou outro até a boca, em sinal de silêncio.
— Fala, piranha! — ele estava mais perto — Você estava falando com ela?! Klaus vai quebrar...
Não consegui ouvir o resto da frase, pois o grito de Bruna abafou o som. Empunhei a faca no impulso, ao mesmo tempo que Hector abria a porta e apontava a arma para fora.
Era realmente o garoto mais jovem, segurando o braço da mulher e forçava a arma contra sua cabeça. Nossa saída abrupta o pegou de surpresa e vi seus olhos se arregalando. Hector estava com os braços esticados, apontando a própria pistola para o seu rosto.
— Fica em silên...
Meu amigo começou, mas o garoto empurrou a mulher para longe e virou a arma rapidamente na nossa direção.
O primeiro som de tiro veio como um estouro, fazendo-me fechar os olhos por reflexo. Meu ouvidos doeram tanto que pareciam a ponto de sangrar e eu não ouvia nada além de um zumbido que atordoava meu cérebro. O choque durou por alguns segundos, congelando-me, mas por fim abri os olhos, apertando a faca com mais força.
O olho direito do garoto estava arregalado em surpresa, e onde deveria estar o esquerdo, agora havia um buraco grotesco de onde o sangue escorria. Ele estava apoiado na parede tingida de gotículas vermelhas. Ouvimos o baque da arma caindo e seu corpo começou a convulsionar, deslizando pela parede até o chão. Olhei para Hector, preocupada, mas não havia nada de errado com ele apesar do rosto apavorado. Bruna havia se encolhido no chão, protegendo-se do sangue que voou.
Fiquei alguns segundos atônita, encarando o corpo do garoto que deveria ter pouco mais que a minha idade chacoalhando convulsivamente enquanto o sangue continuava escorrendo de seu rosto. O tiro de Hector fora certeiro, mas a expressão do meu amigo estava longe de ser satisfeita. Olhava horrorizado para o corpo e a arma em suas mãos e finalmente percebi: mesmo que sempre andasse armado, Hector jamais havia matado outra pessoa.
Antes que eu pudesse processar propriamente o acontecido, ou perguntar se meu amigo ou a mulher estavam bem, ouvi uma comoção ocorrendo na entrada da oficina e uma voz grosseira berrou:
— Natan?! O que aconteceu?
Estávamos fodidos.
✘✘
Nota da autora:
Boa noite, amigos.
Fodeu?
Meu Deus, já estamos quase no capítulo 30! Bastante gente me perguntou essa semana quantos capítulos terão esse livro e a resposta é: não sei. Brinks kkk mas sério é difícil estimar um número exato, porém acredito que seja próximo ao número de Em Decomposição, por volta de 50 capítulos.
E aí, quem saí vivo dessa? Meu coração está começando a apertar, não sei o de vocês.
Outra coisa, estou um pouco atrasada nas respostas dos capítulos anteriores! Peço mil desculpas, mas estive bastante ocupada com o TCC/faculdade nesse final de ano.
Prometo que essa semana colocarei tudo em dia!
Muito obrigada pelo carinho 💕
Um beijo, e não sejam mordidos!
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