Capítulo 25.
Por um segundo Celso pareceu a ponto de desabar conforme seus olhos ficavam úmidos e avermelhados. Ele os limpou com as costas do braço, respirando fundo para tentar manter a voz estável:
— Minha irmã é refém desses malucos — suas mãos tremiam, fazendo o feixe de luz da lanterna se movimentar da mesma forma — e Laura está na escola, sem saber que sua tia vive.
Troquei um olhar com Hector. Sua expressão não era nem remotamente plena enquanto mordia sua barrinha de cereal, mas não disse nada.
— E por que sua irmã está aqui e sua filha em outra cidade? — perguntei, para que Celso continuasse falando.
Estávamos posicionados em um triângulo, comigo e Hector olhando fixamente para Celso enquanto contava sua história naquele cubículo iluminado por uma lanterna. Falávamos em sussurros quase inaudíveis para evitar que alguém pudesse nos ouvir. O homem coçou nervosamente a nuca e ficou alguns segundos em silêncio antes de começar:
— Eu e Laura morávamos em Botuverá, a cidade da escola, antes da pandemia se iniciar. Me mudei quando me casei, deixando minha mãe e irmã aqui. Quando tudo estourou eu estava trabalhando no colégio de Laura e a loucura dos dias iniciais nos obrigou a ficar por lá. Conseguimos sobreviver, mas Laura ficou severamente perturbada e desde então não tenho coragem de tirá-la de lá, onde ainda restam alguns amigos e pessoas que cuidam dela.
"Vim até Blumenau sozinho algumas semanas depois, em busca da minha família. Não encontrei ninguém na antiga casa, mas dei de cara com os homens de Klaus enquanto voltava para a rodovia. Quando me trouxeram aqui, descobri que haviam pego Mariana. Iriam me matar, mas ela os convenceu de que eu não era daqui, logo não podia ter envolvimento com os outros grupos da cidade. Como não tinha escolha, me ofereci para buscar mantimentos para eles contanto que deixassem a mim e Mariana vivos e Klaus aceitou, com a ameaça de que estuprariam e matariam minha irmã se eu não voltasse com bastante comida. Não tive escolha além de voltar para a escola e roubar de lá. Não podia contar para eles o que estava acontecendo ou o motivo de ter voltado, achariam que eu era um risco... Estariam certos. — ele suspirou — Então mantive segredo dos dois grupos. Fiz minha melhor impressão de lunático psicopata e consegui virar um deles, para ficar perto e garantir a segurança de Mari.
— Meu Deus, isso é horrível — inconscientemente busquei um cigarro no bolso, mas não achei nada, percebendo como minhas mãos tremiam. Imaginar o que aqueles homens faziam com as mulheres presas ali fazia minha visão embaçar.
— O pessoal da escola nunca desconfiou? — Hector perguntou, seco, enquanto amassava e jogava no chão a embalagem — Eu te vi roubando na primeira vez que estive lá.
— Você esteve na escola?! — Celso perguntou, parecendo desconfiado de início, mas eventualmente deu de ombros, chegando a conclusão óbvia de que Hector estava conosco desde o começo. — Se sabiam, nunca falaram nada. Eu sou cuidadoso e sei também que sou uma pessoa que passa facilmente despercebida. Quase não fico lá, além do tempo necessário para ver minha filhinha e tentar levar para eles uma parte do meu saque... Mas é inútil, pois logo Klaus coloca uma faca no pescoço de Mariana e preciso voltar para roubar o dobro. Sempre prejudicando uma das duas...
O homem parecia transtornado, coçando constantemente alguma parte do corpo e lutando contra as lágrimas. Sua versão nervosa do colégio parecia quase tranquila perto do Celso a nossas frentes. Mesmo assim não conseguia enxergar qualquer indicativo de perigo em suas ações, somente um homem perturbado pelo desespero. Não o julgava, mas a expressão de Hector permanecia igualmente dura, quase sombria sob os machucados ensanguentados.
Celso respirou pesadamente de novo, dirigindo-se para nós:
— E vocês, o que fazem aqui? Como vieram parar nessa cidade? É a pior coisa que poderia ter acontecido, coloca todos em risco.
— Viemos atrás de você — Hector disse, agressivo, e Celso franziu as sobrancelhas.
— Na verdade de Leonardo e Gustavo, que haviam vindo inicialmente atrás de você. Contei para Leo o que Hector viu da primeira vez, que você roubava comida... Achei que você era a ameaça.
Subitamente, Celso deu um golpe com o punho na parede ao seu lado e o som oco me fez pular de susto. Seus olhos estavam fechados e em segundo lágrimas voltaram a aparecer.
— Que merda! — grunhiu — Merda, merda... Então eram eles.
— O que tem eles?! — perguntei, nervosa.
— Os homens do Klaus encontraram duas pessoas na nossa área semana passada. Pensavam que eram do grupo do hospital.
— Quem são é o grupo do hospital? — Hector interrompeu.
— Tem outros dois grupos de pessoas nessa cidade: — Celso explicou — um deles vive no hospital. Klaus e alguns de seus homens pertenceram a ele no começo, mas depois tiveram desavenças e se separaram. Foi algo violento, pelo que contam, e Klaus ainda pretende voltar lá e metralhar todo mundo... O terceiro grupo é menor, ficou na faculdade, mas ela é bem cercada e fácil de proteger por dentro. Quando Klaus e Anderson, o "líder" do hospital, começaram a arranjar confusão, esses outros entraram no meio. Virou uma rixa e a cidade ficou dividida. Ninguém se atreve a cruzar a área de outro, porque vai tomar bala.
— E o que houve com Gustavo e Leonardo? — perguntei, sentindo o desespero tomar conta de mim — Foram mortos?!
— Não sei, Rebeca, mas agora tudo faz sentido... Klaus os seguiu até o hospital, pensando que fossem de lá. Provavelmente os dois só não sabiam para onde estavam indo... No fim de fato encontraram com o grupo de Anderson e houve um tiroteio. Dois dos nossos morreram e Kleber foi baleado, mas não soube nada sobre os dois "intrusos".
— Meu Deus — lamentei, abraçando meu próprio corpo. Não havia como os dois terem saído vivo disso. Senti lágrimas quentes se formando, o pensamento de que podia ter me proposto a ajudar desde o começo pesando em minha mente. Sentia um súbito ataque de tontura pensando em suas mortes
Hector secou o suor da testa com o punho.
— Todos esses grupos estão armados? — perguntou.
— Sim, mas não como nós. Klaus, Adão e Enrico eram envolvidos com tráfico, tinham armas e sabiam onde arranjar mais. Temos três fuzis, três pistolas, dois revólveres e uma espingarda... Os outros eu não sei, mas já vi homens e mulheres armadas, mas de longe somos os mais preparados para nos proteger. Temos os walkie-talkies também. Eram da polícia e cobrem uma área bem grande.
Eu e Hector ficamos em silêncio por alguns segundos, digerindo com a maior calma que conseguíamos aquelas informações.
— Você e Mari... Nunca tentaram fugir? — perguntei, mas era um questionamento quase retórico. Sabia que não era questão de tentar ou querer, mas do medo do que aconteceria se falhasse. Com minha pergunta eu quis dizer "qual foi o maior impedimento para não fugirem?".
— Não teríamos para onde ir: o grupo de Klaus tem 14 homens, quase todos armados e fazendo rondas pela cidade enquanto a estrada fica bloqueada. Estávamos bolando um plano, esperando a hora certa... Mas eu sempre precisava pensar em Laura, e em como não poderia morrer aqui. Como Klaus mandou os outros deixarem Mari em paz enquanto eu estivesse servindo era mais fácil simplesmente... Manter assim.
Percebi uma mudança súbita no rosto de Hector, seu rosto se transformando em uma cara de repugnância.
— Deixavam Mari em paz? E as outras mulheres? Você não se importa com o que estejam fazendo com elas? — Hector deu um passo à frente, o rosto quase grudado no de Celso.
— O que você acha que eu posso fazer? — Celso respondeu, mas a vergonha era perceptível em sua voz e expressões — Tudo o que eu mais queria é que esses infelizes caíssem mortos, mas precisava pensar na segurança da minha irmã e filha em primeiro lugar.
— Você é nojento — Hector cuspiu — e um covarde.
— Eu não dou a mínima para o que você pensa sobre mim. — Celso rebateu, a expressão séria — Desde que as pessoas com quem me importo estejam a salvo. Se vocês também tivessem a decência de não se meter nas coisas que não conseguem lidar, não estariam aqui, não seriam torturados pelo lunático do Klaus e não colocariam tudo a perder!
Suas palavras não haviam sido para mim, mas as senti perfurando o meu coração como uma bala. Queria gritar que não era culpa minha, mas não estaria tentando convencer ninguém além de mim. Apenas pensar que outrora me atrevi a acreditar que já havia enfrentado tudo de ruim que aquele mundo tinha a oferecer me repugnava, queimava por dentro em vergonha e arrependimento. Como se aquela fosse a punição que eu merecesse. Sequer veria problema nisso, se a estivesse enfrentando sozinha, mas não podia suportar a ideia de que minhas ações colocaram as pessoas que eu amava em risco.
— Celso — interrompi a discussão dos garotos, que parecia propensa a se acalorar mais. Era inútil, pois justas ou não, eu precisava lidar com as consequências daquelas ações — o que você acha que podemos fazer? Tem alguma ideia? — e então uma luz: — Eles disseram que você sairia amanhã! Você pode voltar para a escola e avisar a todos, mandá-los para longe... Poderíamos levar todos até o condomínio!
— Não, Rebeca, justamente por isso que estou me arriscando para falar com vocês. Klaus me mandou ir para onde eles estão imediatamente, não vou poder ir até a escola — suas palavras embrulharam meu estômago, deixando-me sem chão — vocês vão estar sozinhos aqui por enquanto. Sozinhos com Enrico e o resto dos homens... Estou tentando pensar em algo. Falei com Mari para colocarmos em prática nosso plano de fuga assim que eu voltar, mas até lá... Eu não sei se eles farão algo com vocês ou se Klaus quer lidar pessoalmente com a interrogação. Também não sei dizer o que é pior.
— Você só precisa que fiquemos quietos, né? — Hector disse, encarando-o mortalmente — Precisa que calemos nossas bocas enquanto os doentes enterram um ferro quente na gente? — Riu com escárnio.
As palavras de Hector foram direto para o meu coração, que batia tão rápido a ponto de doer. Apoiei-me na parede, sentindo vertigem ao pensar em de fato ser torturada. Eu não sabia se aguentaria.
Senti a mão de Hector cobrir a minha, olhando-me com empatia. Como se dissesse que tudo ficaria bem.
— Klaus é inescrupuloso, mas não acho que ele faria isso com crianças. Não sei, preciso de todo o tempo que puderem me dar. Mariana disse que falaria com as outras mulheres, tentarão criar algum problema, algo para deixar Enrico e o pessoal ocupado... Acreditem, é terrível para mim pedir que passem por isso — o homem passou a mão pelos fios curtos de cabelo, visivelmente abalado abalado. Estava suado, mesmo fazendo frio, e continuava tremendo — vocês podem mentir, mas provavelmente seriam mortos assim que descobrissem.
— Melissa e Tom — cortei-o, agradeci por ter o calor da mão de Hector sobre a minha, dando-me de alguma forma um pouco de coragem — estão no colégio. Melissa sabe que viemos atrás de você, Paulina também. Se conseguir chegar até lá e se explicar antes de te darem um tiro, elas podem te ajudar. Levar todo mundo para o condomínio de onde viemos.
— Rebeca — Hector me chamou, provavelmente não concordando com a ideia de falar sobre o condomínio.
Devolvi seu olhar, incisiva.
— Não vamos sair dessa, Hector. — respondi, sentindo as minhas próprias palavras apertando meu coração. A pior parte era que eu acreditava completamente nelas — Precisamos garantir que o máximo de pessoas fiquem a salvo.
Um chiado alto cortou o ambiente silencioso, dando-me um susto. O rádio de Celso chiou na cintura e ele o pegou imediatamente, olhando em pânico para os lados antes que uma voz difícil de identificar soasse:
— Celso, cadê você? Está tudo pronto.
Ele respirou fundo, controlando sua voz antes de responder:
— Estou indo, Marcelo, vim pegar o que o Klaus pediu.
— Anda. Desligo.
Celso prendeu de novo o comunicador no bolso, voltando a olhar para mim.
— Preciso te levar de volta agora. Eu não sei se essa conversa serviu de algo, eu só queria que soubessem que não estão completamente sozinhos nessa. Mari vai fazer o possível para ajudar vocês aqui e espero estar de volta amanhã mesmo... Por favor, não façam nada de que possam se arrepender, esses caras são malucos, e mesmo com a ordem de Klaus, não hesitarão se vocês tentarem algo.
Assenti diante daquelas informações, sem conseguir encontrar algo para responder.
— Rebeca. — Hector me puxou para um abraço apertado, que devolvi na mesma intensidade — Fica calma, vamos dar um jeito. Eu prometo.
Afundei meu rosto em seu peito, percebendo como nem ele parecia ter certeza de suas palavras. Minhas mãos suavam, e em um ímpeto de rebeldia infantil, pensei se não o soltasse nunca. Se me recusasse a voltar com Celso, e se juntos tentássemos fugir dali. Se por sorte conseguíssemos passar pelos homens armados...
Mas antes que eu pudesse me sentir confortável em meu próprio devaneio, Hector me soltou, relutante. Ainda olhava agressivamente para Celso, mas sabíamos que nada do que fosse falado levaria a algo. O seu único objetivo era manter a filha e irmã a salvo, e seu interesse em nossas vidas só ia até onde ameaçávamos sua mentira. A verdade é que só podíamos contar um com o outro.
Celso segurou novamente meu braço enquanto caminhávamos para fora, fingindo que me arrastava para algum lugar. Provavelmente inventaria alguma desculpa caso encontrasse alguém.
Pela janela aberta naquele segundo andar, pude ver o céu sem estrelas, cobertas por nuvens escuras. Olhei uma última vez para Hector, que também parecia encontrar dificuldades para se manter confiante.
— Sempre pensem em quem vocês precisam manter protegidos. Torna as coisas mais fáceis — foi a última coisa que Celso disso antes de fechar a porta que mantinha Hector preso, separando-nos para enfrentar sozinhos qualquer mal que pudesse no alcançar.
✘✘
Nota da autora:
Nesse dia eu sou a mulher mais feliz do mundo. Para quem ainda não soube:
Em Decomposição ganhou o Wattys 2020 na categoria Terror!!
Até hoje não sinto que os agradecimentos que dou a vocês seja o suficiente para retribuir tamanho carinho, confiança e apoio que recebo diariamente. Em Decomposição, e agora Em Desespero, podem ser escritos por mim, mas a presença e a força que vocês me dão foi essencial para essas obras chegarem até aqui.
Eu prometo do fundo do coração que toda a minha dedicação é para um dia conseguir trazer essa série de livros em publicação física (e quem sabe ser notada pela @netflix). Muito obrigada de verdade por terem acompanhado e continuarem acompanhando a jornada da Rebeca por esse mundo pós-apocalíptico. Eu ainda tenho muitos planos e temos muito caminho para cobrir, prometo continuar dando o máximo de mim para tornar essa jornada incrível.
Obrigada mesmo, por tudo. Vocês não fazem ideia do quão importante são para mim. Prometo que vamos conseguir conquistar o mundo 💕 Sinto mais do que nunca que meus sonhos são possíveis de alcançar.
Desculpem de novo se esse agradecimento não for o suficiente, mas ainda estou simplesmente atordoada de tanta alegria.
É isso que eu queria dizer, hoje é um dia ótimo, então tomem cuidado para não serem mordidos.
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