Capítulo 22.
O golpe na parte de trás da perna me fez cair de joelhos no chão gelado, e em um instante Hector foi derrubado da mesma forma ao meu lado. Por reflexo, tentei mover os braços, certa de que enterraria um soco na cara do homem que me derrubou, mas só senti a restrição das cordas apertando meus pulsos.
Respirei fundo, tentando conter o novo surto de adrenalina que inundava meu corpo. Assim que fomos tirados da caminhonete tivemos os nossos braços amarrados para trás. Não houve qualquer cuidado em impedir que víssemos o caminho ou o lugar onde paramos, por isso sabia que nos dirigimos para o que outrora fora uma oficina, dentro de um terreno fechado. Caminhamos por um pátio largo, onde carros e caminhões estavam estacionados. A construção principal era de dois andares, o interior grande e as paredes eram de concreto, sem pintura. Um letreiro com a palavra "Mallmann" não informava nada sobre o local, mas macacos hidráulicos e outras máquinas empilhadas sugeriam que outrora aquela havia sido uma oficina mecânica.
O céu escurecia rápido. O vento de junho era cortante e o contraste de temperatura foi notável assim que cruzamos as portas de metal, deparando-nos com um interior iluminado pela luz alaranjada do fogo. A entrada do lugar era uma sala extensa, com paredes vazias e chão de concreto, onde sofás, mesas e cadeiras estavam aleatoriamente dispostos, lembrando uma sala bizarra. A iluminação era uma meia-luz proporcionada por lanternas estilo lampião espalhadas pelo local, em conjunto com uma lareira improvisada montada em um dos cantos. Uma escadaria e outras portas dispostas indicavam que haviam mais salas e corredores fora de nossa vista.
Apesar do calor bem-vindo, meu coração passou a retumbar com a visão de um grupo significativo de pessoas: além da dupla que nos trouxera, mais quatro homens, entre jovens e velhos, estavam naquela sala: dois sentados em sofás gastos, mexendo com armas de fogo; outros dois em volta de uma mesa de bilhar antiga com tacos de sinuca na mão. Haviam vários tipos de armamentos apoiados em encostos ou sobre bancadas, desde de pedaços de madeira a machados, pés de cabra, ou armas propriamente ditas. Duas mulheres, entre vinte e trinta anos, também estavam presentes: uma delas passava a vassoura no chão; enquanto a outra, parecendo nervosa, estava sentada junto aos caras no sofá.
Quando a porta de metal foi aberta, vários rostos se direcionaram a nós, esboçando diversos tipos de confusão. O reconhecimento imediato de um deles me trouxe uma aversão tão forte que senti o sangue esquentar:
— Seu filho da puta! — Sibilei para Celso, que me encarava mortificado do sofá.
Fui derrubada com um tapa forte que fez meu rosto arder. Adão estalou a língua em reprovação, mas não falou nada e agarrou meu ombro, colocando-me novamente de joelhos.
— Cala a boca, vadia! — ameaçou Enrico, meu agressor — Tu já vai ter muita coisa para falar daqui a pouco.
— Sheila, Mariana, entrem — o outro homem no sofá murmurou, engatilhando a pistola que tinha em mãos e guardando na parte de trás da calça.
As duas mulheres tinham seus olhos fixos em mim, as expressões ao mesmo tempo surpresas e assustadas. Pareciam ter idades semelhantes, mas sob a pouca luz era difícil ter certeza. A que varria o chão imediatamente largou a vassoura e estendeu a mão, pedindo que a segunda a acompanhasse. Entraram por uma porta e saíram de nossas vistas, apressadas. Não sabia se estavam lá por vontade própria.
— Que porra é...
— Cala a boca, Elias — Adão cortou um homem que tentou falar pela primeira vez, a voz estrondosa ecoando na sala — Onde está o Klaus?
— Acho que no quarto. Deve ter subido com uma das meninas — o garoto que estava jogando respondeu, uma expressão maliciosa no rosto. Parecia ser um pouco mais velho do que eu.
O sorriso desapareceu assim que Adão o encarou.
— Chama ele.
— O que? Adão, ele vai me...
— Cala a merda da boca e vai logo, Natan.
O garoto não respondeu e ao invés disso, assentiu fervorosamente enquanto deixava o taco de sinuca na mesa e se dirigia até a escadaria. Enrico, com um sorriso maldoso estampado no rosto, murmurou antes que o garoto saísse da sala:
— Quem sabe o Klaus realize o seu desejo e te foda de uma vez também.
Adão não respondeu, limitando-se a encará-lo sem simpatia, de braços cruzados.
Durante todo o tempo mantive meus olhos frios em Celso, que no segundo após Enrico me calar com um tapa, esboçou uma reação muscular, mas somente a disfarçou. Sem tirar os olhos de mim, moveu a cabeça em sinal de "não", mas seus olhos não conseguiam esconder o pavor.
Mataria-o ali mesmo se pudesse.
Respirei fundo, pronta para gritar de novo, mas Hector limpou a garganta propositalmente alto antes que eu conseguisse falar, a fim de atrair minha atenção:
— Não, Rebeca — mesmo tentando sussurrar, seu tom era suficientemente audível diante do silêncio sepulcral na sala.
— Fiquem quietos — Adão rosnou , passando seus olhos de mim para Hector.
A maioria dos homens parecia relativamente em boa forma, com exceção de dois bem mais velhos, ainda que com carrancas igualmente fechadas e assustadoras. Ainda assim, a figura alta musculosa de Adão se destacava. Prestei mais atenção às tatuagens grandes que cobriam seus dois braços e só então percebi um SS em letras angulosas estampado em seu pescoço. Um arrepio trovejou em minha espinha ao reconhecer o símbolo nazista.
Em poucos minutos ouvimos passos se aproximando e o garoto Natan cruzou a sala, voltando para o lado do seu companheiro de sinuca. Alguns segundos depois uma garota morena também cruzou a sala, sem olhar para ninguém, indo na mesma direção que as outras duas garotas foram.
O tempo se arrastou e a adrenalina em mim se esvaiu, restando somente a agonia a torturar meu coração. Demorou até ouvirmos passadas na escadaria pela qual Natan e a mulher vieram, e minhas mãos suaram em expectativa. Ninguém, nem mesmo Celso, moveu um músculo, os olhos passando nervosamente entre mim e Hector. Ouvi o barulho de algo pesado caindo ao longe, provavelmente em outra sala, e senti uma gota de suor escorrer pela lateral do meu rosto.
A primeira coisa que reparei foi em seu braço direito exposto pela regata branca, que chamava mais atenção do que o facão com sangue seco que tinha em mãos. A princípio imaginei que fossem as sombras, mas eventualmente entendi que toda a extensão era completamente coberta por uma tatuagem negra. O outro braço também era coberto por tatuagens, mas nada chamava mais atenção do que seu punho direito, com o mesmo símbolo da SS nazista que Adão tinha no pescoço.
As tatuagens pertenciam a um homem relativamente jovem, por volta de trinta a trinta e cinco anos, não muito mais alto do que Hector. Sua pele era pálida com sardas evidentes nos ombros e o cabelo acobreado estava estilizado para trás com alguns fios desordenados.
Pelo clima ansioso na sala, aquele deveria ser Klaus. O homem cravou os olhos nos meus, depois passou desinteressadamente para Hector, em total silêncio. Deu um suspiro longo e guardou o facão no coldre improvisado na lateral do jeans.
— Enrico, Adão, por que tem dois adolescentes ajoelhados na porra da minha porta da frente? — perguntou, soando pouco impressionado ao nos examinar.
— É a dupla que João e Nicolas viram na entrada da cidade. — Enrico respondeu. Tinha os braços cruzados e o peito levemente estufado, mas aquilo não conseguia esconder sua postura hesitante diante do homem — Correram deles para dentro da cidade, devem estar junto com o pessoal do hospital! Sabem que balearam um dos nossos, devem estar mandando...
— Fica quieto. — Klaus respondeu, calando-o na hora.
Convenientemente, Enrico não mencionou que nossos pneus haviam sido furados e os homens estavam armados com um fuzil. Olhei de relance para Hector, mas seu rosto estava virado para o chão. O sangue começava a secar, manchando sua pele, e aquela lembranças trouxe um novo aperto ao meu peito.
O homem com o braço preto respirou fundo e passou uma mão pelos cabelos, jogando-os para trás.
— Vamos fazer essa merda logo, então — falou com o mesmo tom que usaria se o mandassem catar merda de um cachorro. Seus passos eram relaxados e ele caminhou até chegar na minha frente, agachando-se para que nossos olhos ficassem da mesma altura. Seu semblante era indecifrável, e ainda assim parecia longe de amigável: — Qual o seu nome, princesa?
Estava tão próximo que era possível ver as pequenas sardas no nariz pontudo. Seu desinteresse estava estampado na cara, mas a mão apoiada casualmente próxima ao facão não deixava que eu abaixasse a guarda. Pensei em cuspir na cara dele, mas sabia que não conseguiria.
Busquei o rosto de Hector com os olhos, sem saber como deveria agir. A corda apertava meus pulsos e dificultava a circulação do sangue, mas conseguia sentir as palmas das mãos úmidas. O pavor vinha em ondas que deixavam todo o meu corpo tremendo, completamente incerta sobre como agir.
— Não, não. Sou eu que estou perguntando — senti seus dedos apertando meu queixo com mais força do que o necessário e virando minha cabeça à força para voltar a encará-lo. Ele não soltou.
Rezei para que o meu semblante pelo menos aparentasse calma e controle, mas no segundo em que isso cruzou minha mente, lembrei-me de como agimos da primeira vez que eu, Tom e Melissa tentamos contato com o grupo da escola. Mesmo com a desconfiança inicial de Paulina e Leonardo, a maior parte do grupo se sensibilizou com a nossa atuação de crianças assustadas — e se duvidaram de alguém, havia sido de Tom, por nos acompanhar.
Era impossível saber o que Hector achava melhor, por isso confiei na minha intuição:
— Meu nome é Rebeca — falei, tentando não mais esconder o nervosismo na minha expressão. Ao invés disso, desviei o olhar, como quem não aguentava mais estar ali: — eu só tenho quinze anos, eu e meu namorado não sabemos do que vocês estão falando!
— Rebeca, eu não perguntei a idade que você tem — seu tom era quase imperceptivelmente sarcástico, mas sua expressão permanecia séria. Senti o aperto no meu queixo se intensificar — porque eu não dou uma foda. Agora, o que eu quero saber de verdade é de onde vocês dois vieram. Que tal você me contar sem enrolação, aí eu não corto a cabeça do seu namorado fora?
Foi como se o tempo tivesse parado. O choque daquelas palavras, da frieza com que foram ditas, tão forte a ponto de me deixar tonta. Quase de imediato precisei morder o lábio, tentando impedi-lo de tremer e segurando meu choro iminente. Eu não sabia o quão séria era aquela ameaça, mas imaginá-la sendo posta em prática fez todo o meu corpo tremer.
Ainda assim esforcei-me para manter a expressão o mais neutra possível, agora que já era evidente que meu fingimento não teria qualquer efeito. Mesmo que não as pudesse alcançar, queria estar com as minhas facas ali, mas Adão foi metódico quando revistou a mim e Hector, tirando qualquer arma que tínhamos escondidas. Perceber como a postura despreocupada que os homens à minha frente tinham era um reflexo de seu metodismo e confiança fazia a minha espinha gelar.
Mantive-me calada, sem desviar os olhos do homem à minha frente.
O golpe me pegou de surpresa, tal foi a velocidade. Um tapa se chocou no meu rosto, do mesmo lado que já recebera outros golpes naquele dia. A força foi chocante, mas o aperto no queixo manteve meu rosto no lugar. A dor me deixou tonta e senti o gosto de ferro no fundo da boca, tendo dificuldade para fazer minha cabeça parar de girar.
As lágrimas que começaram a escorrer pelas minhas bochechas foram incontroláveis, frutos da dor e do medo que se instaurava em mim. Eu nunca havia apanhado. Contar o que deveria ter sido o terceiro ou quarto golpe daquele dia era humilhante e assustador. O homem sequer começara aquele interrogatório e já me fazia tremer.
Não resisti e busquei os olhos de Celso. Ele sequer disfarçava o choque, os olhos arregalados fixos na cena enquanto ele permanecia imóvel. Quis mandá-lo para o inferno, mas não queria apanhar de novo.
— Para, eu quem pedi para ela não falar nada! — Hector interrompeu, tentando se mexer mesmo, com os movimentos restringidos — Viemos de Florianópolis. Estivemos lá todos esses meses e saímos sem rumo há duas semanas!
— Se estavam em Florianópolis, por que vinham do sentido oeste? — pela primeira vez Adão fez uma interrupção e Klaus ergueu o olhar. Diferente da forma como tratara os outros, tinha uma expressão respeitosa ao ouvir o homem maior.
— Não viemos para cá direto. Tentamos a sorte em cidades menores antes, não queríamos voltar para uma cidade grande tão cedo, mas os mantimentos logo se esgotam — respondi, tendo pensado na indagação sobre o sentido que estávamos assim que Hector falou.
Klaus finalmente soltou o meu queixo, apoiando o braço preguiçosamente no joelho. Seus olhos viajaram de mim para Hector e sua expressão permanecia indecifrável. Os segundos de tensão se arrastaram conforme mais tempo ele ficava em silêncio.
— Não sei. Adão, o que você acha? — com um impulso ele se ergueu, desviando os olhos de nós dois.
— Me parece mentira.
Um sorriso se abriu no rosto de Klaus, mas não era minimamente divertido. Transformava sua expressão em algo macabro.
— Engraçado, também me parece — o homem colocou as mãos na cintura, observando a mim e Hector por alguns segundos. Em seguida caminhou em direção à lareira — Vou falar a verdade para vocês: espero muito que estejam mentindo. Porque vai ser uma merda se vocês realmente pararam aqui por coincidência dois dias depois de uma confusão ter matado dois dos meus homens. — ele esticou a mão e buscou o atiçador de brasa apoiado na parede, enfiando-o no meio do fogo — Seria um saco enfiar um ferro quente nos dois e ter sido só um engano. Por sorte não costumo estar enganado.
✘✘
Nota da autora:
Oi amigos!
Existe algo para falar além de: fodeu?
Peço desculpas por ter me atrasado para postar esse capítulo! Fico imensamente chateada em ter faltado com o meu compromisso, mas tenho motivos: de última hora resolvi alterar um pouco o rumo desse seguimento da história e os acontecimentos nesse capítulo precisaram ser revisados correndo! Sei que não é desculpa, mas espero mesmo que entendam que o que houve hoje foi uma exceção!
Dito isso, conversando ontem com a minha amiga sobre a biologia do vírus eu acidentalmente pensei em todo o enredo de um possível quinto livro *rindo de nervoso*
Lembrando que Em Decomposição era para ser um volume único, que virou uma trilogia, que virou uma saga de quatro e agora... Bom. Por enquanto não tem nada confirmado, claro, mas achei tão engraçado como uma conversa despretensiosa me trouxe tantas ideias que quis compartilhar (e quem sabe com uma notícia boa vocês perdoem meu atraso).
Muito obrigada por tudo, pelo carinho e compreensão de sempre! Devido à complicações também estou devendo responde os comentários de alguns capítulos, prometo que essa semana vou colocar tudo em dia! 💞
(Antes que se preocupem: sim, está tudo bem! As complicações são coisas mínimas, mas que acabaram me tomando um tempo maior do que eu esperava. Sim, estou dormindo e comendo direito, juro de dedinho!)
Um beijo para todos e até segunda-feira que vem!
Não sejam mordidos.
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