Capítulo 15.
Bingo.
Sorri com aquela caixinha em minhas mãos, acompanhando com o olhar a tarja preta que a rodeava. Era o terceiro remédio da lista de Alana, outro medicamento para depressão. Nossa enfermeira me alertou incontáveis vezes que não era porque eu encontraria os remédios que eles teriam o efeito desejado e conseguiríamos ajudar Guilherme, mas naquele momento, depois de encontrar três caixas diferentes de cada nome que Alana me passara, sentia-me incrivelmente confiante.
Olhei em volta para os destroços da farmácia, que mesmo com as fachadas quebradas e obviamente saqueada, ainda parecia ter sido invadida por seres muito mais civilizados do que os de Florianópolis. Depois do apocalipse, a maioria das lojas só tiveram dois destinos: ou estavam saqueadas ou completamente fechadas pelas portas de metais. Ver a fachada da farmácia quebrada me desanimou, mas seu interior estava estranhamente conservado em comparação com os vidros destruídos do lado de fora.
Derrubar os dois zumbis que rondavam as prateleiras havia exigido muito menos esforço do que procurar por inúmeros corredores de caixas de remédio até encontrar os nomes que eu queria, mas por fim tudo estava feito.
— Mei? — chamei, e em segundos minha pastor veio até mim com o rabo abanando. Ela estava tão feliz em sair comigo que sequer se afastava mais do que alguns passos para fuçar as coisas — terminamos aqui, garota.
Olhei na direção da rua para ter certeza que tudo estavas bem e vi Melissa batendo com força em um zumbi que se aproximava, derrubando-o no chão com seu pedaço de metal. A criatura ainda se mexia e minha amiga precisou bater mais duas vezes em sua cabeça antes de voltar para o lado de Hector, rindo de algo que ele dizia. Quando voltou, ele estendeu a garrafa térmica de um litro para ela, que abriu a tampa e tomou um longo gole, quase engasgando de tanto rir.
Não sabia sobre o que falavam, mas sabia que não precisaria de muito para fazê-la gargalhar. Dentro daquela térmica não tinha água, como nas garrafas em nossas mochilas, mas uma mistura generosa de gim com suco de limão que estávamos tomando às bicadas já havia uma hora, e a essa altura nós três estávamos pelo menos um pouco bêbados.
Podia parecer uma ideia idiota, mas só nos dávamos àquele luxo por ter ciência de que as ruas de Botuverá eram incrivelmente tranquilas. Mesmo alegres, nenhum de nós estava alterado demais para se proteger. Tudo bem, talvez simplesmente fosse uma ideia idiota sem qualquer defesa, mas ver Melissa dançando enquanto matava zumbis e ouvir as piadas de Hector — possivelmente problemáticas em um mundo pré-apocalíptico — fazia aquilo virar uma preocupação distante.
— Meu Deus! — Deixei escapar, alto o suficiente para Hector e Melissa virarem no mesmo instante para mim. Mei parou no lugar, erguendo as orelhas para mim.
— Tudo bem, amiga? — Melissa perguntou, quebrando alguns cacos de vidro com a sola de seu coturno ao entrar na farmácia.
— É um milagre — falei, mal conseguindo conter o riso — hoje deve ser o melhor dia das nossas vidas!
— Ela tá chapada? — Hector perguntou, colocando a cabeça pela janela quebrada.
Chutei um pouco de vidro e embalagens que estavam caídas em frente ao caixa e peguei aquela prova de que Deus existia, erguendo-os alto para que Melissa e Hector pudessem ver: cinco pacotes fechados de Kit Kat, abandonados no chão.
— Hoje é mesmo o melhor dia das nossas vidas — Melissa concluiu.
✘✘
— Puta, que saco. Vocês não têm mais nada pra fazer não?! — Hector gritou para dois zumbis que cambaleavam em nossa direção, rosnando.
Estávamos sentados em um banco no meio da avenida há alguns minutos, observando aqueles dois errantes que não haviam nos notado até então. Comíamos nossos abençoados Kit Kats enquanto dividíamos o gim com suco, como se a ideia de um apocalipse zumbi fosse um surto coletivo.
Minha cachorra dormia tranquila embaixo de nós e acordou com o grito de Hector, entrando em alerta ao ver os zumbis se aproximando. Como ainda estavam a quase uma quadra de distância, discutíamos preguiçosamente sobre quem deveria matá-los. Mei ganiu, virando a cabeça para nós e para os zumbis impaciente, provavelmente achando que não os havíamos percebido.
— Hector, coloca música que eu vou — Melissa se ergueu, sorrindo enquanto se alongava, como quem se preparava para uma corrida.
Hector riu e imediatamente procurou o iPhone no bolso da mochila, o aparelho de um dos falecidos (verdadeiros) moradores do nosso condomínio. Sempre que eu via aquele celular, sentia-me diante de um sonho nonsense. Não existia mais sinal de telefone há meses, mas como tínhamos luz elétrica e carregadores, por pura diversão mantínhamos os celulares achados por lá funcionando. Alguns tinham joguinhos, playlists baixadas e às vezes batíamos fotos que jamais iriam para lugar algum.
Estando bêbada, a sensação de sonho nonsense ficou ainda mais intensa quando uma música da Miley Cyrus realmente começou a tocar em volume alto. Uma parte de mim pensava na inconsequência, no risco que aquela brincadeira poderia significar; e outra segurava o riso vendo Melissa agarrar a barra de metal ensanguentada e caminhar no ritmo da música na direção dos zumbis.
As criaturas outrora foram jovens de no máximo 14 ou 15 anos, não mais altos do que Melissa e de aparência relativamente inteira, não fossem alguns machucados evidentes e sangue nas roupas. Ao som de Mother's Daughter Melissa acertou o mais próximo com força, lançando-o para o chão antes de acertar um chute na canela do outro, que em sua movimentação automática não pôde recuperar o equilíbrio e também foi ao chão.
— Don't fuck with my freedom — cantou alto e desceu a barra de metal duas vezes na cabeça do primeiro a cair, lançando sangue para os lados até deixá-lo imóvel. Ainda no ritmo da música, caminhou até o segundo zumbi e ergueu a barra de metal, cravando-a de cima para baixo no olho da criatura, que depois de uma rápida convulsão também parou de se mexer. Melissa, de costas para nós dois, olhou-nos por sobre o ombro com uma expressão maliciosa e desceu até o chão, usando a barra de metal como um poledance — I'm nasty, I'm evil.
— Isso explica como ela pegou a mina de 20 anos — Hector murmurou pra mim, entre nossas ovações pelo seu pequeno show.
— Vinte e seis — corrigi — meu Deus não acredito que estamos matando zumbis bêbados, que ideia idiota. Tom ficaria puto se soubesse.
Mas minhas palavras sequer serviam para mim mesma. Aquela adrenalina de fazer algo tão errado esquentava meu sangue, junto com o álcool que evidentemente nublava meu bom senso, mas a sensação era boa. Todos aqueles meses desesperadores pareciam um pesadelo.
— Rebeca, uma ideia só é ruim se dá errado. Se funciona, ela só é ousada — Hector corrigiu, enquanto se levantava do banco da praça e estendia a mão pra mim — ainda precisamos passar no mercado, vamos?
Aceitei a ajuda, recuperamos Melissa que havia se entregado completamente ao seu poledance de mau gosto e logo seguimos viagem, rindo e cantando mais alto do que deveríamos.
✘✘
Sem maiores surpresas, assim que viramos a esquina que nos colocava diante do colégio uma voz nos saudou:
— Olha só quem voltou — Leonardo falou alto, chamando a atenção de quem mais estava no pátio.
Eu e Melissa caminhávamos na frente, uma Mei completamente desolada por estar usando coleira no meu braço direito. Hector estava alguns passos para trás, parecendo tranquilo.
— Oiê — Melissa cumprimentou alto, para mostrar quem era.
De onde estávamos eu podia ver Paulina e Elisa junto de Irmã Graça, conversando tranquilamente no pátio. As crianças estavam brincando, e diferente da outra vez não correram para longe ao nos verem, mas vieram elétricas em nossa direção.
— Oi Rebeca, oi Melissa — Júlia cantou, pulando para nos abraçar. Laura, como sempre a seguindo de trás, deu um sorriso rápido, o que já era raro por si só. Júlia quase gritou de empolgação: — vocês têm um cachorro!
— Sim, é a Mei! — respondi, seguindo sua animação, mas me abaixei ao lado de Mei para tranquilizá-la. Ela adorava crianças, mas estava há meses só com as mesmas pessoas, por isso ficava um pouco desconfiada — a Júlia é amiga, Mei.
Antônio e Celso chegaram logo atrás, curiosos diante de Mei e Hector, e logo as perguntas das crianças começaram a se misturar ao nosso redor.
— Está tudo bem com Tomas? — Elisa perguntou, aproximando-se.
— Sim, na verdade, viemos esclarecer algumas coisas — disse, vendo como os olhares curiosos caíam sobre Hector também.
A movimentação do pátio devia ter atraído a atenção, já que a porta do prédio principal foi aberta e de lá veio Valentino, acompanhado de Gustavo e seus cachorros.
— Não achei que estariam de volta tão rápido — começou Valentino, o clássico sorriso no rosto — mas a presença de vocês é muito bem-vinda, garotas. Tudo está bem? Quem é esse menino?
— Está tudo bem, senhor Valentino — Melissa se adiantou para apertar a mão do homem, já que eu precisei intensificar o aperto na coleira de Mei, que agora olhava com sangue nos olhos para Chacina e Massacre.
— Olá, garotas. É sua cachorra, Rebeca? — Gustavo me cumprimentou com um aceno de cabeça, olhando bem para Mei. Ele não sabia sobre ela, então era uma grande surpresa de 50 quilos
— É sim, Gustavo, é a Mei. Garota, senta. Amigo. — Falei, conforme percebi que ele se aproximava, interessado em conhecê-la melhor. No instante em que falei que era um amigo, as orelhas de Mei abaixaram e ela começou a abanar o rabo, e não pude deixar de sentir um sentimento de vitória com o olhar impressionado de Gustavo. — Ela é mansinha, mas não gosta muito de cachorros, por isso estou esperando ela se acostumar.
— Entendo. Chacina e Massacre ajudavam a socializar cães na nossa ONG, eles são extremamente tranquilos com outros cachorros, tenho certeza que lidarão bem com a Mei. Vou deixar Bruxa e Amora longe um pouco, mesmo sendo sociáveis, são muito ansiosas e podem acabar assustando ela — provavelmente aquele fora o maior número de palavras que Gustavo já dirigira para mim desde que nos conhecemos.
— Poxa me desculpa interromper esse assunto interessantíssimo — Leonardo passou por Gustavo, recebendo-me com um abraço e fazendo o mesmo com Melissa. Mesmo sem nunca ter visto Hector, estendeu a mão sorrindo para ele — mas tem mais gente querendo conversar.
Para o meu alívio, o clima era amigável. Mesmo com a confusão inicial, a primeira coisa que fizeram foi cumprimentar todos nós, incluindo Hector, para depois fazerem perguntas. Valentino parecia muito contente em nos ver de novo, e os ânimos só melhoraram quando adicionamos que trouxemos mais mantimentos (como um presente, mas também mais do que o suficiente para compensar pelos dias que pretendíamos ficar).
Todos foram muito educados, e só depois de muitos cumprimentos e afirmações que tudo estava bem, pudemos começar a explicar (não sem antes sermos levados para cozinha e recebidos com um bolo feito por Ivete, que ficara incrivelmente feliz em nos ver de novo). Nós três havíamos revisado a história de antemão, e nos mantemos sucintos como o previsto: sem mais enrolações eu e Melissa revelamos que havia um outro grupo, sem mencionar nossa real localização; que Hector nos acompanhara da outra vez mas preferira ficar escondido; e que o nosso disfarce nada mais era do que uma forma de nos protegermos também.
A princípio houveram perguntas, alguns olhares de medo e desconfiança, mas conforme Hector também entrava na conversa e manejava bem as palavras (e claro que a nossa segunda contribuição de mantimentos havia pesado para o nosso lado), foram compreendendo bem o que acontecera. Valentino, como previsto, não ficara surpreso e apenas ouviu tudo atentamente.
Pensar no que fazíamos me obrigava novamente a pensar o que Tom acharia daquilo. Não mencionamos para ninguém que voltaríamos justamente porque isso só geraria mais debate, coisa que nenhum de nós estava disposto a fomentar. Era óbvio que não haveria problema, havíamos trocado votos de confiança o suficiente.
Ao mesmo tempo que a opinião de Tom era tão importante pra mim, sentia-me cada vez mais orgulhosa de lidar com aquelas situações sozinha. Podia ser uma adolescente idiota às vezes, sucumbindo à riscos bobos, mas se necessário sabia que podia confiar em minhas próprias escolhas. Ter Melissa e Hector ao meu lado era só mais uma prova de que estava segura com pessoas que me entendiam e respeitavam, em quem eu poderia conquistar com a vida.
Naquele momento, ousava pensar que éramos intocáveis.
✘✘
Nota da autora:
Boa noite amigos, tudo bom?
Peço desculpas pela atualização um pouco tardia! Vou viajar essa semana e estou adiantando horas no trabalho e colocando outras obrigações em dia, então acabei ficando sem tempo para corrigir e postar com cuidado a história hoje de meio dia, que é o horário habitual que atualizo.
Aproveito para avisar que segunda-feira que vem passarei o dia na estrada, então ou postarei o capítulo bem cedo ou só a noite quando chegar em casa. Já peço desculpas de antemão por qualquer atraso ou demora para responder 💕
Um beijo para vocês e até segunda-feira que vem!
Não sejam mordidos, ainda tem muita coisa para acontecer.
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