Capítulo 8.
Helena foi a última a pular, ágil como um gato. Instruiu a todos com paciência e, sem maiores problemas (além da blusa meio rasgada de Ana), nosso grupo conseguiu jogar suas mochilas para o outro lado e escalar o portão.
Carlos, Guilherme e eu estávamos atentos aos zumbis na rua. Dois se aproximavam vagarosamente, vindo da direção para a qual precisaríamos seguir. Outros dois estavam mais afastados, deitados no chão como moribundos, mas ainda vivos. Até então não haviam se dado conta de nossa presença.
Era difícil ter certeza de como seus sentidos funcionavam. Suas capacidades de percepção pareciam suficientemente humanas: com dificuldade de ouvir sons distantes e sem qualquer olfato ou visão sobrenaturais. Se fossem como nos filmes, super predadores com sentidos mais aguçados, provavelmente já estaríamos mortos.
— Vamos, rápido. — Guilherme olhou para o resto do grupo, sua voz pouco mais do que um cochicho: — Não é preciso bater neles até pararem, só se certifiquem de dar uma porrada boa o suficiente para afastá-los ou derrubá-los, ok?
Ninguém vocalizou a resposta, apenas assentimos com a cabeça.
Começamos a nos mover: eu e Helena na frente, com Melissa entre nós. Estávamos "armadas" com os cabos de vassoura, assim como Ana, Guilherme e Carlos, que cuidavam da parte de trás. No meio do grupo, Victória e Hector acompanhavam nosso ritmo de maneira nervosa.
Apesar de tentar lutar contra aqueles pensamentos, era impossível não questionar como eu havia chegado até ali, portando uma arma e encarregada de guiar um grupo que se formara a partir de mim. Que circunstâncias tornaram-me forte o suficiente para isso? Não havia motivos para mentir: eu nunca fui uma pessoa particularmente forte ou corajosa — eu era só uma adolescente! Gostava de ler romances de terror, mas nunca pensei que viveria um.
Senti minhas mãos ficando úmidas contra a madeira do cabo. Qualquer ideia que me tirasse do estado de espírito minimamente adaptado à tarefa que me fora designada merecia ser afastada, por enquanto.
Nos movemos pouco, menos que meia quadra, quando meu coração começou a bater mais forte (era possível?). Uma daquelas coisas começou a cambalear em minha direção. Era uma mulher com as roupas rasgadas e manchadas de sangue. Um óculos quebrado balançava, pendurado em uma de suas orelhas por um cordão. Os cabelos eram curtos, crespos e estavam brancos pela idade.
Pensei que poderia deixar os meninos cuidarem daquele, mas não havia como: conforme se aproximava, a empolgação da caçada acelerava seu ritmo, e já estava a pouco menos de sete metros de mim.
— Rebeca! — Carlos sussurrou, com um tom de voz firme, como se quisesse me tirar de um transe.
Trouxe o cabo de vassoura o mais para trás possível, buscando força e impulso para me certificar de que um golpe bastaria — e antes que ele pudesse chegar muito perto de mim. Assim que se aproximou o suficiente, usei toda a força nos meus braços para acertar um golpe no meio do peito dela, aproveitando a falta de equilíbrio em seu passo para lançá-la para trás. Por muito pouco não soltei a vassoura no processo, um grunhido de esforço vazando pelos meus lábios.
Meu Deus. Como era difícil.
Consegui afastá-la, mas o esforço de lançar para longe um peso de 60, talvez 70 quilos, mostrou-se gigantesco. Tive certeza que só com aquele golpe meus braços já doeriam no dia seguinte, nem queria imaginar se precisasse desferir mais!
Ao meu lado, Helena afastou da mesma maneira um homem novo, em um estado parecido com a minha mulher. Com um golpe mais certeiro e força bem aplicada, ela conseguiu jogá-lo para longe com menos esforço.
— Você já fez isso antes? — perguntei, baixo, ignorando o fato de que buscar uma conversa no meio daquele caos poderia ser completamente irresponsável.
— Eu luto bojutsu, uma arte marcial japonesa onde se utiliza bastão — explicou, um pouco ofegante pelo passo que mantínhamos. — Isso é bem diferente, mas eu tenho um pouco de prática com um bastão. Ou algo parecido.
A forma como ela segurava o cabo de vassoura com ambas as mãos cuidadosamente separadas me passava confiança. Quando se afastou para espancar a cabeça de uma daquelas criaturas, percebi como era precisa em seus movimentos.
Carlos e Guilherme nos davam cobertura na parte de trás e mantivemos essa formação nas duas ruas seguintes, variando entre caminhar e correr, até que o número de zumbis começou a aumentar. Sequer reconheci a frieza (ou sorte) que me dominou quando dois deles vieram em minha direção: precisei afastar o primeiro com a ponta da vassoura, ao mesmo tempo que amparei o segundo com um chute na altura da barriga. O golpe não fez mais do que atrasá-lo, mas Helena foi rápida em fazer aqueles segundos valerem quando o golpeou em cheio na cabeça, seu cabo de madeira se quebrando em dois com a força do golpe.
— Merda! — ela murmurou, encarando os pedaços quebrados em sua mão antes de erguer os olhos para mim: — Você tá bem?
— Tô. Fica perto de mim! — respondi e quase inconscientemente comecei a acelerar o passo. — Gente, tá começando a vir mais!
— Melissa, o quão longe é seu apartamento?! — perguntou Helena.
Durante todo o nosso trajeto, recusei-me a olhar para trás, temendo a frustração de ver que todo o nosso esforço provavelmente só havia nos afastado três ou quatro quadras do colégio. Antes de pisar nas ruas, acreditava que chegaria em casa antes do anoitecer, mas a cada segundo a ideia parecia se aproximar mais de um delírio.
— A gente... — Melissa tentou falar, ofegante. — V-vira na próxima esquina. É...
— Vira a próxima esquina, é duas quadras para frente — gritou Ana, que ainda tinha bastante fôlego. — Tá quase! É melhor vocês pararem por lá... — Sua frase foi interrompida por um grito quando um morto-vivo se aproximou demais, pegando-a de surpresa. Carlos foi ágil ao defendê-la, desferindo um golpe com seu cano de metal na cabeça da criatura, lançando sangue para todo o lado.
Apesar de tentada a me esconder no primeiro local minimamente seguro que aparecesse, esforcei-me para ignorar a sugestão de Ana. O sol ainda estava no céu, e aproveitar cada segundo era a minha única oportunidade de voltar para casa. Era impossível saber se o dia de amanhã seria pior, mas eu não me considerava uma pessoa otimista.
Distraída como estava, sequer prestei atenção ao barulho que aumentava enquanto nos aproximávamos da avenida. Os gritos que ouvi no colégio não eram nada comparados aos berros caóticos que chegaram aos meus ouvidos quando viramos a última esquina em direção ao prédio de Melissa.
— N-não pode ser... — Mesmo que eu estivesse diante do inferno, foi a completa desesperança nas palavras que saíram da boca de Melissa que arrepiaram cada pelo do meu corpo, seguido pelo mesmo gemido de desalento que antecedera seu choro outras vezes.
Aquela avenida fazia parte de um bairro nobre e seguia até a beira-mar. Em dias normais, nas calçadas limpas entre os jardins bem-cuidados dos edifícios de luxo, pessoas bem vestidas passeavam com seus cachorros de raça ou caminhavam a passos rápidos em direção aos seus compromissos.
Agora, diante de nós, restava uma caricatura apodrecida daquele lugar, pintada em vermelho e horror. A avenida estava lotada, diferente das que atravessamos até então — e agora era claro o porquê de estarem tão vazias. Dezenas de pessoas corriam e lutavam contra mortos ensandecidos, num espetáculo onde gritos misturavam-se a rosnados e mordidas interrompiam preces por Deus. Alguns eram comidos vivos por grupos de zumbis, ainda em prantos ou já desacordados devido aos ferimentos rasgados em seu corpo. Veículos tombados e rastros de destruição se misturavam ao sangue. Uma van estava enterrada num muro em ruínas bem a nossa frente, permitindo que mortos-vivos invadissem o edifício.
Aquele vislumbre do inferno congelou meu corpo e, pelos sons que se espalharam ao meu redor, o choque também pareceu atingir a todos os meus colegas.
Eu poderia ter ficado para sempre admirando e temendo aquele cenário maldito, paralizada até ser atacada e comida, e enfim descansando em paz. Mas um barulho específico me despertou desse devaneio.
O som que antecedia o choro histérico, fungadas que se misturavam a gemidos e lamentos de desesperança. Olhei para meus colegas, suas faces transfiguradas em caretas de horror (como a minha deveria estar) e o medo do que elas significavam reacendendo meus sentidos.
Apesar de tudo, sobrevivemos até ali. O que tínhamos não era perfeito: éramos apenas adolescentes com armas improvisadas, guiados pelo otimismo ou completa ingenuidade, mas entendi que se apenas um de nós fosse dominado pelo medo e desistisse, provavelmente seria nosso fim. Não restava muito além da esperança de rever quem amávamos, ou de que aquele horror chegaria ao fim... Mas era o que restava para nos agarrar. Se perdêssemos aquilo, só sobraria o desespero.
— Corram! — berrei, sentindo o vento que balançava meu cabelo trazer um cheiro insuportável de podridão e sangue. Algumas cabeças dos monstros decrépitos viraram para minha direção. — Vamos correndo, antes que eles venham atrás de nós!
Chamei-os com gestos exagerados enquanto começava a correr, torcendo para que eles voltassem a si. Ou pelo menos fossem reanimados pela adrenalina do perigo iminente.
— Corre gente, corre! — A voz grossa de Carlos ecoou meu comando e ouvi o som de pares de tênis contra o chão, conforme eles começaram a me seguir.
Tentei olhar para trás, mas a cortina negra que eram os meus cabelos prejudicava minha visão. Quando voltei a olhar para frente, foi a tempo de ver que estava indo em direção a um zumbi. Ergui meu bastão, acertando-o em cheio no rosto e ignorando a dor nos braços para tentar correr mais rápido.
— Qual deles, Melissa? — gritei, sem me importar em controlar meu tom agora que acelerávamos para o meio do caos. Precisei parar para olhar a garota de cabelos loiros que corria, ofegante, em minha direção.
— A... Aquele! — Apontou. — O de vidro verde.
O prédio ao qual se referia era grande, imponente e de concreto branco, cercado por um vidro de aparência resistente e reflexo verde-água. Com meu lapso de noção de distância, deduzi que estava a 70 metros.
O resto da avenida seguia em seu fervor enquanto as demais pessoas se esforçavam para fugir ou acabavam brutalmente devoradas. A cada segundo, a cor escura do asfalto se perdia mais sob manchas vermelhas. Quase ninguém parecia particularmente interessado no grupo de jovens uniformizados, dando prioridade às suas próprias vidas. Ainda assim, ouvi pedidos de ajuda. Humanos semi-destroçados esticando os membros em busca de uma salvação que não podíamos oferecer.
— Ah, que merda! — Ouvi um rosnado saindo da boca de Carlos conforme ele parou e virou-se abruptamente para trás. Segui o seu olhar, buscando um motivo plausível para aquilo.
Não foi difícil encontrar o que prendia sua atenção: Victória ficou para trás. Estava de joelhos, as mãos espalmadas no chão em busca de apoio. Seu rosto estava desesperado, mas ela não olhava para o caos ao seu redor, ou para os zumbis que se aproximavam. Era impossível saber o que havia de errado com ela.
— VICTÓRIA! — Melissa gritou, a voz estridente atraindo a atenção de todos os mortos ao nosso redor.
Minha visão foi atraída por um deles, um homem jovem, tão próximo dela que se esticasse os braços conseguiria agarrar-se em seus cabelos. Tentei gritar para chamar sua atenção, mas fui interrompida por Guilherme, ágil, pulando na minha frente e acertando a cabeça do monstro com um golpe limpo. Mais gotas de sangue pintaram o asfalto.
— Inferno! — resmungou Carlos, mas para minha surpresa, iniciou uma corrida na direção de Victória. Foram segundos até que a alcançasse, mas observar aquela cena transformava cada batida de coração em uma década. — Caralho, você está bem? — Ouvi sua voz, assim que ele se aproximou dela.
Um baque surdo estourou ao meu lado e senti sangue quente voar cair em meu rosto. Meu coração disparou, mas logo entendi que o que passava a centímetros de mim era o resto do bastão de Helena, quem havia acabado de me proteger.
— Presta atenção! — advertiu.
Atrás dela, Hector tentava manter duas criaturas afastadas, empurrando-as com uma placa de metal que conseguira sabe-Deus-onde.
Controlei meu pânico para ajudar meus colegas enquanto Carlos tirava a mochila e ajudava Victória a subir em suas costas. Ele não foi cuidadoso, mas foi rápido o suficiente para voltar com nossa colega em poucos segundos. Assim que ergueu seus olhos e notou que havíamos parado junto com ele, sua expressão se transformou em raiva:
— Seu idiotas, por que estão parados?! — Berrou. — Corram!
O som de seu grito esquentou meu sangue, bombardeando meu corpo com um novo jato de adrenalina que tornou possível ignorar a dor nas minhas pernas exaustas quando comecei a correr. Aquela dor aguda na lateral do meu corpo, típica de cansaço, já se fazia presente, mas não havia tempo para reclamar.
Quando chegamos até a porta de vidro do prédio, Melissa atirou-se por entre nós, tentando chegar ao interfone. O muro estava sujo de sangue, mas do lado de dentro não havia sinal daquelas criaturas.
Carlos foi o último a chegar, ofegante e suado, carregando Victória nas costas. Ela parecia mal, com os olhos desfocados e cabeça pendendo para os lados. Infelizmente, aquela não era hora de parar para ajudá-la.
— Rápido, Melissa, eles estão se reunindo! — gritou Helena, sua voz terminando em um gemido abafado conforme afastava um zumbi com um chute.
— O porteiro não atende! — A loira gritou de volta, os olhos arregalados em desespero. — Eu não sei se eu lembro... — Voltou-se para o painel de botões, começando a digitar combinações de números.
Podia ter durado dois segundos ou dois anos, eu não saberia dizer. Acho que Melissa errou a combinação somente uma vez, mas ainda assim, logo nos vimos cercados de mortos vivos esfomeados.
Assim que o barulho abençoado da trava da porta sendo liberada ecoou, Melissa e Ana atiraram-se para dentro, seguidas de Carlos e Victória. Enquanto eles entravam, precisei ajudar Helena a afastar um trio que havia se aproximado demais, dando tempo para que todos conseguissem se proteger atrás dos muros de vidro do prédio.
— Anda, anda, entrem! — Berrou Guilherme e senti seu toque quente se fechando em volta do meu braço. Virei para trás, almejando segui-lo, mas um grito que eu nunca esperaria ter ouvido irrompeu no silêncio da esperança, extinguindo-o.
Virei a tempo de ver uma criatura cravando os dentes na pele do pescoço de Helena com tanta agressividade que imediatamente torrentes de sangue começaram a correr dos buracos recém formados. A boca da garota estava escancarada num grito torturado e os pedaços do cabo de madeira que ela ainda carregava caíram no chão.
— NÃO! — gritei, tentando alcançar a mão que Helena estendia. Ela cambaleou, buscando por mim.
O alívio de sentir o calor de seus dedos contra os meus foi imediatamente substituído pelo desespero quando uma força descomunal me puxou para morte. Outro morto agarrou-se nos ombros de Helena no momento em que seguramos as mãos, puxando nós duas em sua direção.
Um agarrão no meu pulso impediu que eu fosse levada. Guilherme tentava me puxar de volta, transformando aquilo num cabo-de-guerra pela minha vida.
— Merda! — berrou Ana, os olhos arregalados em choque ao ver, por trás do vidro, a outra segundanista que nos acompanhou até agora, infinitamente mais competente do que qualquer uma de nós, sendo devorada por um grupo crescente de mortos.
— Rebeca, você tem que soltar! — Ouvi a voz de Hector, mas ela parecia soterrada pelos gritos que eu ainda ouvia do lado de fora do muro de vidro. Eu nem sabia dizer se ainda segurava Helena, ou se o seu aperto no meu pulso que não cedia, mesmo enquanto criaturas pútridas arrancavam pedaços de sua pele.
Era impossível desviar meus olhos da visão grotesca que incapacitava todos os meus sentidos. Quis me afastar, soltar o braço daquele aperto férreo e correr para a segurança, mas meu próprio corpo não respondia. Eu não sabia se minha visão ficava avermelhada ou era apenas uma impressão causada por tanto sangue derramado à minha frente.
A dor pareceu rasgar meus braços quando, com um puxão final, Guilherme me desvencilhou da estudante. Ainda dominada pelo choque, fui praticamente arrastada por ele para dentro dos muros de vidro, tropeçando no degrau da guarita e levando nós dois ao chão. Caí de barriga sobre ele, o ar sendo expelido com força dos meus pulmões.
Um baque forte atrás de mim indicou que a porta de vidro foi fechada logo após a nossa queda, separando-nos para sempre de Helena.
Nota da autora:
Boa noite, sobreviventes...
Se alguém ainda gostava de mim, acho que é agora que o amor acabou, né? 😕
Eu amo tanto esse capítulo 🖤 Um dos meus maiores objetivos com esse livro é ser capaz de passar para os leitores o real horror que seria sair de casa e ver um mundo dominado por zumbis, sangue e medo. Acho que ele ficou 300x melhor depois da revisão.
Por favor, não esqueçam de deixar seus votos e seus comentários me contando o que estão achando! Essa é a melhor parte de ter voltado para o Wattpad.
O próximo capítulo vem daqui a pouco... Fiquem vivos até lá!
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