Capítulo 6.
Imediatamente amaldiçoei a minha decisão de gritar.
Não contentes somente em arrancar pedaços de carne da minha amiga estirada na escadaria, três deles viraram as cabeças grotescas e começaram a subir em minha direção.
Não eram rápidos, mas isso não os tornava menos assustadores.
— REBECA? — Ouvi a voz de Victória ecoar. — LAURA?
— Eu estou bem! — gritei de volta, sem saber como informar o estado de Laura.
Virei-me para correr em busca do meu grupo, mas o medo que me gelava os ossos também dificultava os movimentos. Tropecei nos degraus, deixando um gemido escapar quando bati com força canela. Só então percebi como estava tremendo. A barra em minhas mãos emitia um som metálico cada vez que batia no chão, graças à falta de instabilidade com a qual eu a segurava.
A adrenalina despertada pela morte iminente me ajudou a vencer o medo. Levantei-me como pude, cambaleando pelos degraus até conseguir vencer o primeiro lance de escadas e olhar para trás.
Um deles estava bem perto de mim. O quão próximo ele ficou de me agarrar enquanto eu estava caída?
Senti um calafrio sacudir o meu corpo e apertei mais os dedos em volta da barra de metal, segurando-a com ambas as mãos agora. Encarei a coisa que se aproximava, atentando-me aos seus movimentos: não era veloz, mas subia, determinada, grunhindo e com os olhos fixos em mim. Era uma garota e estava com o rosto intacto, por isso reconheci-a de vista, mas não sabia o seu nome. Evitei pensar nisso enquanto levava a barra com força para trás, buscando impulso. Girei o corpo para acertá-la no peito com toda a força que pude.
O golpe fez meus braços doerem, mas funcionou: ela foi lançada para trás e, sem conseguir encontrar equilíbrio, caiu pelas escadas, aterrissando violentamente no chão. Ouvi um som grotesco quando sua cabeça se encontrou com o concreto, espirrando sangue pela lateral. Meu estômago se contorceu.
Preparei-me para desferir outro golpe quando ela levantasse, mas a ex-estudante permaneceu completamente imóvel, o pescoço torcido em um ângulo bizarro. Apertei a barra com força, preparada para um súbito ataque de fúria daquela coisa, mas nada aconteceu.
Até outros dois monstros virarem a curva, entrando na minha linha de visão. Não sei de onde veio a coragem que me levou a enfrentar aquele, mas decidi não desafiar a sorte contra dois e disparei escada acima.
Assim que virei a curva seguinte, senti algo vir ao meu encontro com força e minha cabeça latejou quando a bati em algo duro. Precisei me segurar para conter um grito de pavor e tentei me afastar, mas quando olhei para cima, encontrei os olhos de Guilherme.
— Meu Deus, desculpa Rebeca! — falou, segurando o próprio queixo com uma mão e meu ombro com outra. Eu me sentia zonza depois daquele esbarrão. — Tá tudo bem com você? Foi atacada?
— Não — arfei, agradecendo mentalmente pelo apoio dele. — Eles pegaram a Laura. C-comeram ela... Eu fugi. Bati em um, ele caiu de cabeça no chão e não se mexeu mais... — Vomitei as palavras com pressa, dominada pela adrenalina.
— Puta merda! Que bom que você tá bem... — Quando ouvimos os rosnados, a mão de Guilherme envolveu meu pulso. — Vamos, sobe! — Então colocou o braço em volta de mim, guiando-me pela escada. A sensação de atordoamento permanecia em meu corpo, fazendo com que eu subisse em ziguezague.
O alívio de rever o sol avermelhado de final de tarde me dominou quando viramos a curva do último lance de escadas. Todos nos esperavam do lado de fora, mas Victória pareceu repentinamente desperta do medo que a dominava quando me viu e correu em minha direção para perguntar se eu estava bem. Quando coloquei a mão no lugar onde bati a cabeça, senti um líquido quente.
— Acho que sim, só estou ton-
— Anda, porra! — Berrou Carlos — Vocês querem morrer?
Guilherme olhou com reprovação para ele, mas manteve as mãos em volta de mim e me guiou para fora. Segurei o pulso fino de Victória, chamando-a para que viesse também.
— Pode fechar, a Laura não conseguiu. — A voz de Guilherme me acertou junto a um calafrio e percebi que lágrimas quentes escorriam pelo meu rosto.
Assim que passamos pela porta, fecharam-na com outro estrondo. Tudo girava ao meu redor. Quando senti uma súbita falta de equilíbrio, fui amparada pelo garoto gordinho de óculos e tentei agradecer.
— Anda, me ajudem a barricar isso! — Ouvi o chamado do professor Rogério e o apoio do menino foi embora. Não prestei atenção no que estava acontecendo e somente sentei no chão, fechando os olhos enquanto tentava me acalmar. Novamente, o barulho da barra de metal contra o chão indicou que eu tremia. Só naquela hora percebi que eu ainda estava carregando ela.
— Rebeca, o que houve com a sua cabeça? — Perguntou Victória, ajoelhando-se ao meu lado. Senti que ela pressionou algo contra meu machucado e gemi de dor.
— Eu... Eu esbarrei no Guilherme — respondi, abrindo meus olhos e encontrando suas íris escuras próximas a mim. Lentamente, o mundo parava de girar.
Os garotos estavam arrastando um armário de metal corroído por ferrugem até a porta, enquanto Carlos e Davi lutavam com o corpo para mantê-la fechada. Ana se juntou a eles, até que conseguiram barricar a porta com o armário. Então começaram a buscar mesas e cadeiras que pudessem dar mais suporte. Senti-me um pouco inútil naquele momento.
— Que bom que você tá bem. O que aconteceu com a Laura? Ela não conseguiu? — Finalmente percebi que o que Victória pressionava contra minha testa era um pedaço de gaze.
— Obrigada — murmurei, afastando a mão dela com a minha para que eu mesma segurasse a gaze. — Estou melhor, acho que fiquei um pouco zonza. — Quando abri a boca para falar novamente, encontrei muita dificuldade em prosseguir: — A Laura... Quando eu cheguei eles já estavam... Ela nem se mexia. Acho que ela estava atordoada pelo choque e tentou... — As lágrimas não paravam de descer, e era como se sufocassem minha fala.
Laura não era mais do que uma colega. Na verdade, naquele momento voltei a pensar que uma de minhas melhores amigas já deveria estar morta e eu não fazia ideia de onde estava a outra. Aquilo me acertou como o golpe que desferi há segundos atrás. Já era quase final de tarde do dia do apocalipse e eu nem mesmo pude passar por um luto decente, sendo obrigada a lutar pela minha vida desde então. Tremi, sentindo as lágrimas correrem. Que tipo de amiga eu era?
Senti os braços de Victória contornando o meu corpo, oferecendo-me algum consolo. Apenas esse gesto foi o suficiente para desencadear uma onda incontrolável de choro. Eu não sabia se a minha amiga estava bem, meu último contato com a minha avó não me deu nenhuma segurança e eu nem sabia se teria qualquer chance de encontrar meu pai ou irmão novamente.
Meu Deus, Mei deveria estar tão assustada.
Apertei Victória com mais força.
Só lembrei que o tempo ainda passava quando Carlos se ajoelhou, de frente para mim. Ele parecia um pouco mais calmo, mas ainda foi direto:
— Ela já não tava bem, não é? Você acha que ela simplesmente não aguentou o choque? — perguntou e, com as palavras prejudicadas pelo choro, recitei para ele nossa última conversa, onde ela mencionou que sua mãe vinha lhe buscar pouco antes de descer para a morte. — Entendi. Sinto muito Rebeca, sei que não é fácil. Você foi muito corajosa em tentar salvá-la, mas não pode desmoronar agora. Vamos precisar continuar, ou você não vai conseguir chegar em casa. — Ele apontou com a cabeça para a escada de emergência e logo entendi do que ele falava.
Carlos tinha razão. De nada adiantava chorar como uma criança. Se eu estava preocupada com minha família, era justamente por isso que eu precisava sair dali logo. Respirei fundo, tentando conter as lágrimas, e limpei o rosto nas costas do braço.
— Obrigada. E obrigada também, Victória — Sorri para ela, desvencilhando-me do seu abraço e ficando em pé novamente.
Busquei alguma distração, uma situação de maior urgência, para tentar sufocar a dor. Quando olhei ao redor, encontrei todos em pé, próximos à borda da cobertura que dava visão para o centro da cidade. Apenas Carlos e Guilherme estavam afastados, conversando baixinho.
Ajudei Victória a levantar e nos juntamos aos outros.
Nem em meus piores pesadelos presenciei algo tão tenebroso quanto a sensação que dominou o meu corpo naquele instante.
Nosso colégio ficava em uma parte elevada da cidade e tínhamos uma visão privilegiada da cobertura, que seria bela em qualquer outra ocasião. Hoje, porém, este camarote só nos dava uma perspectiva pior do fim do mundo que se estendia sob nós.
A primeira coisa que percebi foi que havia muita fumaça. Vários focos de uma espessa cortina negra subiam aos céus, provindos de chamas altas de incêndio. Quase todas as ruas que víamos encontravam-se completamente dominadas por carros parados em fila indiana — só então o barulho das buzinas tornou-se evidente. Estas eram as situações boas. Nas outras, engavetamentos engoliam completamente a estrada, deixando corpos ou vítimas em situações onde o socorro sequer poderia alcançá-los.
Mas o pior eram as pessoas correndo. Como milhares de formiguinhas desesperadas, fugiam de seres infernais, estes tão parecidos com as presas que perseguiam. Naquele cenário profano, o caos era a única lei.
Ao longe da cidade, o tapete azul do mar se estendia até o horizonte, atrevendo-se a estar calmo e belo diante daquele espetáculo horrível. Acompanhei com os olhos a sua extensão, até ver a ponte que ligava o centro da nossa cidade, onde nos encontrávamos, ao continente. Tremendo de desespero, constatei como estava completamente engarrafada, sem a menor possibilidade de travessia em veículos.
— Eu n-não... — começou Melissa, caindo imediatamente em um choro frenético. Ana tentou dar algum consolo, mas poucos segundos depois apenas acompanhou seu desespero. Até mesmo nos olhos do professor era possível ver lágrimas se formando.
— Calma, a polícia já deve estar ciente à esta altura. Vão mandar o exército para ajudar, com certeza — Rogério tentou, sem qualquer crença na voz: — Vamos ficar aqui, todos nós. Vou tentar contato com a polícia — Ele tirou o celular da calça, mas seu olhar atordoado apenas se perdeu nele, incapaz de saber o que discar.
Ver o terror se espalhando como fogo em palha, os olhos arregalados refletindo o inferno, foi o que me despertou do torpor. Se queria chegar em casa, não poderia permitir que o pavor congelasse meus movimentos, independente dos horrores que o destino reservara para mim. Apesar do cenário catastrófico, não poderia ficar esperando uma ajuda que nunca chegaria.
Fui em direção à escada de emergência, para conferir como estava lá embaixo. Sua estrutura de metal balançava com o vento, mas naquele momento era a última coisa que me assustava. Para a minha surpresa, o bosquinho do colégio estava completamente tranquilo, parecendo um pedaço intocado do paraíso. Em um devaneio curto e bobo, pensei em ficar lá para sempre.
— Você não está pensando mesmo em ir, né? — perguntou Rogério, descrente. — Rebeca, você viu como está a cidade? Você vai se jogar nesse caos sozinha? Eu não vou deixar! — Tentou parecer autoritário, mas uma gagueira sutil atrapalhava.
— Com todo o respeito, professor, não posso ficar aqui. Eu preciso ir para casa. Minha avó e Mei podem estar em perigo e preciso tentar falar com meu pai!. Mesmo se quisesse, eu não conseguiria ficar aqui sentada esperando resgate. Já passei pelo inferno hoje e passarei por quantos mais forem necessários. — O discurso teria sido bonito, não fosse o tom nem um pouco sutil de pavor. Ainda assim, mantinha a decisão que carregavam aquelas palavras.
— A gente vai junto com ela — Guilherme chegou mais perto de mim. Se nosso pequeno grupo já parecia chocado com a minha debandada, a surpresa beirou a descrença ao verem que eu estava acompanhada.
— Minha casa também fica depois da ponte, acho melhor tentar chegar lá antes que as coisas piorem — falou Carlos, não se importando em trazer palavras de desesperança.
— Acho burrice ficar aqui — disse a garota de cabelos crespos.
O silêncio se instaurou, enquanto todos nos olhavam como se fossemos loucos. Talvez estivessem certos.
— E-eu... Vocês podem me deixar em casa? — Ouvimos uma voz baixinha e fraca vinda de trás do grupo. Melissa, ainda fungando e limpando os olhos com as costas da mão, aproximou-se. Os cabelos loiros estavam bagunçados e ela parecia acabada. — Eu moro aqui perto. — Apontou para algum lugar abaixo da escola, sem precisão. — É a caminho do centro, n-na Avenida das Torres — Fungou novamente e olhou para nenhum de nós em especial, os grandes olhos molhados de lágrimas.
Carlos e Guilherme se entreolharam. Eu sabia que eram amigos de Melissa, mas preparei-me para abandonar o grupo caso resolvessem tomar uma decisão sozinhos. Ainda não tinha certeza se ter companhia seria mais seguro ou perigoso, mas definitivamente tinha os meus próprios interesses e não aceitaria ficar com quem não se importava com eles.
— O que você acha? — Carlos se virou para mim, interrompendo meus pensamentos.
Satisfeita em ser consultada, examinei Melissa. Naquele momento, constatei como a frieza que eu tentava transparecer não era real: ver o medo em seus olhos era o suficiente para despertar minha empatia. Independente de parecer afetada demais para continuar, ainda era um ser humano que, assim como eu, tinha a própria família e um lugar para onde voltar. Independente de talvez ser o mais sensato, eu não poderia deixá-la para trás.
— É no caminho — murmurei e olhei para Helena — não vejo porquê não.
Ela deu de ombros.
Melissa olhou diretamente para mim dessa vez:
— Ana e Victória podem ir junto? A casa da Vic fica quase do outro lado da ilha, mas os pais dela são amigos dos meus, não tem problema ela ficar lá — Depois ela se dirigiu para Ana: — E eu sei que você mora do outro lado da ponte, mas pode ficar lá em casa também.
Senti a incerteza se espalhar conforme aquele grupo aumentava. Temi que Carlos ou Guilherme finalmente se opusessem ou que o professor Rogério tentasse novamente impedir nossa partida, mas não foi nenhum deles que quebrou o silêncio:
— Eu vou junto. — Anunciou o garoto gordinho, outra pessoa que eu ainda não descobrira o nome. Os cabelos castanhos um pouco comprido demais voavam ao vento e ele tinha uma expressão séria no rosto. — Minha casa é do outro lado da ponte, também não acho que faça sentido ficar aqui esperando.
Ninguém o havia convidado, mas aparentemente concordava que era melhor tentar a própria sorte fora do colégio do que esperar por ajuda em meio ao caos que se espalhava. Carlos e Guilherme não desaprovaram o aumento do grupo e a garota permaneceu quieta.
Rogério e Davi nos olhavam como se fôssemos loucos. Faber, enquanto isso, permanecia paralizado, olhando para a cidade em chamas. Era impossível saber o que se passava em seu coração, longe da família, em um país cujo mal dominava a língua. Pensei em convidá-lo, mas não tinha nenhuma garantia de que não estaríamos nos matando também.
Agora, próximos a mim estavam Carlos, Guilherme, Melissa, Victória, Ana, a garota crespa e o menino de óculos.
— Sei que é um momento estranho para essa pergunta, mas quais são os seus nomes? — perguntei para eles.
— Helena — respondeu a garota de pele tão escura quanto seus olhos. — Sou do segundo ano. — Como não perguntou pelos nossos nomes, presumi que já nos conhecesse. Era comum que os alunos mais novos conhecessem os veteranos.
— Hector — respondeu o menino de óculos. — Ouvi te chamarem de Rebeca. É isso, né?
Assenti para ele.
— Agora que as apresentações acabaram, vamos? — Guilherme chamou nossa atenção.
Olhei para ele, mas percebi que todos os outros também tinham os olhos cheios de expectativa e nervosismo em mim. Por algum motivo, achavam que eu liderava aquela partida.
E eu só podia rezar para que tivesse tomado a decisão certa.
Nota da autora:
Oi, sobreviventes 🖤
De apavorada trancada em um banheiro para líder de um grupo... Boa sorte, Rebeca.
Lembrando que o próximo capítulo vai ser postado daqui a pouco!
Mesmo assim, não sejam mordidos!
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