Capítulo 54.
Ninguém questionou quando voltei, completamente encharcada, o corpo tremendo e o rosto marcado pelo choro. Passei por Guilherme, encolhido em uma cadeira na varanda. Talvez ele nem tenha reparado na minha presença, mas eu também não pude me ocupar com a dele.
Alana cobriu o corpo com um lençol que já estava manchado de sangue. Eu não sabia onde Hector, Melissa e Victória estavam.
Com a ajuda de Tom, levamos para baixo o cadáver de Carlos, deixando-o em um quarto fora do caminho pela noite. Vi os olhos do homem passarem pela sala bagunçada, com copos e garrafas jogados, mas ele não falou nada sobre aquilo e preferiu conferir se todos estavam bem (na medida do possível).
Havia muito sangue para limpar e eu e Alana assumimos a maior parte da tarefa. Levamos horas, mas ela permaneceu ao meu lado até o céu escuro começar a clarear. Conversamos pouco, mas a companhia silenciosa já era um bom consolo.
— O que você acha que devemos fazer com o... Corpo? — Ela me perguntou em determinado momento, enquanto esfregávamos o piso.
— Queria atirar ele na pilha de zumbis, mas acho que vou cavar uma cova. Talvez o melhor seja fazer um enterro decente para acalmar os ânimos... Mesmo que nenhum dos outros...
Deixei a frase morrer no ar, apenas querendo evitar pensar na crueldade daquele mundo.
— Eu... Sinto muito a respeito do Guilherme. — Alana sussurrou.
— Por termos brigado ou por ele ser um babaca? — Sorri, vontade.
— Acho que os dois... — Ela fingiu distrair-se com uma particular mancha de sangue, mas eventualmente continuou a frase. — Não quero defender ninguém, mas todos estavam em choque, Rebeca. Ainda podem repensar suas atitudes. Você vai tentar falar com ele?
— Pretendo, mas outra hora. — Respondi. — Mas não sei se consigo ser muito mais compreensiva do que já fui. Ainda não consigo acreditar nas coisas que ele disse... E não vou fingir que não estou aliviado que aquele merda tenha morrido, mesmo que tenha sobrado para mim limpar seu sangue.
— Nem acho que você deva, Rebeca. — Ela deu um sorriso fraco para mim. — Você foi muito forte hoje. Sinto muito que tenhamos que passar por essa situação, mas me deixa um pouco aliviada saber que temos alguém como você. Eu nem cheguei a pensar em dar a notícia para os Rosa... Pode parecer pouco vindo de mim, que ainda tenho medo dos zumbis, mas...
— Eu ainda tenho medo. — Murmurei.
— Desculpa, o que? — Ela me olhou, confusa.
— Dos zumbis. Eu ainda tenho medo também.
Alana assentiu.
— De qualquer forma, fico feliz em ter uma mulher forte como você ao meu lado. Pode parecer loucura, mas eu não estou nem um pouco surpresa que, mesmo com estes canibais à solta, ainda precisemos ter medo de coisas como... Isso.
Concordei com ela, com a voz repleta de pesar. Não havia o que adicionar. Eu sabia que sempre teríamos um medo a mais quando deitássemos nossa cabeça no travesseiro e aquela noite estaria marcada a ferro e fogo no fundo de cada um de nós. Principalmente...
— Acho que você deveria falar com Melissa. — Alana sussurrou, quando enfim terminamos a limpeza.
✘
A manhã esforçou-se para trazer um pouco de luz, mas as nuvens mantinham-se firmes e cinzentas. O dia parecia úmido demais, das lágrimas que derramamos durante a noite.
As olheiras de Melissa estavam fundas e seu rosto inchado de choro. Estava limpa depois do banho e usava roupas simples. Seus cabelos caíam úmidos pelas costas. De nada lembrava a Melissa alegre e bonita que sempre animava todos.
Sentei ao seu lado no chão, de frente para a parede envidraçada. Ainda estava amanhecendo, e provavelmente restava algum tempo até todos acordarem. Abri e fechei a boca algumas vezes, pensando no que deveria falar.
— Você parece um peixinho. — Ela repetiu, baixinho, a mesma coisa que disse naquela noite em minha casa. Não consegui conter um sorriso.
— Não tem o que dizer nessa situação, né? — Perguntei, já sabendo a resposta.
Ela movimentou a cabeça de um lado para o outro, desanimada. Decidi ficar em silêncio ao lado dela, oferecendo qualquer tipo de apoio que a minha presença pudesse significar. Só não queria que ela se sentisse sozinha.
— Quando ele fez da primeira vez, eu nem parei para pensar direito no que aquilo significava, sabe? — Para a minha surpresa, não precisei falar nada para que Melissa começasse a falar. — Do nada, ele me beijou e eu só fiquei ali, sem reação. Da segunda vez eu disse que não queria, mas ele não parou de insistir. A princípio ele não me obrigou, sabe, fisicamente, então... Eu preferi achar que só não tinha sido clara o suficiente. Só que continuou... Mesmo quando ele realmente me segurou, ainda tentei inventar uma desculpa pra mim mesma. Você não pensa nas palavras "à força". Nunca acha que vai acontecer com você...
Sua voz estava rouca e ela falava tão baixo por causa do machucado na garganta que era difícil de ouvir:
— Sabe de uma coisa? Com certeza não é a primeira vez que Carlos faz isso. Na época do colégio, algumas meninas falavam que ele era difícil de lidar e não aceitava ouvir 'não'. Só que a gente nunca associa a um abuso. Parece uma palavra forte demais... Sabe, eu o conhecia antes, mas só nos aproximamos de verdade quando viramos um grupo de sobreviventes. No começo, achava ele tão incrível, era um alívio ter uma pessoa tão liderante, forte, corajosa... Eu nunca quis, Rebeca, mas da primeira vez, confesso que achei que estava tudo bem ele fazer aquilo, porque eu devia a vida a ele.
— Isso é ridículo — falei — isso não dá a ninguém o direito de...
— Eu sei. — Melissa me cortou. — Eventualmente eu vi que estava errada, quando comecei a "valer meu próprio peso". Eu salvei você uma vez e mesmo naquele momento, não conseguia imaginar que você me devia nada. Acho que apenas nesse momento acordei para o que estava acontecendo...
— Mas Melissa, por que você não falou nada para...
Deixei a frase no ar, os olhos cor-de-mel magoados e cheio de ressentimento me fuzilando.
— Rebeca, como você, de todas as pessoas, pergunta isso? Por que você não falou nada para ninguém? — Seu tom de voz aumentou, mas não havia mais ninguém naquela sala para ouvir. — Ou você acha que ninguém teria visto, em uma casa com outras sete pessoas?
Senti meu queixo cair, centímetro por centímetro.
— Melissa, eu não sabia que você-
— Como você acha que eu, a medrosa chorona, iria me sentir? Você, que era uma das líderes desde o começo, que sabia se virar, cuja opinião importava para todos... Se você não falou nada, como eu poderia falar? Sabe, hoje em dia eu quero mais que ele vá para o inferno, mas na época, como eu iria me sentir se isso fizesse ele ir embora?! Ou pior, se expulsassem ele por aquilo... — Melissa abraçou os joelhos, os olhos fixos no chão. — Eu fui tão burra...
Ouvi uma fungada baixa, e quando olhei de novo para Melissa, seu corpo tremia. Queria fazer algo para afastar sua crise de choro, para afastar sua dor, mas nada que eu fizesse adiantaria.
— Eu também fui. — Sussurrei. Melissa limpou o rosto nas costas do braço, afastando as lágrimas. — Eu achei que tivesse sido só uma vez, que não teria maiores problemas... Eu aguentaria, sabe? No momento, pensei que seria melhor guardar para mim. Era humilhante e doloroso pensar em falar para as outras pessoas. E tinha medo do que aconteceria, de não acreditarem em mim...
Senti a mão delicada de Melissa no meu braço. Suas unhas estavam feitas, percebi, fruto do tempo ocioso na casa nova.
— Eu entendo, pode acreditar.
— Desculpa — pedi.
— A culpa não é sua. É só dele.
Assenti para ela e ficamos em silêncio novamente, olhando para a cinzenta paisagem do condomínio à nossa frente.
— Quando você e Guilherme foram para o quarto, Hector ficou realmente mal. — Ela começou a falar novamente e a interrompi.
— Você não precisa...
— Rebeca. — Ela mirou seus olhos frios e sérios nos meus. — Eu vou tirar todo o veneno dessa ferida, nem que a dor seja insuportável. Só assim ela vai se curar.
Voltei a olhar para a janela envidraçada, concordando com a cabeça. Depois de segundos de silêncio, Melissa continuou:
— Hector começou a se sentir mal, então Alana disse para levarmos ele até a cozinha para que bebesse água e tentasse comer algo. Victória veio junto e Carlos ajudou dando suporte a ele.
— Você acha que ele também fez alguma coisa com ela? Com Victória... — perguntei.
— Acho que não. Ele e Victória eram muito próximos no colégio... Por isso ela não quis acreditar em mim. Igual ao Guilherme, e até a Ana, se estivesse aqui. Eles conheciam um Carlos diferente. Nunca viram quem ele era... Eles só o admiravam. — Melissa ficou em silêncio por algum tempo, depois adicionou: — Às vezes eu fico pensando por que comigo?
— Melissa, acho que essa pergunta só serve para nos machucar mais. Talvez ele fez isso simplesmente porque achava que podia... Que merecia. Quer que eu seja sincera? Não tem resposta, ou não interessa. Não muda nada. — Murmurei, querendo eu mesma acreditar com tudo o que tinha naquelas divagações.
Melissa assentiu, um pouco transtornada, mas não adicionou nada. Ela passou a mão pelos fios úmidos, apertando as mechas até embaixo para respingar a água, formando uma pocinha que refletia no chão o céu cinzento. Quando o silêncio começou a se estender, arrisquei:
— Ainda quer continuar a história?
— Ah, sim. Claro... Então, estávamos todos lá embaixo. Eu fiquei de olho em Carlos a noite inteira. Acho que agora está óbvio porque eu não queria beber... Enquanto cuidávamos de Hector, ele ficava me olhando daquele jeito estranho. — Melissa não falou nada por um tempo, mas sempre se mexia, ajeitando alguma parte da roupa ou os fios de cabelo. Sabia que estava desconfortável, mas também sabia que ela queria terminar aquilo. — Então achei que era melhor subir antes de todo mundo, mas acho que ele saiu de lá imediatamente depois de mim... Vai ver ele achou que era um convite, aquele merda. Mesmo depois de eu ter dito que não queria tantas vezes. E enfim, acho que ninguém percebeu porque estavam cuidando de Hector. E, claro, não imaginavam nada daquilo.
"Eu fiquei com a arma a noite inteira, mas também não sei se ele percebeu. Ou estava muito bêbado para juntar os pontos... Ou achou que eu nunca teria coragem de usá-la. Eu também acharia isso."
Melissa fez uma longa pausa. Compreendia como era difícil para ela reviver aquela noite, então me aproximei para abraçá-la e esperei até que ela se sentisse confortável.
— Eu não percebi quando ele veio, tinha acabado de sair do banheiro e estava entrando no quarto. Eu mal havia atravessado a porta e senti as mãos dele em mim. É claro que eu achei que seria forte, confiante, que enfiaria a arma na cara dele sem piedade, mas na hora... Rebeca, eu fiquei com tanto medo. — Sob meus braços, senti Melissa se encolher. — A forma como ele me tocava, estava mais exigente... Quase como se não quisesse deixar espaço para eu negar. No fundo, eu sabia que tinha algo de diferente, que ele estava pior do que o normal.
— Menos assim você negou... — Sugeri, percebendo a incerteza dela em continuar.
— Sim. Eu o empurrei e ele voltou na minha direção com aquele sorriso nojento no rosto... Como se achasse que eu era a porra de um desafio. E eu não me controlei de ódio e dei um tapa na cara dele. Acho que aí eu realmente peguei ele de surpresa, Rebeca, porque ele não esperava aquilo. Ficou me encarando por vários segundos e encarei de volta. Acho que foi uma surpresa pra mim também... — Ela tentou sorrir, mas não encontrou forças ou vontade, seu rosto choroso parecendo mais uma careta. — Quando eu virei para ir embora, eu mal movi um pé e ele me agarrou de novo. Ele realmente estava furioso, Rebeca, e veio pra cima de mim. Eu já sabia que precisava gritar por ajuda, mas no momento em que fui fazer, senti sua mão na minha garganta, apertando tão forte que a minha voz morreu ali.
"Eu não sei se é um instinto idiota, mas até o último segundo eu pensei que iria ficar tudo bem, sabe? Que ele ia me soltar, que eu ia sair dali... Mas uma hora minha visão começou a ficar escura e ele ainda estava passando a mão em mim, não parecia disposto a parar... Você não sabe o quanto eu quis fingir que estava tudo bem, que não tinha necessidade de fazer aquilo."
— Melissa, eu... — Senti as palavras saindo da minha boca sem que eu conseguisse controlar, mesmo que eu mal soubesse o que dizer. Meu coração estava apertado no peito e eu queria encontrar alguma forma de consolá-la. — Eu só posso imaginar o que você sentiu. Nunca vou deixar ninguém desta casa falar mais um "a" sobre o que você passou.
— Obrigada, amiga. — Ela sorriu para mim, mas respirou fundo antes de continuar: — Eu estava com medo de apagar, então peguei a arma e mirei na barriga dele. Tinha deixado ela destravada, mas não queria ter que usá-la... Atirei ali justamente para não matar ele. Na minha cabeça, conseguiria chamar alguém, daria tempo de ajudá-lo e pensaríamos em uma solução. Mas aquele porco mal processou o choque e me agarrou pelos cabelos para me jogar no chão. Assim que caí, ele tentou pegar a arma. Se não tivesse acabado de tomar um tiro, acho que teria conseguido lutar comigo por ela. Provavelmente eu quem não estaria aqui. — Ela balançou a cabeça, querendo afastar aqueles pensamentos. — Mas ele estava debilitado e eu consegui me desvencilhar. Naquela hora eu já estava com tanto medo, debilitada pela falta de ar e só queria fazer acabar. Então mirei de uma vez na cabeça dele, da segunda vez. Você entende que era isso ou eu teria morrido, né?
— Melissa, sua vida não precisaria estar em risco para eu entender. — Assegurei.
A loira assentiu.
— Ele caiu sobre mim e eu estava tão debilitada que demorei para conseguir empurrá-lo para o lado. Quando finalmente saí do quarto... Bom, vocês me encontraram, coberta de sangue e com uma arma na mão. — Ela suspirou.
Deixei o silêncio se estender, mesmo contra a minha vontade. Era tão doloroso ouvir aquela história como eu imaginava que era para Melissa contar. Revivi meus próprios momentos de terror... Ainda que o medo e a tristeza se fizessem presentes, a minha raiva era tão latente quanto.
— Parece quase brincadeira. — Ela chamou a minha atenção. — Que o mundo esteja cheio de zumbis prontos para nos mastigar até os ossos, e nós ainda precisamos ter medo de homens.
Fiquei quieta, lembrando da insensibilidade de Guilherme, de Hector e até de Victória. Queria que eles tivessem ouvido aquela história.
— Obrigada por me ouvir, Rebeca.
— Você não tem que me agradecer por nada, Mel. — Sussurrei, abraçando-a novamente. — Eu só quero que você tenha certeza que, a partir de agora, pode contar comigo para tudo.
— O mesmo para você. — Ela retribuiu o meu abraço. — Você também não precisava ter aguentado tudo sozinha. Eu vou sempre estar sempre do seu lado, entendeu?
Senti o calor das lágrimas escorrendo pelas minhas bochechas, mas naquele momento eu mal saberia dizer por que motivo elas caíam. Meu coração estava incendiado, mas ainda assim busquei forças para dar um sorriso à minha melhor amiga.
Nota da autora:
Espero que estejam gostando do final da história amigos 🖤
O último capítulo vai ser postado um pouquinho mais tarde (com uma notinha de agradecimento para vocês!)
Não sejam mordidos, estamos quase no fim...
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