Capítulo 46.
Mei, sem conseguir se segurar, estava vivendo o seu inferno, rolando pela caçamba a cada freada brusca. A última lançara os seus quase 50 quilos contra mim, fazendo-me perder completamente o ar. Ouvi a inconfundível risada alta de Alex vinda do carro de trás, pensando que talvez aquela não tivesse sido a melhor das minhas ideias.
Mesmo com o cachorro rolando, a viagem não estava sendo particularmente complicada, o que já era mais do que eu poderia querer. Mesmo assim, agradeci por ela ter previsão de somente poucas horas.
As piores partes acabaram quando chegamos na rodovia, depois de uma corrida constante para nos afastar das ruas fechadas da cidade, onde o barulho atraía mortos e corríamos risco de sermos cercados. Ainda assim, precisamos parar quatro vezes, comigo, Hector, Carlos e Alex saindo dos carros para mover carcaças abandonadas ou limpar a via para contornarmos acidentes.
As paradas também aconteciam na rodovia, quando encontrávamos engarrafamentos ou carros abandonados, mas estas eram menos constantes e, sem a visão encoberta por prédios ou lojas, sabíamos que não seríamos cercados por zumbis. A maior dificuldade até então fora contornar um engarrafamento de quase cinco quilômetros, pelos quais seguimos entre o acostamento e a faixa de terra que antecedia um barranco. A origem do acidente foram duas carretas tombadas que criaram uma fila de carros engavetados. Da caçamba, eu e Mei podíamos ver corpos trucidados presos entre as ferragens dos carros, alguns tendo servido de banquete para os mortos. Zumbis rondavam a maior parte do caminho, fosse dentro ou fora da estrada, mas nunca em grupos grandes o suficiente para nos representar perigo.
Levantei-me com pressa quando senti que o carro desacelerar, olhando ao meu redor por cima do capô. Carros abandonados a esmo fechavam a estrada de um lado a outro, mas sem acidentes visíveis. Parecia quase a barreira de carros que montamos na casa de Tom, um pouco mais longa. Pousei a cabeça no capô, fechando os olhos e respirando fundo. Minhas marias-chiquinhas voavam atrás de mim, uma chicoteando longe e outra na altura do meu pescoço. Eu gostava do meu cabelo longo e ficava chateada sabendo que precisaria cortar a outra.
O carro parou, obrigando o resto do comboio a desacelerar, e as portas se abriram. Meu corpo doía e eu tinha vontade de continuar ali com a cabeça deitada, mas minha cachorra pulando de um lado para o outro, ansiosa para sair do carro, me obrigou a abandonar o descanso.
Preparei-me para pular a borda da caçamba, mas Guilherme esticou a mão esquerda como se fosse um perfeito cavalheiro, ajudando-me a descer. Dei um sorriso e aceitei a ajuda, e quase esqueci de Mei antes de seu ganido me lembrar de abrir a caçamba para ela.
— Sabia que eu gostei do seu cabelo assim? Você parece um personagem de jogo. — Guilherme sorriu. Os últimos dias, que passaram como uma confusão para mim, foram arrastados e doloridos para ele. Seu semblante denunciava como era desanimado para ele se sentir incapaz de participar dos nossos planos, mesmo que estes envolvessem combates com zumbis.
— Seus critérios são duvidosos, Guilherme, vou começar a desconfiar desses elogios. — Brinquei
— Não tem problema, vou continuar elogiando até você se apaixonar por mim. — Senti meu coração bater rápido e minhas bochechas coradas pareciam ser exatamente a reação que Guilherme buscava, pelo sorriso que se abriu ainda mais em seu rosto.
Quando percebi alguém na minha visão periférica, virei o rosto a tempo de ver Carlos nos encarando com uma expressão de poucos amigos. Quando nossos olhos se encontraram, ele ergueu a sobrancelha e mandou que fossemos ajudar logo. Guilherme deu de ombros, seguindo o amigo, e fui atrás, desconfortável com a situação.
A outra situação, felizmente, não parecia tão preocupante: haviam alguns carros abandonados, talvez 20, talvez mais. Era como se um comboio como o nosso houvesse parado e decidido seguir a pé por outra direção, mas alguns zumbis presos em cintos de segurança e outros cadáveres nos faziam pensar o contrário.
— Certo. — Olhei em volta, certificando-me de que nossos arredores estavam tranquilos. Dessa vez, haviam muitos carros, principalmente na estrada oposta, em direção à nossa cidade. Eles dificultavam um pouco a visão, mas não fui capaz de ver grupos grandes de zumbis. — Alguém pode ficar de vigia na caçamba da picape enquanto limpamos o caminho.
O trabalho era cansativo, divididos em matar os cadáveres que se aproximavam, assegurar que os interiores dos carros estivessem limpos e mover os veículos para fora da estrada. O sol a pino não tornava nada mais fácil e em poucos minutos todos estavam suados e exaustos. Normalmente evitávamos tirar nossas jaquetas, que nos mantinham seguros das mordidas, mas dessa vez ninguém aguentou muito tempo.
Meus cabelos já estavam grudados no rosto e minha visão se tornava turva quando finalmente limpamos o caminho. Sequei o suor da testa com as costas do braço, rezando para que pudesse tomar um banho ainda hoje.
— Nossa! — Carol prendia os cabelos loiros em um rabo de cavalo frouxo. — Já deve ser meio-dia. Alguém lembrou de trazer protetor solar?
Como se em resposta a sua conclusão sobre o horário, senti meu estômago roncar. Aquele não era um mundo que me deixava particularmente com fome e não poucas vezes eu pulava refeições. O que era vantajoso em dias de racionamento.
Concordamos em fazer uma parada para almoçar. Melissa, Tom e Carol aproveitaram para organizar da melhor maneira possível a quantidade de itens no porta-malas do Fiorino. Aquela ida ao mercado havia sido um sucesso e, mesmo com muitas pessoas precisando dividir, provavelmente teríamos uma ou duas semanas com menos preocupações. Percebi que no porta-malas havia também quatro galões de água de vinte litros que Tom trouxe, coisa que nem havia passado pela minha cabeça na hora do mercado. Era difícil lembrar de tudo.
Sentados na traseira da picape ou no chão escaldante, fizemos um almoço com bolachas e salgadinhos. Apesar do clima abafado, da fuga apressada e da ansiedade em chegar ao nosso destino, todos estavam de bom humor e conversamos um pouco. Alex contou histórias de quando tinha 14 anos e acampava com seu pai, e não poucas vezes precisamos censurar uns aos outros para diminuir o tom das risadas. Eventualmente Tom, quem ficou de vigia na caçamba da picape, indicava algum errante ou algum grupo que se aproximava e nos levantávamos para lidar com o problema.
Mei corria por entre todos, esforçando-se para conseguir provar um pedaço de cada coisa disponível.
— Quanto tempo de viagem falta? — Hector perguntou para Alex, que tomava uma lata de refrigerante de uva quente, mas não parecia estar nem um pouco triste por isso. Mei olhava para ele, esperançosa, mas ganhou somente uma bolacha de água e sal.
— Pouco. Continuando nesse ritmo, mais uma hora até Rancho Queimado. — Ele deu um arroto e pediu desculpas, envergonhado.
— Ansioso, filho? — Tom colocou a mão no ombro de Samuel, sentado à sombra de uma minivan caída com os olhos fixos em alguma coisa. O garoto sorriu para o pai, assentindo, mas não virou o rosto.
Tom estava com a arma no coldre e, sempre que a empunhava, seu semblante ganhava uma seriedade singular. Nos contou que ele e o irmão já foram militares; ele desistiu cedo da carreira enquanto o tio de Samuel continuou até os mais altos cargos. Um dos passatempos que mantiveram era frequentar o clube de tiro para praticar e, mesmo com um filho em casa, Tom manteve sua pistola como recordação, escondida no cofre em seu quarto.
Nos primeiros dias em que estivemos na casa, Tom preferiu que a pistola de Hector ficasse guardada, mas eventualmente a confiança uns nos outros aumentava e meu colega recebeu a arma de volta. Mesmo passando tantos dias lá, não as disparamos nenhuma vez. Em momentos como aquele, tornava-se óbvio porque a utilidade delas era questionável: no silêncio sepulcral daquele mundo, eram quase anúncios de banquete para os mortos.
— O que você falou? — A pergunta de Guilherme fez meus pensamentos evaporarem e voltei a atenção para o grupo de pessoas que olhava fixamente para Samuel, que imediatamente ficou desconfortável.
— Eu acho que devíamos vasculhar dentro dos carros abandonados antes de ir embora — murmurou, quase inaudível. — Estava olhando aquele carro. — Samuel apontou um dedo para um Gol vermelho próximo de onde estávamos, com as portas fechadas que mantinham uma enorme pilha de bagagens dentro dele. — Nós pegamos um monte de coisa no mercado, mas poderíamos achar outras coisas aqui... Roupas, mais comida...
— Sim, claro. A ideia é ótima, Samuel. — Hector disse, olhando em volta. Ao longe, um grupo maior de mortos começava a se aproximar, mas tínhamos bons metros de distância. — Dá para nos dividir e procurar pelo menos nos veículos mais próximos. Não dá para atrasar muito a viagem. Com esse calor, acho que vai chover ainda hoje.
No fim, todos aprovaram a ideia de uma vistoria rápida. Aqueles que se dispuseram a participar empunharam suas armas e nos dividimos em duplas.
— Eu também quero ir. — Samuel pediu, olhando para mãe.
— Como assim, amor? De jeito nenhum! — Carol balançou a cabeça. — Ainda é só o primeiro dia que você está aqui fora. Por enquanto está tranquilo, mas não sabemos o que pode acontecer.
— Mas eu não quero só ficar aqui esperando, mãe. — Samuel argumentou, virando o rosto novamente para o asfalto.
Carolina não parecia propensa a aceitar, tentando convencer Samuel como era perigoso e que, mesmo se concordássemos, ainda seria preciso que alguém ficasse de olho nele, o que poderia atrasar tudo. A mulher falava calmamente e de maneira respeitosa com o filho, mas não parecia impassível.
— Carol, se você não se importar, eu posso ficar de olho nele. Eu e Guilherme, no caso. E Mei. — Por mais que Guilherme estivesse relutante em ser a minha dupla, acreditando que não seria nem um pouco útil, insisti para que ele viesse junto. — Não vamos nos afastar e nem fazer nada perigoso. Abrir as portas, conferir o que tem dentro dos carros, enquanto alguém fica de vigia.
— Rebeca, eu não sei... — Ela mordeu o lábio inferior, hesitante. Tom observava, quieto.
— Eu e Carlos também podemos ir junto, assim fica mais seguro. — Melissa interrompeu. Conforme as duplas se formaram, ela ficou com Carlos na divisão, mas não parecia muito satisfeita. — A Mei sempre faz guarda, ninguém se aproxima sem ela ver primeiro
Carol olhou para Tom, esperando algum pronunciamento.
— Eu acho que... Pode ser. Não estamos em um lugar muito perigoso, talvez seja interessante para que Samuel se acostume melhor com esse mundo. — O homem coçou a barba por fazer, virando-se para mim em seguida. — Vou ficar com eles também, amor. Não precisa se preocupar.
Dessa forma, meio relutante, Carol confiou no marido e o que era para ser somente algumas duplas, acabou por virar um grupo maior em volta de Samuel. O combinado era se afastar o mínimo possível dos nossos carros, tomando extremo cuidado para checar todos os arredores (inclusive embaixo deles) antes de chegar muito perto.
Logo tornou-se evidente que aquela ideia era muito mais do que somente boa, conforme o ímpeto de nos afastar cada vez mais para não deixar nenhum veículo passar nos dominava. Grande parte dos carros parecia pronto para viagens longas, com tantos itens úteis quanto inúteis em seu interior. Reunimos muitas embalagens de comida, além de garrafas de água ou latas de refrigerantes fechadas. Mochilas e malas mais práticas que as nossas foram surrupiadas também. Cantis, remédios controlados dentro de porta-luvas, relógios de pulso e até mesmo algumas roupas provaram-se úteis para levarmos conosco. Tinha a sua parcela de diversão explorar coisas desconhecidas e ver que itens extremamente úteis poderíamos nos apossar. Samuel explorava seus limites, fazíamos um bom trabalho e o clima particularmente agradável continuava.
Carol e Alana ficaram esperando dentro do carro. Até mesmo Victória, de voz baixa e um pouco sem jeito, propôs-se a ajudar e acabou ficando junto com Hector. Alex e Faber afastaram-se um pouco mais, cobrindo uma área maior do que o nosso grupo lento e numeroso. Carlos e Melissa quem acabaram ficando majoritariamente com a atividade de vigia, lidando com errantes que aparecessem. A forma desanimada como Guilherme olhava para o amigo que, mesmo com cicatrizes evidentes no braço, agora empunhava novamente sua barra de ferro, era um constante lembrete de seu humor triste e decepcionado que se tornava cada vez mais habitual. Queria saber o que falar para fazer tudo ficar melhor, mas não consegui pensar em nada.
Conforme o sol do meio dia se intensificava, as viagens para deixar os novos itens próximos ao nosso comboio se estendiam e mais mortos se aproximavam, acabamos optando por nos preparar para partir. Samuel mostrava para Guilherme uma revistinha que encontrou em algum dos carros, quando um grito afastou-me da cena de esquentar o coração.
Foi um som alto, que só poderia pertencer a um homem, mesmo que eu nunca houvesse escutado aquele tipo de som saindo de sua garganta. Mei deixou um latido escapar, olhando na direção do barulho em alerta, esperando uma reação minha.
Sentindo meu corpo se encher de adrenalina, segui o único impulso possível e comecei a correr na direção do som com Mei ao meu encalço. Todo o caminho estava obstruído por carros, por isso demorei até ter ciência do que acontecia.
A primeira coisa que enxerguei foi Alex, parado a alguns metros de onde eu estava, completamente congelado enquanto olhava mais ao longe. Eu sabia que o grito não saíra de sua garganta, então procurava incessantemente por Faber.
— Alex, onde...
Alexandre estava completamente imóvel, o choque estampado no olhar. O homem parecia ter sido petrificado diante de uma visão do inferno e eu logo entendi o motivo daquilo, e a sensação que invadiu meu corpo fez parecer que meu coração também parou.
A minha primeira observação foi que Faber estava longe, muito mais do que seria seguro; a segunda, foi ver como ele corria rápido em nossa direção, movendo as pernas como um corredor, no rosto uma careta de esforço; a terceira, foi perceber que ele não ia conseguir.
Ainda assim, nada disso era o motivo do completo pavor que assolava a mim, a Alex, e pouco a pouco o resto do grupo, que se aproximava.
Faber tentava fugir de um zumbi corredor. Vendo a cena de fora pela primeira vez, eu finalmente entendi o quão rápidos eles realmente eram. Poucas vezes nós fugíamos desses, sempre optando por aproveitar a distância que eles abriam do resto da horda para neutralizá-los primeiro; quando fugimos, nos obrigavam a parar porque conseguiam nos alcançar de um jeito ou de outro. O mais assustador naquela situação era que, mesmo se Faber parasse de correr para enfrentá-lo, seria suicídio.
A primeira coisa que pensei era que a criatura que o seguia era enorme, mas logo entendi que "enorme" não refletia a sua verdadeira magnitude. Faber não era particularmente alto, mas aquilo que o seguia, que um dia deveria ter sido um homem, tinha aproximadamente dois metros de altura e, em vida, provavelmente teria chegado aos 300 quilos.
A criatura gigantesca e mortal já era apavorante por si só, mas, desafiando tudo que já vimos naquele mundo, também corria como um recordista olímpico. Os movimentos eram caricatos, as pernas tortas com aparentes ossos quebrados de suportar tanto peso em uma corrida frenética. Quaisquer roupas que ele usasse provavelmente se perderam há algum tempo, deixando seu torso exposto, onde em vários locais de sua barriga protuberante haviam sido comidos sabe Deus há quanto tempo.
Ele era mais rápido que Faber, e mesmo que este resolvesse parar para golpeá-lo com o seu pedaço de madeira, não teria a força necessária para parar um ser como aqueles.
Apesar de lembrar com clareza de cada detalhe daquele ser profano, que em seu tamanho e magnitude era a máquina de matar mais assustadora que já cruzara meu caminho, tudo se desenrolou em segundos, mais rápido do que qualquer um de nós conseguiu reagir. Tom tentou pegar a arma no coldre, mas antes que pudesse atirar, já havia terminado.
A única coisa que passou pela minha cabeça foi por que Faber fora tão longe? Ao mesmo tempo, lembrei de todos os momentos em que sua confiança inabalável o fez se expor ao perigo, convencido que era mais rápido do que qualquer risco. Normalmente eu concordaria com ele, mas aquele mundo tinha uma forma estranha de nos provar errados.
Com uma careta de desespero, o intercambista percebeu que seu destino estava selado no momento em que o peso veio de encontro ao seu corpo. Mais precisamente, os prováveis trezentos quilos da criatura que lançou-se sobre o adolescente. O zumbi, que tinha sangue negro, ou vômito — ou qualquer outro fluído igualmente desgostoso — em seu pescoço repleto de dobras, caiu sobre metade do corpo de Faber, que deixou escapar um grito de pura agonia do fundo de sua garganta, antes da sua cabeça colidir em alta velocidade com o asfalto.
Eu não imaginei que conseguiria ouvir a quase cem metros de distância, mas aquele baque oco chegou aos meus ouvidos e embrulhou meu estômago. Tão baixo, diferente dos filmes com seus efeitos sonoros exagerados, simplesmente uma batida tão forte que fez sua cabeça quicar uma vez, antes de jazer imóvel. Com Faber sob seu corpo, o zumbi cravou seus dentes em suas costas e não encontrou nenhuma reação.
Meu choque me parou por curtos segundos, antes de retomar o controle do meu corpo e correr na direção do meu colega. A tontura implacável do desgosto fazendo-se presente e me atrasando. Eu sabia que Mei me acompanhava pelo constante roçar dos seus pelos em minha perna. Foi tudo tão rápido, e não havia nada que eu pudesse fazer, então só pude me amaldiçoar por deixar que ele se afastasse tanto, por não estar presente, por...
— Rebeca, calma! Cuidado. — Senti uma força contrária parando meu ombro, e percebi que a velocidade que eu corria era mínima, um pouco atordoada pela surpresa. Olhei para a mão que encostava em mim e vi que era Guilherme quem tentava me parar, o rosto tão apavorado quanto o meu.
Ouvi lamentos altos vindos do grupo às minhas costas, mas estes pareciam estar em segundo plano.
— Eu não vou deixar ele comer o Faber. — As palavras saíram antes que eu pudesse pensar em algum eufemismo. Eu podia estar acostumada com aquelas criaturas repugnantes, podia ter visto outras pessoas morrerem, mas parecia completamente blasfemo que Faber virasse comida, mesmo que fosse somente seu corpo morto. Ou pior, se mesmo depois daquela batida violenta e das centenas de quilos estraçalhando suas pernas, ele ainda estivesse vivo.
— Rebeca, não chega perto, deixa que eu... — Alguém passou por mim, mas não consegui tirar os olhos da camiseta branca que entrou na minha linha de visão, quase como se quisesse censurar aquele banquete imoral que se desenrolava.
Sentia o ar difícil de respirar, mas novamente agarrei-me ao meu novo ideal e concentrei todas as minhas forças em me manter consciente. Agora não em uma corrida torta, mas em passadas que eu esforçava para manter firme, tentava seguir o homem que se aproximava do zumbi e de Faber, a arma ainda em punhos.
Empunhei o pedaço de madeira que tinha à tiracolo, preparada caso Tom precisasse de ajuda, mas tampouco ele aproximou-se demais da criatura.
— Meu Deus... — As palavras escaparam de meus lábios sem que eu percebesse.
Às vezes eu achava que já tinha visto todas as piores coisas daquele novo mundo, mas a realidade sempre estava preparada para me golpear de novo. Eu não sabia o que era pior: o zumbi gigantesco, cujas pernas já entortadas deformavam-se cada vez mais sob o peso contínuo que carregavam ( ele poderia não sentir mais dor, mas nem isso tornava seu corpo invencível) e pedaços de carne podre sob as dobras de gordura serviam de casa para incontáveis insetos, exalando o cheiro do próprio inferno; ou o corpo de Faber, caído no imóvel no chão, sendo lentamente devorado por dentes apodrecidos. Suas pernas haviam entortado em um ângulo obsceno sob o peso da criatura e uma poça de sangue se formava debaixo de seu rosto, virado para o chão.
— Rebeca, você não precisa ver isso. — Sua voz era baixa, mas profunda. Tom aproximou-se com cautela do zumbi, que pouco lhe deu atenção, não querendo desviar-se de seu banquete. Ergueu o braço com a pistola e a posicionou na direção da cabeça calva do monstro.
O som dos tiros foi atordoante mesmo no espaço aberto. Um zumbido incômodo que permaneceria até o anoitecer começou em meus ouvidos. Quando, por reflexo, ergui a mão para cobrir minha orelha, percebi como ela tremia.
Quando Tom se virou em minha direção, embainhando a arma após travá-la, percebi que seus olhos estavam vermelhos. Mei gania, enquanto esfregava o focinho em minha mão.
— E-eu... Tom, me desculpa. — Murmurei, incerta se eu sequer queria dizer aquilo.
— Não tem o que se desculpar. Nada disso é culpa sua. — Ele começou a desabotoar a camisa branca, sem olhar para mim.
— Eu sei, é só que...
O homem ajoelhou-se, empurrando a enorme cabeça que jazia sobre as costas do menino que salvara minha vida. Em seguida, colocou com cuidado a camisa sobre os cabelos negros de Faber, que já estavam mais compridos do que os de Alana, e em segundos ela começou a se umidificar com o sangue.
— Rebeca, eu não esqueci os horrores que acontecem aqui fora...
Assenti para ele, incerta do que adicionar.
— Você acha que consegue dirigir até lá? É só seguir a picape. — Tom estava olhando para trás de mim, e virei o pescoço para acompanhá-lo. — Não acho que Alex vá conseguir.
Pela primeira vez lembrei de meus colegas vivos. Carol abraçava Samuel com força, segurando o choro com o rosto contra os cabelos do filho. O garoto passava as unhas no braço como se os coçasse, mas o movimento era contínuo e rápido demais. Alex estava abraçado em Hector, que lhe sussurrava palavras que eu não podia ouvir, mas o homem de quase dois metros nem sequer as ouvia, soltando lamentos altos sobre aquilo ser sua culpa. "Eu avisei para ele não ir longe, eu..." seu choro compulsório dificultava o entendimento.
Até mesmo Carlos parecia surpreendentemente transtornado e, furioso, gritou um palavrão enquanto enterrava sua barra de metal na janela de um carro, espalhando cacos de vidro pelo asfalto em uma sinfonia melancólica.
Nota da autora:
Olá amigos.
Falarei a mesma coisa que disse da primeira vez em que postei esse capítulo!
Motivos para não me matar ainda: se eu estiver morta, vocês não saberão o final do livro... E esse sim está de matar rsrsrs 😇
Até semana que vem!
(ou antes, se alcançarmos os 900k!)
Um beijo para todos (mas jamais uma mordida!)
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