Capítulo 4.
Perguntei-me se eu enfim estava a salvo, mas não desejei ouvir a resposta.
Embora ele não tivesse me arrastado para qualquer tipo de perigo, suspeitava que "a salvo" fosse algo que simplesmente havia deixado de existir.
A primeira pessoa que eu vi foi Carlos Dutra: outro terceiranista, também da sala de Guilherme. Tinha a pele oliva, cabelos raspados e olhos que carregavam uma expressão de poucos amigos. Apesar de também ter a nossa idade, seus músculos eram bem definidos, perceptíveis sob as mangas curtas do uniforme. Estava de braços cruzados próximo à porta de madeira que dividia o corredor de onde vínhamos do resto das salas de aula. Quando nos viu, sua postura ficou tensa, percebendo como corríamos rápido.
Notei que segurava uma barra de ferro na mão. Havia sangue nela.
Guilherme não pareceu surpreso enquanto corria na direção dele. Àquela altura, eu já havia conseguido estabelecer equilíbrio e corria junto, alguns passos para trás.
— Fecha a porta quando a gente passar! — gritou Guilherme. — Têm outros vindo!
Virei a cabeça para trás a fim de ter noção do que se passava. A princípio, dois se aproximavam correndo, enquanto os quatro de trás eram lentos. Mesmo assim, moviam-se com determinação, indispostos a parar.
Todos, exceto um, usavam uniformes escolares, mas seus machucados eram tão grotescos que me recusei a continuar olhando, buscando identificá-los. Que sentido teria, afinal?
Passamos correndo pela enorme porta de madeira e imediatamente a ouvi sendo fechada. Respirando alto, vi Carlos enfiar um grosso pedaço de madeira entre os puxadores da porta, certificando-se de que não conseguiriam abri-la.
Assim que terminou, olhou para Guilherme:
— Você conseguiu?
Ele não respondeu, apenas ergueu as duas chaves que carregava consigo, os dedos entre as argolas de metal. Eram as chaves das salas do terceiro ano, com chaveiros de plástico indicando "3A" e "3B".
— Continuo achando a sua ideia imbecil. — Carlos disse, sem rodeios, e virou para mim: — Rebeca, você foi atacada? — perguntou, enquanto analisava meu estado. Neguei com a cabeça, sustentando seu olhar quando voltou a me encarar. — O que houve com sua mão?
Olhei para baixo, lembrando do sangue que saia da minha unha partida pela metade. Agora que a adrenalina se esvaía, eu começava a sentir dor.
— Quebrei a unha enquanto fugia do banheiro. Estava presa com uma dessas coisas, mas ela não tocou em mim. — Preferi ocultar a parte em que eu havia sido agarrada, mesmo saindo apenas com um arranhão superficial. Algumas coisas eram mais difíceis de explicar do que outras.
— Só tinha um? Você não tentou bater nele?
— Eu deveria? Não sei, era uma menina com uniforme do colégio... De qualquer forma, eles nem ao menos parecem se incomodar com a dor. Um deles quebrou os dentes na minha frente, mas agiu como se nada tivesse acontecido — expliquei.
— Eles não param porque dói, mas se você conseguir bater bem forte, pode derrubá-los. Nisso ainda são como pessoas normais.
— Às vezes, quando você bate, eles param. — Guilherme interrompeu. — Eu não sei o porquê e acontece só às vezes, mas eu acho que eles morr... — ele deixou a frase se perder no ar, incerto.
Era óbvia sua hesitação. Como você pode dizer que algo que já está morto, morreu de novo?
Ficamos em silêncio alguns segundos, todos um pouco desconfortáveis. Sabia que Guilherme e Carlos eram bons amigos, mas eu não era particularmente chegada a nenhum dos dois. Minhas interações com alunos de outras salas se resumiam às meninas que jogavam handebol comigo.
— Vamos, então. — Começou Carlos, virando-se para o corredor à nossa frente. — Os outros estão esperando.
"Que outros?" preparei-me para perguntar, mas recebi minha resposta assim que virei de costas.
Havia um grupo adiante — mais pessoas do que eu esperava ver vivas naquele instante. Nenhum era um amigo próximo, mas a felicidade em ver rostos humanos era enorme por si só.
Nosso professor de geografia, Rogério, estava entre eles; um homem alto e magro, cuja marca registrada eram os óculos de grau em estilo aviador. Parecia inquieto, amarrando um pedaço de pano na perna de outra terceiranista.
Melissa Marriot estava sentada entre suas duas melhores amigas, roendo a unha pintada do polegar enquanto o professor tentava conter o sangramento em sua perna. Eu não a conhecia particularmente bem, mas era bastante popular no colégio: o tipo de menina bonita e extrovertida que era agradável com todos. Tinha a pele bronzeada de sol e cabelos loiros compridos que se ondulavam nas pontas.
Ao seu lado, estava Victória Carvalho, uma menina magrinha, de pele escura e longos cabelos lisos. Pressionava o celular contra o ouvido, mas não falava uma palavra. Por trás dos grandes óculos de armação dourada, uma expressão apavorada estava estampada em seu rosto fino. Era tão popular quanto Melissa, mas mais reservada e quieta em comparação.
Sentada do outro lado de Melissa, estava Ana Neves, concentrada em algo que digitava em seu celular. Ana tinha ascendência coreana, olhos monólidos e cabelos castanhos lisos com comprimento até os ombros. Apesar de ser uma aluna do segundo ano, eu a conhecia porque também praticava handebol. Sua habilidade era alta como seu ego e, apesar da pouca estatura, ficara conhecida pelas marcações violentas em quadra, além das provocações fora dela. Ana nunca disfarçou que não gostava de mim, mas era difícil dizer se por uma antipatia particular ou pelo fato de que poderia ser líder do time — se esse posto já não fosse meu. Eu também já havia ouvido que era uma pessoa difícil com qualquer um que não pertencesse ao seu círculo de amigos.
Em pé, próximo à janela, estava um garoto que eu não conhecia, alto e gordinho, com cabelos acobreados e sardas que se misturavam às espinhas na pele clara. Seu óculos acentuava o semblante sério enquanto olhava para fora da janela. Faber, um intercambista colombiano, também do terceiro ano, estava ao seu lado, chorando e cobrindo seu rosto com as mãos. Os cabelos negros e lisos escorriam até quase cobrir seus olhos.
Mais afastados, uma menina negra de cabelos crespos volumosos e roupa esportiva conversava com um garoto que havia estudado comigo ano passado, Davi de Melo, agora repetente. Sua figura era o estereótipo do garoto problemático: extremamente pálido, com piercings pelo rosto e cabelo cheio de gel.
Quem completava o estranho grupo de sobreviventes era outra terceiranista, Laura Garcia, com seus cabelos escorridos e óculos fundo-de-garrafa. Estava sentada no chão, abraçada aos joelhos e com os olhos fixos nos próprios All-star. Lágrimas marcavam suas bochechas e seu rosto estava branco como papel, com o semblante de choque.
Só me restava imaginar como aquele grupo aleatório de alunos de turmas diferentes acabara junto.
Quando saí correndo da sala em busca de ajuda para minha amiga, logo ficou claro porquê aquele dia parecia mais agitado que o normal, com gritos eventuais que atribuímos erroneamente aos alunos menores em horário de recreio. Em poucos segundos fora de sala, já me vi precisando fugir de um funcionário com aparência debilitada, mas que rosnava e tinha os dentes à mostra como um predador. Chegar ao pátio e ver com os meus próprios olhos alunos sendo atacados, sangue espalhado e o mais completo caos foi o suficiente para me trancar no banheiro, tentando encontrar alguma proteção.
Isso era tudo o que eu soube antes de passar quase seis horas trancada. Os gritos, o desespero, tudo servia para deixar claro que em nenhum momento a desordem e medo cederam, mas era diferente tentar imaginar pelo que aquelas pessoas haviam passado. Será que ficaram escondidas por tantas horas como eu, ou estiveram todo esse tempo expostos, tendo que correr pelas vidas?
Estaria algum deles infectado?
— Rebeca! Que bom que você está bem! — A voz de Victória me distraiu dos devaneios. Apesar da expressão assustada, sorriu gentilmente quando me aproximei. Os olhos estavam inchados e vermelhos.
— Veio correndo tão rápido que estragou o penteado? — Ana adicionou, com uma expressão sarcástica. Zombava das marias-chiquinhas que eu usava durante nossos treinos, ao invés do típico rabo-de-cavalo. Como não teríamos handebol naquele dia, meus fios escuros estavam soltos.
Revirei os olhos, acostumada, ainda que incrédula com a provocação diante da atual situação. Melissa a encarou em reprovação, mas não adicionou nada.
Ignorei Ana e cumprimentei Victória com um aceno de cabeça, genuinamente feliz em vê-la bem. Apesar da estatura alta, sua figura delicada não passava muita confiança para correr pela vida. Porém, não consegui disfarçar por muito tempo o meu incômodo com o machucado de sua amiga:
— Melissa, o que houve com a sua perna? — perguntei, compreendendo que o professor Rogério amarrava uma gaze suja de sangue em volta de sua coxa.
A loira olhou para mim, intrigada pela abordagem repentina.
— Ela não foi atacada — Carlos quem respondeu. — Caiu e cortou a perna num caco de vidro enquanto tentávamos sair do pátio. Estava sangrando bastante, mas não parece sério.
— Desculpa ser indelicada, é só que... — Comecei, vendo como os olhos cor-de-mel da menina pareciam magoados.
— Não, tudo bem... — Olhou para a perna e finalmente deu de ombros. — Acho que é uma preocupação válida hoje.
— Então, você conseguiu? — Ana pôs um fim a nosso assunto, olhando na direção de Guilherme, que sacudiu as chaves em resposta, fazendo o tilintar chegar aos nossos ouvidos.
— Desculpa, aquele lugar estava uma bagunça e só consegui pegar as chaves das salas do terceiro ano. Não consegui procurar mais porque as coisas já estavam subindo. — Desculpou-se, olhando para ninguém em especial.
Alguém murmurou "sem problemas", Ana bufou, mas não houve nenhuma reclamação. Guilherme ficou com uma chave e entregou a outra para Carlos, então abriram as trancas das portas.
Só então percebi que todos estavam com seus celulares, exceto eu, que deixara o meu na sala no momento em que saí correndo. Imaginei que houvessem chamadas perdidas da minha avó, ainda que raramente ela usasse o seu celular.
Assim que os garotos liberaram passagem, os terceiranistas presentes se dirigiram para as devidas salas, atrás de seus pertences. Fui com pressa até a minha mochila roxa, buscando meu celular no bolso externo.
A tela iluminou meu rosto e os números do relógio digital indicaram "16:58", pela primeira vez me permitindo ter uma noção de horário. Incontáveis notificações poluíam a tela inicial, desde mensagens no WhatsApp até, impressionantemente, SMS's de conhecidos. 29 ligações perdidas estavam sendo notificadas e fui imediatamente para elas: 6 eram do número da minha avó, 13 do meu pai e as outras 8 se dividiam entre os números das minhas colegas e parentes distantes. Até mesmo Vinícius, meu irmão, tentou entrar em contato comigo 2 vezes.
Comecei a sentir o meu coração disparando, uma ansiedade incômoda se espalhando por mim, sem saber exatamente o que eu deveria fazer.
Ainda que eu amasse meu pai, o tempo acabou nos distanciando e naquele momento era óbvio que a minha maior preocupação era com a mulher que me criou. Cliquei no nome da minha avó e segurei o telefone na orelha, tremendo a cada toque. Com um calafrio de alívio, depois do sétimo, ouvi a voz dela.
"Beca?" ela falava alto, sempre achando necessário gritar quando estava ao telefone. Aquele apelido que eu não gostava pareceu-me muito aconchegante agora. Sua voz era carregada de um desespero que me cortava o coração. "Beca, você tá bem?"
"Tô, vó!" gritei, indiferente aos rostos que se viraram na minha direção. Meus colegas juntavam freneticamente seu material dentro das respectivas bolsas. "Eu fiquei presa no banheiro do colégio sem celular, você tá bem?" não me importei com o quão bizarra aquela frase soou.
"A vó tá bem, Beca" eu podia ouvir a sua respiração pesada e mil situações invadiram minha mente: estaria a minha avó correndo nas ruas, fugindo daquelas coisas? Haveria algum deles entrado em nossa casa e atacado ela?
Ela arfava, porque sentia as dores de uma possível mordida?
Sacudi a cabeça de leve, tentando afastar aqueles pensamentos.
"A gente tá indo para a casa da Marta" continuou minha vó. Eu sabia que com "a gente" ela referia-se às amigas de vizinhança. Morávamos em um bairro calmo e humilde, afastado do centro, com muitos idosos e casais aposentados. "A Marta passou aqui em casa para me buscar, achamos que é mais seguro ficarmos juntas lá. Estou levando a Mei, ela também está bem!" disse, trazendo-me uma agradável onda de alívio. "Beca, você ainda tá no colégio?".
"Sim, vó! Acabei de pegar as minhas coisas e vou para casa agora!" falei, enquanto me levantava e começava a atirar o material para dentro da mochila.
"Não, Rebeca!" ela ergueu a voz e congelei no mesmo instante, tendo certeza que todos na sala conseguiram ouvir. "Eu vi na TV que o centro está uma loucura! Todas as ruas com quilômetros de engarrafamento e acho que os ônibus pararam de funcionar!" minha avó gritava como quem proferia uma maldição. "As ruas estão cheias dessas coisas..." ela completou, um pouco mais baixo. "Procura um lugar seguro, liga para a polícia e espera ajuda!"
Pensei por alguns segundos, fechando o zíper da minha mochila e colocando ela nas costas. Aquilo era Carlos mexendo nas coisas de outras pessoas?
"Tudo bem então, Vó. Você vai estar na casa da Marta, né?" ouvi a confirmação dela. "Então eu vou ficar aqui e esperar ajuda, não se preocupa."
"Isso, amor, fica segura! A vó ainda não conseguiu falar com seu pai, parece que o celular dele está desligado. Vou tentar de novo e te aviso quando conseguir, tá bom?" Aquela informação trouxe-me um calafrio. Mil cenários passaram pela minha cabeça e nenhum era nem remotamente bom. "O Vini me ligou de manhã, disse que estava bem, mas não conseguiu sair da universidade".
"Tudo bem." engoli o nervosismo, porque não queria deixar minha avó preocupada. "Vou mantendo contato. Me avise quando chegar na casa da Marta, ok? Cuida da Mei, por favor!" Ouvi sua resposta doce e não quis jamais desligar aquele telefone. Ainda assim, precisei relembrar que minha avó estava na rua e eu não poderia distraí-la. Nos despedimos em uma mistura de amor e desespero, prometendo que logo estaríamos juntas.
Enquanto eu guardava meu celular na mochila, Carlos me fitava, curioso.
— Você pretende ficar aqui no colégio?
— Não, eu vou para casa. — Mesmo tremendo por causa daquela ligação, fui firme com a minha resposta. Então me virei, em direção à porta.
Nota da autora:
Finalmente conhecemos o nosso time de sobreviventes 🖤
É cedo para perguntar quem são os favoritos? 👀
(reiterando: leitores de longa data, por favor, evitem spoilers durante os comentários — ou pelo menos deixem sinalizado!)
Essa semana teremos ATUALIZAÇÃO DUPLA nos dias de postagem! O próximo capítulo vai sair daqui a pouco.
Não sejam mordidos até lá.
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