Capítulo 31.
Paramos na esquina de um cruzamento, próximos ao muro acinzentado de uma casa a algumas quadras da minha. Carlos quem ficou na frente do que acabou se tornando uma fila indiana, e cuidadosamente espiava para ver como estava a situação da outra rua, a avenida principal, onde encontraríamos a farmácia. Mei eventualmente se afastava para cheirar os arredores, porém, ao meu comando, voltava para perto de nós.
Minhas mãos tremiam e eu mantinha o olhar fixo em um zumbi parado a esmo do outro lado da rua. Ela (era uma mulher) estava de costas para nós, os cabelos loiros alisados quimicamente quase batiam na bunda, e só conseguimos dizer já morreu (e voltou) pela enorme quantidade de sangue seco impregnada em sua saia jeans. Ela não pareceu se dar conta da gente.
Era um pouco mais fácil agora que entendíamos melhor seu comportamento. Quando uma pessoa morria e voltava como uma criatura daquelas, tornava-se praticamente uma máquina de caça. Certamente não restava qualquer resquício da vida antiga que viveram, seus laços ou suas memórias. Também não pareciam sentir dor, ou frio, ou medo. Somente fome — mas eu nem sabia se era isso mesmo: vírus eram parasitas obrigatórios e seu instinto era de se reproduzir e disseminar.
Outra coisa que parecia ter permanecido quase igual eram os sentidos. Por mais diferentes que pudessem parecer, em suas máscaras pútridas, a semelhança que mantinham conosco eram claras: sua visão, audição e olfato eram semelhantes ao de qualquer humano. O seu modo de caça só parecia ser "ativado" quando detectavam a presa; aí sim, tornavam-se predadores impiedosos. Mas para que encontrassem a vítima, precisava existir estímulo, seja táctil, visual, auditivo ou olfativo. Por isso, ao mantermos o silêncio (na medida do possível, para que os próprios sons naturais abafassem os nossos) e não passarmos em sua linha de visão, aquela mulher-monstro não foi capaz de nos detectar.
O que, claro, não tornava a sua presença menos desconcertante.
Ainda assim, o motivo de alguns serem mais velozes do que os outros ainda era um mistério. O tipo de coisa que, como incontáveis outras dúvidas, ficaria somente martelando em nossa mente pela eternidade, uma vez que não havia a menor forma de encontrarmos essas respostas. Já me pegara pensando algumas vezes se cientistas, com equipamentos necessários, conseguiram sobreviver e estudavam sobre essas coisas. "Cura" parecia uma ideia vaga e boba, diante do estado de semi-putrefação que nossos predadores se encontravam, mas ainda poderia haver uma vacina, talvez.
Outra coisa curiosa era, na verdade, o insistente adjetivo que eu tentava dar para eles: pútridos. Apesar de parecerem tão grotescos e assustadores quanto monstros de qualquer filme de terror, havia essa distinção: eles não pareciam particularmente podres. Claro, suas feridas abertas e infeccionadas tinham aparências horríveis, moscas eram atraídas e logo uma colônia inteira de larvas criava moradia lá. Apesar disso, eles não pareciam exatamente um cadáver em decomposição — o que me deixava um pouco desconcertada, principalmente levando em conta que alguns deles estavam mortos há semanas. Era uma conclusão óbvia, porém difícil de ser aceita: eles não se decompunham como mortos normais. O cheiro que exalavam era repulsivo, suas próprias aparências eram hediondas, mas a maioria ainda possuía os mesmos traços humanos que um dia carregaram.
Alana falou, ainda quando estávamos na minha casa: "Lá no começo, enquanto eu estava presa na loja do meu pai, comecei a pensar no que aconteceria. Como eles morreram, eventualmente iriam se decompor, né? Se fossem cadáveres normais, talvez em um ano estivessem tão pútridos que não apresentaríam mais problemas... E esse apocalipse simplesmente terminaria naturalmente. Só que, até hoje, todos os zumbis que eu vejo apresentam estágios de decomposição muito recentes ou até inexistentes, mesmo parecendo contaminados há mais tempo, pelas roupas e pelo sangue seco... O que eu acho é que eles se decompõem, mas de maneira muito mais lenta. Talvez o vírus também faça isso, sabe? Desacelera a decomposição. E isso é um problema porque talvez em um ano realmente eles apodreçam e se desfaçam, mas talvez..."
Talvez não. Talvez eles nunca realmente fossem apodrecer e nunca nos livraríamos deles.
E como esse tipo de pensamento me ajudava enquanto estávamos expostos, eu não sabia.
— Têm mais na rua do lado. Dá pra passar, mas acho que é melhor não arriscar. — Carlos falou, a voz tão baixa que era difícil de ouvir. A rua estava limpa em um raio de 100 ou 200 metros da gente, mas mais adiante já era possível ver uma concentração de mortos maior. — O que vocês acham? — Ele virou o rosto, direcionando a fala para todos nós, embora seus olhos estivessem focados nos meus. Procurei por algum traço de sarcasmo em seu jeito ou voz, mas a pergunta parecia sincera.
— Vamos continuar por essa e virar só perto da farmácia, que nem combinamos. — Hector respondeu, não conseguindo manter a voz tão baixa quanto a de Carlos. — Não tem motivo para arriscar.
Um rosnado profundo e crescente chamou a minha atenção, não porque eu não conhecia o som, mas sempre era um pouco assustador ouvir a minha cachorrinha, normalmente tão dócil, mostrar os dentes em alerta da forma que estava.
A mulher-zumbi que estava parada finalmente nos percebeu, virando o corpo rapidamente e seguindo em nossa direção, um grunhido saindo de seu peito. Mei tinha os olhos fixos nela, mas não se mexeu.
— É só uma, relaxem. — Guilheme se afastou, o facão em punho. Encontrou-se com o cadáver no meio da rua, ambos movimentando-se na mesma velocidade. Com um movimento preciso, encaixou a faca na têmpora da criatura. Vi seus músculos se flexionando na hora de recuperar a arma, desencravando-a com um pouco de dificuldade. A mulher caiu no chão, imóvel.
— Muito bom, Mei. — Passei a mão por sua cabeça e suas orelhas alertas abaixaram. Mei relaxou a postura e direcionou seus olhos castanhos para mim, abanando o rabo comprido. Esse não era o meu objetivo, mas se ela se tornasse uma vigia, seria ótimo.
— Atravessem a rua. — Carlos chamou a nossa atenção. — Vamos ficar do outro lado, mais distante deles.
Todos acatamos a ordem, mudando o nosso lado na calçada. A ideia era simples: se ficássemos mais longe, atrairíamos menos atenção. Também era o motivo de estarmos nos deslocando majoritariamente a passo de caminhada, um pouco mais distantes uns dos outros. A intenção era que parecêssemos estar vagando a esmo, como eles, para sermos confundidos com outros zumbis.
O passo também era bom por causa de Victória, cuja saúde não estava sendo exatamente beneficiada pelo apocalipse. Na verdade, ninguém parecia particularmente saudável depois de uma semana de racionamento de comida e noites mal dormidas, mas me preocupava o fato de que ela havia perdido peso desde que chegamos à minha casa. Talvez sua perda de apetite fosse a forma como ela processava os traumas pelos quais passamos, da mesma forma como para algumas pessoas isso se traduzia para compulsão alimentar.
Embora o caminho estivesse anormalmente quieto, com apenas alguns mortos a distâncias consideráveis, minhas mãos suavam muito e tinha de trocar com frequência o lado que eu segurava o bastão. Já havia sido terrível o suficiente ter de exterminar aqueles mortos no quintal da minha casa, mas nas ruas, um imenso espaço aberto, o próprio céu sobre as nossas cabeças fazia eu me sentir vulnerável.
— Vai chover hoje. — Melissa falou, baixinho, atraindo a minha atenção. Ela olhava para trás e os cabelos loiros voavam. Só então eu percebi que meus próprios fios negros se desordenavam sob o vento forte. Nuvens escuras começavam a se formar atrás de nós.
Como era típico de Florianópolis, os dias de verão intenso eram constantemente coroados com chuvas torrenciais e ventos semi-apocalípticos. Essas tempestades tendiam a chegar repentinamente e partir tão rápido quanto, mas talvez não fosse agradável passar a noite desabrigados sob a tempestade.
— Que merda. — murmurei, baixo, mesmo que a rua estivesse em grande parte vazia. — Acho que vamos ter que passar a noite na farmácia, ou no posto.
— Se não estiverem cheios de zumbis, né — pontuou Alana.
— A casa da Rebeca ainda é a menos de um quilômetro daqui, qualquer coisa podemos simplesmente voltar. — Hector falou, encerrando a discussão.
Mas eu não queria voltar.
O sentimento era estranho, porém inevitavelmente ocupava meu coração: voltar para a segurança, para a ideia fantasiosa de que eu poderia abraçar-me ao conforto da minha casa para sempre... Seria doloroso demais. Doloroso o suficiente para me fazer não querer sair mais de lá.
As ruas eram terrivelmente assustadoras. Rever, de tão perto, os rostos desfigurados e o sentir cheiro agoniante da podridão era uma lembrança permanente do mundo corrompido em que vivíamos. Ainda assim, ter forças para conseguir continuar, para não desistir... Ter pessoas ao meu redor que eu sabia que podia contar e fariam de tudo para me proteger era uma lembrança de que eu podia enfrentar aquele mundo.
— Dá tempo de chegar até o posto. Lidamos com quaisquer criaturas ao redor e passamos a noite lá — falei, tão baixo que sequer tinha certeza se me ouviram. — E se tudo der errado, voltamos para casa.
O ritmo de caminhada da Mei era maior que o nosso, por isso permiti que ela se afastasse um pouco. Logo, começou a nos rodear, adiantado-se alguns metros à frente e então voltando até passar pelo último de nossa formação (no atual momento, Hector). Ela estava atenta, vigiando todos os lados.
— Boa garota — sussurrei, quando ela passou por mim. A indicação que ela ouviu foi apenas uma abanada de seu rabo.
— Ela está conferindo se não tem nenhum deles perto — Carlos falou para si mesmo, surpreso. Seus olhos escuros acompanhavam Mei enquanto ela observava os arredores, talvez tentando calcular à sua maneira a distância entre nós e o perigo.
Caminhamos cerca de cinco quadras antes que eu batesse a mão na lateral da coxa, chamando minha cachorra. Ela aproximou-se do meu lado direito, as orelhas erguidas. Sussurrei o comendo "junto", para que Mei não se afastasse novamente, por enquanto. Finalmente chegamos perto da farmácia, sendo necessário somente virar a esquina e atravessar a rua. O posto de gasolina ficava duas quadras para frente.
Nos aproximamos do muro da casa da esquina, de onde era possível ouvir zumbis do outro lado, dentro do terreno. Acho que nunca haveria um levantamento de quantas pessoas conseguiram sair da cidade e quantas padeceram nas grandes metrópoles. Me pegava pensando em quantas das casas ao nosso redor agora tinham mortos maculando as memórias de uma moradia que um dia poderia ter sido feliz.
— A rua está um pouco cheia, mas não parece infestada. Deve dar para passar, mas vamos ter que fazer tudo direito. Talvez cada um de nós tenha que lidar com dois. — Quem informava aquilo era Hector, parecendo confiante em suas informações, mas ainda assim com o braço trêmulo em volta do pedaço de madeira que ainda usava como arma. Embora necessários, golpes contra zumbis eram movimentos que odiávamos ter de repetir: exigia muito esforço e por vezes apenas nos atrasava.
Podia parecer simples ter de lidar com duas daquelas coisas, mas somente um já era o suficiente para nos deixar exaustos, obrigando-nos a usar de toda a força para que o golpe fosse certeiro, fatal e, principalmente, rápido.
— Dá para fazer, mas eles estão muito próximos uns dos outros. — Guilherme passava o facão de uma mão para a outra. — É perigoso que nos cerquem.
Ficamos todos em silêncio, somente analisando de longe o pouco que conseguimos pelo espaço do cruzamento. De fato, era arriscado nos atirarmos à sorte pela rua seguinte, sem ter noção da magnitude que poderia nos esperar, ou a facilidade com a qual uma situação como aquela poderia fugir de controle.
— Chama a atenção deles. — A vozinha fraca de Victória foi o que chamou a nossa atenção. — Se fizermos um barulho, nada muito alto, podemos atraí-los aos poucos. — Victória começou a passar os dedos longos pelos cabelos, puxando seus fios para trás a fim de amarrá-los em um rabo de cavalo.
— Faz sentido. — Hector concordou. — Que tipo de barulho podemos fazer? Temos que tomar cuidado para não atrair uma horda inteira em frenesi de caça.
— Essa é a parte fácil.
Carlos deu um sorriso, afastando-se alguns passos. Enfiou as mãos pelas grades de uma casa, selecionando cuidadosamente uma das pedras brancas de enfeite, do tamanho do seu punho.
— Você pretende jogar isso onde? Se estiver pensando em disparar o alarme de um carro, os 15 zumbis da outra rua não vão parecer nada comparados aos que vamos atrair — Hector pontuou, com uma careta desimpressionada.
— Eu não falei que iria jogar em um carro. — Carlos piscou para Hector, ignorando a atitude de poucos amigos dele.
✘
O som de estilhaço não foi particularmente alto, porém diante do constante silêncio sepulcral, era como se uma metralhadora tivesse sido disparada contra uma parede de vidro. Os pelos do meu corpo se arrepiaram e subitamente senti o coração palpitar. Mesmo que todos estivessem esperando por aquilo, alguns até deram um pequeno pulo de surpresa. Mei ergueu as orelhas na direção do som, ansiosa, já que infelizmente não entendia o nosso plano.
Eu, Guilherme, Mei e Melissa estávamos de um lado da rua, ocultos dos zumbis que se aproximariam pelo muro alto da casa de esquina. Carlos, Hector, Victória e Alana estavam do outro lado da rua, alguns passos para trás, a fim de se esconderem por entre a folhagem que escapava do muro de uma casa. Melissa, Hector e Victória tinham pedaços de madeira nas mãos, os pregos em sua ponta já impregnados de sangue seco. A loira também tinha um facão no coldre improvisado, assim como Guilherme, mas este a carregava na mão, como arma principal. Apertei mais o bastão em minha direita, a esta altura já com algumas lascas soltas.
A minha outra mão estava entrelaçada com a de Guilherme, na esperança de lhe passar alguma segurança com o meu toque. Ele se esforçava para controlar a respiração, mas provavelmente estava tão nervoso quanto eu.
Os cacos de cerâmica do anão de jardim que Carlos usou como alvo espalharam-se pela grama verde. Não pude conter minha surpresa, admirada com sua mira por tê-lo acertado há quase 40 metros de distância.
Tão logo ele conseguira essa proeza, o som irritante do gemido daquelas coisas já se fez presente. Uma das orelhas de Mei se virou em direção ao barulho e minha cachorra começou a bater as patas no chão, demonstrando nervosismo. Vendo a sua confusão, porém fidelidade aos meus comandos para ficar parada e não latir, senti meu coração destruído. Como eu queria poder abraçar Mei e explicar para ela porque essas coisas eram necessárias.
Senti o aperto da mão de Guilherme se intensificar, atraindo a minha atenção. Ele tinha os olhos preocupados, mas tentou sorrir, como se para me acalmar. Agradeci suas intenções, ciente de que não teria como me distrair naquele momento. O mais importante era manter Mei a salvo.
Percebi que ela deixou um rosnado escapar de seu focinho franzido. Era alerta suficiente para me dizer que aquelas coisas já começavam a entrar em nossa linha de visão, seguindo reto, em direção à casa com o anão de jardim em pedaços. Queria saber se eles realmente estavam mirando naquele Dunga quebrado ou se somente seguiam a esmo em direção ao barulho.
Fosse como fosse, passamos despercebidos — pelo menos para os primeiros.
Quatro zumbis passaram reto por nós, em um passo de quase corrida, seguindo sem hesitar para a casa onde Carlos havia acertado a pedra. Os quatro eram rápidos, e apenas essa visão descompassou meu coração. Percebi como era perigoso bolar qualquer plano sem ter em mente quais deles se aproximariam rápido e quais demorariam mais. Se fosse um grupo com talvez 10 desses, poderia ser nosso fim.
Conforme outros começaram a passar, em suas caminhadas vagarosas, a minha ansiedade piorava. Ainda imóvel, senti a mão de Guilherme começando a ficar úmida, conforme o que imaginávamos ser somente alguns poucos zumbis, mostrava-se um grupo bem maior.
Muito antes que conseguíssemos formar qualquer ideia de plano para lidar com a situação, o primeiro deles percebeu nossas presenças. Com um rosnado audível que chamou a atenção de outros, ele mudou sua direção. O som oco, que ouvi à distância, agora era familiar para mim: Carlos já havia usado a sua barra de metal contra uma das criaturas.
— Comecem a se mover! — Guilherme, logo à minha frente, deu o comando. A voz um pouco mais alta do que o sussurro que usávamos atraíra a atenção de dois outros zumbis, que desviaram seu curso para a nossa direção. Guilherme abaixou a voz, mas gaguejou quando completou sua fala: — N-não deixem que nos cerquem.
Eu tentava ficar nas pontas dos pés, esforçando-me para ver o outro lado da rua: no meio de um grupo de mortos que cada vez tornava-se mais volumoso, pude ver Victória caminhando para trás, de mãos dadas com Alana. Um grupo de três criaturas passou em minha frente, obstruindo a minha visão por alguns segundos. Consegui distinguir somente uma última movimentação, da cabeça com cabelos acobreados de Hector virando para trás e dando uma ordem, mas eu não saberia dizer para quem. Antes de outros corpos podres ocultarem meus amigos, meus olhos se encontraram pela última vez com os de Hector, um brilho quase dramático e inoportuno refletindo no vidro de seus óculos.
A única coisa capaz de perturbar o meu cérebro tanto quanto a agonia de não saber o que acontecia com meus amigos era o inconfundível ganido de Mei, à minha direita.
Em desespero, virei e consegui ver que Mei caminhava para trás, os olhos fixos numa das criaturas que se aproximava. Ela se movia rápido, mas o zumbi era incessante, como eu bem sabia. Senti meu coração congelar e, em seguida, queimar, conforme a criatura tentou avançar para cima dela, que correu depressa para escapar.
O tremor das minhas mãos não me impediu de puxar o bastão para trás, acertando um golpe com toda a minha força no rosto do abutre que tentava se aproximar do meu cachorro. Sangue voou quando a criatura foi atirada para trás com um som oco, não sem antes oferecer a resistência de uma parede contra o meu golpe, eletrocutando os meus braços com uma dor intensa.
— Meu Deus, Rebeca! — Ouvi uma voz fina e um baque forte me empurrou.
O corpo de Melissa quem me atirara para o lado, abrindo espaço para que a menina loira assumisse o lugar que eu estava, fincando seu facão com força no olho de uma criatura que, não fosse ela, em alguns segundos estaria me devorando. Melissa não tentou retirar a faca antes que o corpo desmoronasse no chão. Só após a criatura cair imóvel, fincou a sola do tênis em seu crânio e puxou com força a arma cravada em seu globo ocular. Afastou-se com pressa, em uma corrida desajeitada, enquanto um outro monstro atirava-se em sua direção.
— Rebeca, Melissa, saiam da esquina! — A voz de Guilherme estava um pouco atrás de nós, mas ele não parecia particularmente mais a salvo. Virei o rosto para ver que ele próprio amparava o bote de um zumbi com um golpe da sua faca.
— Vamos, Mei, junto! — Dei o comando e minha cachorra imediatamente cumpriu, afastando-se sobre as quatro patas das criaturas que se aproximavam. Certifiquei-me de que Melissa estava bem, antes de me afastar, de costas, com passos rápidos.
Quando tentei ver de novo a situação do grupo do outro lado, o pavor me consumiu e meu coração pareceu incapaz de bombear sangue o suficiente, conforme o frio gélido do medo invadia meu corpo. O que atravessava a rua, uma parte em direção a um som já morto no tempo, a outra dividindo-se em direção ao tentador alvo mais próximo — nós! —, agora poderia ser muito bem nomeado como um mar de corpos pútridos.
Tive o estranho impulso de contá-los, mas temia perder a conta ou ter de abandoná-la ao precisar virar para fugir. Devia ser um número próximo do 50. Aqueles que outrora deixaram de ser ameaça por se afastarem, agora direcionavam-se para nós em um passo atlético. Um barulho nervoso rasgou a garganta de um dos meus companheiros, mas eu não saberia dizer de quem foi.
Guilherme usou novamente a faca para derrubar um deles, mas a velocidade com a qual outro se atirou para cima o impediu de recuperar a arma. Agarrou o segundo pelos ombros (por sorte um homem mais baixo que ele) e o empurrou na força bruta para o asfalto. Vi com clareza as unhas da criatura se arrastando pelo seu braço, por sorte protegido pela jaqueta jeans do meu irmão.
Um terceiro monstro aproveitou de sua distração para atirar-se sobre ele e, antes que eu pudesse gritar, os cabelos loiros de Melissa mais uma vez invadiram a minha linha de visão. Colocou seu corpo entre o cadáver e Guilherme, amparando a sua aproximação com um chute certeiro na barriga. Sangue negro voou da boca machucada da criatura, sujando sua calça com uma mistura nojenta, mas Melissa não pareceu se importar. Como se fosse profissional, em um movimento curto, enterrou a faca na boca aberta de seu atacante e tentou mantê-la com seu aperto, mas foi obrigada a soltá-la conforme o corpo inerte foi de encontro ao chão. Agora os dois estavam desarmados.
Antes que eu pudesse ver o desenrolar da situação, precisei cuidar de mim mesma. Felizmente não eram rápidos, mas os dois zumbis que se aproximavam eram igualmente mortais. Impulsionada pelo medo, imitei o movimento de Melissa e amparei um deles com um chute na barriga. Não foi o suficiente para derrubá-lo no chão, mas joguei-o alguns passos para trás. O segundo, uma mulher, ergueu seus braços raquíticos e sem vida na minha direção, mas a única coisa em que seus dentes se cravaram fora a madeira do meu bastão de baseball. Uma cor entre vermelho e preto ocultava as palavras escritas em letras garrafais, que um dia foram o nome de um time famoso.
Finalizar o segundo exigiu tanta força dos meus músculos, que senti o mesmo lugar que doeu por dias latejar como se tivesse se partido. Minha visão ficou branca por alguns segundos. Em meu acesso descomunal de fúria, atirar-me em meio a incontáveis dessas criaturas e cessar-lhes a semi-vida hedionda ao qual se agarravam tinha parecido fácil. Agora, sóbria dos sentimentos que ferviam meu sangue, somente ver que mais cinco já vinham em nossa direção era desesperador o suficiente para me congelar no lugar.
Somado a isso, o mar de corpos que vinha em nossa direção apenas se avolumava. Conforme os primeiros afastaram-se do grupo principal, almejando o sangue quente que corria por nossas veias, outros imitavam seus movimentos assim que pousavam seus olhos predatórios em nós.
A última visão do inferno que eu tive foi um cadáver com o corpo e rostos desfigurados de tal maneira que parecia um boneco mastigado por um cachorro. Arrastava-se pelo chão com braços podres que terminavam em ossos expostos. Os tocos de seus ossos brancos, que apareciam por entre a carne amarronzada, eram o que ofereciam apoio para puxar a massa indistinguível que era seu corpo.
— Não dá, Rebeca! — A voz de Guilherme me distraiu do horror e senti seu agarrão sobre o couro da minha jaqueta. — Temos que correr!
Procurei Mei com os olhos, sentindo uma tontura sobrenatural cada vez que eu olhava ao meu redor e não a via. Por sorte, um vislumbre do seu pêlo alaranjado sobre o meu ombro esquerdo tirou o peso do meu coração e consegui soltar o ar. Só então direcionei meus olhos para os de Guilherme, procurando uma resposta.
O nosso passo, pelo próprio desespero, já estava acelerado, conforme nos movíamos cada vez mais para trás, vendo os seres famintos e horrendos que acompanhavam nossa movimentação.
— Mas e Hector e os outros? — perguntei, percebendo só então que a minha própria voz era um ganido fraco. Desviei os olhos dos mortos, tentando buscar coragem nos familiares olhos verdes, mas ali só encontrei pavor.
— Não dá, não agora! — Guilherme já estava de costas para os mortos, puxando meu braço para que eu seguisse seu movimento. Mei encostou-se em minha perna esquerda, confusa e completamente apavorada. — Se a gente não correr, eles vão nos pegar!
E antes que eu pudesse protestar, do meio da multidão de mortos abomináveis, dois diminuíram o espaço entre nós em uma corrida animalesca. Estavam cada vez mais próximos, assim como outros sete ou oitos que permaneciam em nosso encalço.
Somente então tive plena consciência da situação desesperadora em que nos encontrávamos e segui a orientação de Guilherme. Dei as costas aos nossos predadores e peguei impulso em uma corrida. Gritei para Mei o comando para me seguir, mas poderia muito bem ter sido somente um berro de pavor. Àquela altura, havia perdido completamente Melissa de vista.
Em uma busca sedenta por qualquer sinal de esperança, virei o rosto para trás uma última vez em busca dos meus amigos, somente para vislumbrar o mundo inundado por uma horda de criaturas provindas do inferno.
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