Capítulo 29.
Quase meia hora depois daquele primeiro beijo, finalmente nos desvencilhamos de verdade para que cada um voltasse para sua cama, não querendo atrair a atenção dos outros. Era algo não vocalizado, mas ambos tínhamos um pouco de receio sobre o que poderiam pensar, sobre nossa imaturidade em nos preocupar com isso durante um apocalipse zumbi.
Quis pedir desculpas por ter julgado Ana naquela primeira noite, mas não havia mais como.
Contornei a minha casa com cuidado, evitando fazer barulhos que pudessem acordar Mei. Minha cachorra com certeza não estava nem remotamente satisfeita em ter sido abandonada, trancada em um quarto enquanto eu saia para beijar, e por um instante agradeci por ela não ser um humano e ser incapaz de me lançar um olhar de julgamento.
Cheguei até a janela do quarto da minha avó enquanto vigiava o portão principal do terreno. Já havia alguns dias que mortos rondavam minha casa e isso fora motivo para que evitássemos ao máximo ficar fora de casa durante o dia, e sempre manter as cortinas fechadas de noite. Embora eles não tivessem decidido atirar seus corpos pútridos sobre o meu portão (ou somente não viram motivo para isso ainda), suas presenças eram igualmente desagradáveis.
Distraída com essa visão, quase infartei quando olhei para dentro do quarto da minha avó e percebi que havia alguém na cama, junto com o meu Pastor Alemão.
Melissa me fitava com seus olhos cor-de-mel e um sorriso divertido no rosto.
Ela estava usando uma das minhas camisolas, deitada na cama de casal com Mei ao seu lado, que abanava o rabo alegremente enquanto recebia carinho. Um livro estava abandonado entre elas e a cena era iluminada por uma vela queimando na mesa de cabeceira, que eu mesma deixei acesa antes de sair.
— Caramba, achei que vocês iam ficar lá se agarrando pra sempre — disse e se sentou na cama. Mei colocou a cabeça no colo dela, pedindo por mais carinho.
Estava tão vermelha e sem jeito que quase perdi o equilíbrio quando pulei as janela para dentro do quarto. Tentei encontrar algo para dizer, mas a vergonha era tão intensa que prejudicava meu raciocínio. O que Melissa estava fazendo ali? Será que ela conseguiu ouvir alguma coisa que aconteceu na varanda?
Meu Deus do céu, será que ela tinha me ouvido gemer?
— Você parece um peixinho abrindo e fechando a boca assim. — Ela sorriu, vendo a forma como eu tentava formar palavras, mas falhava miseravelmente. — Ai, Rebeca, não precisa ficar com vergonha, meio que todo mundo já sabia que isso ia acontecer uma hora outra. Eu estava torcendo para que fosse logo, vocês ficam bonitinhos juntos.
Fechei a janela com cuidado atrás de mim e me certifiquei mais uma vez de que a minha roupa estava no lugar. Eu realmente não estava chateada com a sua presença, mas tinha medo de perguntar o que ela fazia no meu quarto e soar grosseira.
— Melissa, não quero que você me entenda mal ou leve isso para um lado negativo, mas é que eu realmente não sei...
— O que eu estou fazendo aqui? — Ela completou por mim, sem se abalar. Agora estava sentada de pernas cruzadas na cama, deixando a calcinha que usava à mostra (que era minha, por sinal, afinal não é como se qualquer uma das garotas tivesse alguma escolha além de pegar minhas roupas emprestadas). O corte na altura da coxa que havia feito no primeiro dia agora somente era uma cicatriz fina e branca cortando sua perna. Melissa sorria como uma criança que acabou de provar algodão doce. — Ah, eu durmo no quarto do lado, mas eu não estava com nem um pinguinho de sono e ouvi a sua janela abrindo, depois a porta de entrada, e tive certeza do que estava acontecendo. — Ela sorriu, com malícia e senti meu rosto esquentar ainda mais. — Na verdade, não exatamente... Porque apostei que o Guilherme tinha entrado de fininho no seu quarto, mas como não ouvi mais nada, imaginei que foi você quem saiu.
Ela parou de falar, mas talvez percebendo como eu estava sem jeito, continuou:
— Então como eu sou uma pessoa que gosta muito de fofocar, eu vim aqui esperar você voltar para perguntar como foi! Sabe, coisa de amiga, perguntar se o Guilherme foi legal com você... porque se não foi, eu vou enfiar o pé na cara dele com tanta força que os filhos dele vão nascer marcados. — Precisei trancar o riso para não acordar a casa inteira ouvindo Melissa falando aquelas coisas com a sua carinha de anjo.
Um ligeiro pesar me incomodou. Sua preocupação comigo parecia tão sincera que eu me senti mal por não contar o que aconteceu com Carlos. Mas por mais que ele merecesse passar pela humilhação de todos saberem o que fez, seria um problema muito maior do que se eu só guardasse a dor para mim. Era um fardo chato de se carregar, mas eu acreditava que o mantendo guardado comigo, pouparia a todos de preocupações que só nos prejudicariam como grupo.
— O Guilherme não foi babaca comigo, Mel — falei, caminhando até a penteadeira para passar uma escova nos meus cabelos soltos e desordenados pelos amassos recentes. Deixei um sorriso escapar. — Na verdade, foi completamente ao contrário: ele é incrível.
Não que eu estivesse fazendo alguma força contrária, mas era impossível não sucumbir ao conforto de compartilhar fofocas banais com uma amiga. Parecia mais um dos confortos que eu imaginei terem ficado para trás, em um passado intangível.
— Sério? — Ela apoiou os cotovelos nos joelhos, olhando-me atentamente com um sorriso enorme no rosto. — Me conta tudo!
Enquanto terminava de arrumar meu cabelo e mandava Mei para o seu cobertorzinho no canto do quarto, comecei a contar os detalhes desde que saí sozinha para a varanda. Na verdade, eu nunca havia sido uma pessoa particularmente aberta sobre as minhas experiências, então não era surpresa que me sentisse um quanto tanto desconfortável, preferindo ocultar alguns detalhes mais... Íntimos.
Melissa ouvia tudo com a atenção de uma águia. Quando finalmente me sentei ao seu lado na cama, uma pergunta chata se tornou insuportável de ser mantida guardada:
— Melissa, desculpa a pergunta, mas eu não consegui esquecer. Quando estávamos no seu quarto, logo no primeiro dia... — Comecei a enrolar uma mecha do meu cabelo no dedo, um pouco constrangida. — A Vic falou algo sobre você já ter...
— Ficado com o Guilherme? — ela sorriu, parecendo se divertir. — Se é com isso que você está preocupada, Rebeca, pode ficar bem tranquila. A gente ficou sim, foi em uma festa no ano passado em que as minhas amigas estavam colocando pressão em mim porque blá blá blá, menino popular, jogador, gato... Naquela época eu ainda estava confusa sobre o que eu gostava, então pensei "Bom, se eu pegar o garoto mais incrível do colégio, eu vou descobrir se gosto mesmo do negócio ou não, né?".
Ela fez uma pausa dramática.
— Nossa Rebeca, foi horrível! — Ela riu, baixinho. — Não o Gui, ele foi um querido. Percebeu que eu estava desconfortável e conversou comigo, depois deu um jeito de despistar minhas amigas. O problema é que eu estava super afim de uma menina de outro colégio, mas não, a bonita aqui quis brincar de ser hetero e.. Não. Com certeza eu não gostava de homens. Ainda descobri depois que aquela menina tinha perguntado de mim para as minhas amigas, mas quando viu eu e Guilherme, desistiu... O pior é que ninguém sabia de mim na época, então aquela menina gata nunca ficou sabendo que eu também queria beijar ela. — Melissa colocou a mão na testa de maneira dramática, fingindo um desmaio e me arrancando uma risada. Então sua expressão repentinamente ficou séria, assustando até a mim. — Nossa, você não fica brava comigo quando eu falo sobre isso, né? Tipo, não significou nada para nenhum de nós! Eu acho que nem faço o tipo do Guilherme e ele acabou só ficando comigo porque os amigos dele também botaram pressão... Nossa, me desculpa se-
— Não Melissa, não! — Cortei-a. — De verdade, não fico com ciúmes, nem brava... Não que eu tivesse motivo, né? Passado é passado. Eu só estava curiosa.
— Ufa, que susto! — Pareceu genuinamente aliviada. — Eu sei que está cheio de zumbis lá fora querendo nos comer, mas já pensou que tragédia seria se brigávamos por causa disso?
Então começamos a rir juntas, lembrando uma à outra de não fazer barulho, o que acabou fazendo com que nossas risadas saíssem baixas e estranhas, o que só gerou ainda mais risadas. Só depois de muito tempo conseguimos parar, sentindo aquela dor boa na barriga.
— Ai Rebeca, eu fico com um pouco de inveja de você! — ela disse, secando as lágrimas. — O mundo acabando, sabe Deus se existe mais algum sobrevivente além de nós... E você consegue achar um puta partido.
Embora eu evitasse pensar a respeito — sempre que eu tentava, sentia-me incrivelmente mal por conseguir ter pensamentos tão banais enquanto o mundo caminhava para o seu fim —, gostava de pensar que em meio a todo o caos, havia alguém que me fazia sentir como uma adolescente com borboletas no estômago.
— A gente só se beijou! Você faz parecer que estamos casados. — Cutuquei a cintura dela, fazendo-a se contorcer de cosquinhas e protestar.
— Casamento? Quando acontecer eu quero ser madrinha! Eu pedi primeiro! — ela ignorou completamente o que eu falei, causando-me outro ataque de risos.
— Você é uma idiota! — sussurrei, mas no fundo agradecia por ter uma amiga como ela ao meu lado.
Toda aquela noite era uma lembrança vaga da felicidade simples que existia no mundo antes do apocalipse. Saber que, mesmo em meio ao desespero, às vezes conseguíamos nos agarrar nos frágeis reflexos do que um dia fora essa felicidade. Mesmo com a culpa de sentir qualquer coisa boa em meio à interminável festa de horrores em que vivíamos, era um pouco tranquilizador.
— Ah, Rebeca, como eu posso evitar? Eu sou uma sonhadora! Gosto de histórias de amor, mesmo que tenha um pouco... — Ela repensou: — muito sangue nela.
— Bom, não é como se fossemos as únicas pessoas vivas, né? — Falei, em tom de brincadeira, mas a sua expressão séria me desconcertou. — Você não acredita nisso, né?
Melissa ficou em silêncio por alguns segundos, provavelmente medindo as palavras.
— Eu só não sei mais no que eu acredito. Se você me perguntasse há algumas semanas, eu não acreditaria que um apocalipse zumbi podia realmente acontecer. Se você me perguntasse há alguns dias, eu diria que jamais conseguiria bater num zumbi... Ultimamente, estou tentando não colocar qualquer expectativa em nada, boas ou ruins.
Sua fala tornou o clima repentinamente sério e, em uma tentativa egoísta, tentei agarrar novamente aquele curto momento da felicidade banal que dividimos:
— Bom, eu coloco expectativas que você vai achar uma mulher incrível para vocês baterem em zumbis juntas, até que a morte as separe! — Brinquei, receosa que Melissa poderia sentir-se ainda pior. Para a minha alegria, um sorriso voltou a desenhar-se no seu rosto.
— Posso te contar um segredo? — A loira perguntou.
Assenti com a cabeça, aproximando-me dela. Ela colocou as mãos em forma de concha em volta da minha orelha, aproximando-se de uma maneira infantil. Não consegui evitar de abrir um sorriso.
— Você acha que eu tenho chance com a Alana?
Meu queixo caiu. Talvez nem se ela tivesse me contado qual o segredo para a cura do vírus zumbi eu tivesse sentido um choque tão grande de ânimo.
— Ai meu Deus, você acha que ela é...
— Não sei! — ela reclamou, em um desespero fingido. — Eu não tenho esse negócio de gaydar, eu sou muito ruim em saber se uma menina também gosta de meninas! Há alguns dias eu teria certeza, mas ela e o Hector estão passando tanto tempo juntos que... — Melissa enrolou uma mecha do cabelo no dedo, ansiosa.
— Bom, ela sempre pode ser bi, né? — Arrisquei.
Feliz com a minha deixa, Melissa logo começou a alimentar aquela esperança, contando-me os momentos em que ela e Alana passaram juntas desde que chegamos na casa.
Sem que eu tivéssemos qualquer noção de horário, deixamos aquela conversa tranquila fluir pela madrugada adentro. Logo compartilhávamos experiências, sonhos e expectativas.
Contei para Melissa sobre como era a minha vida antes dos zumbis aparecerem. Sobre a minha relação com a minha avó e como eu aos poucos tinha perdido contato com meu pai e meu irmão. Desabafei como ainda doía o fato de nem ter conseguido entrar em contato com Vinícius desde o começo do apocalipse. Melissa me abraçou e me consolou quando eu chorei.
O assunto variava de coisas boas para coisas ruins tão rápido que era como se tivéssemos anos de proximidade. Contei a ela sobre o meu primeiro namorado, um garoto que conheci em um evento de cultura nerd. Ele era alguns anos mais velho do que eu, um pouco estranho e grudento, mas era querido. Namoramos por alguns meses cheios de primeiras experiências, sendo ele a pessoa com quem perdi minha virgindade (o que Melissa me fez contar com detalhes, porque era uma baita fofoqueira, segundo ela mesma).
Tanto quanto gostava de ouvir, Melissa também sentia-se feliz falando. Ouvi detalhes sobre a vida quase perfeita (essa observação era minha) que ela tinha antes do apocalipse. Sobre como amava seus pais e sua família, porém nunca chegara a se assumir, com medo do que eles pudessem pensar. Apesar de ter se descoberto lésbica, Melissa só beijou duas meninas e nunca havia passado disso, então era um pouco insegura no assunto. Saber que Melissa Marriott, a menina maravilhosa, rica e com a vida perfeita, também podia se sentir insegura, me fez simpatizar ainda mais com ela, aquela primeira impressão dos tempos da escola se dissolvendo diante de uma pessoa muito mais real.
Trocar esse tipo de informação banal, conversar sobre as nossas comidas favoritas (a de Melissa era milkshake de morango, se contasse como comida) ou sobre nossos bichinhos de estimação (o gatinho de Melissa fugiu há dois anos e ela chorou por 2 semanas seguidas), era um lembrete doce de que ainda conseguíamos encontrar alguma paz naquele mundo hediondo... O que me dava vontade de lutar por mais momentos assim. Garantir que todos nós pudéssemos encontrar novos sonhos e reconstruir a esperança que eu imaginava estar há muito perdida
Quando pegamos no sono, pela primeira vez desde que tudo começou, meus sonhos foram bons.
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