Capítulo 28.
Os dias que seguiram se passaram tão rápido que, sem que eu sequer percebesse, já estávamos no que Victória acreditava ser o dia 10 de abril (agora que a bateria de seu celular havia acabado completamente, estava contando os dias com um calendário).
Os últimos dias haviam sido agitados graças à preparação para irmos embora. Foi preciso que saíssemos para buscar suprimentos com mais frequência; tanto para que pudéssemos comer nesses últimos dias quanto para encontrar o que fosse adequado levar na viagem.
Uma das pessoas designadas para essa tarefa foi, claro, eu. Depois de muito tempo me vi novamente na linha de frente, com a foice afiada da morte no pescoço. Embora tenham sido viagens rápidas pelas casas do quarteirão, a incerteza e o medo sempre caminhavam ao meu lado fazendo-se presentes pela constante presença gélida da insegurança em minhas costas.
Precisar empunhar novamente meu taco contra zumbis foi assustador, mas, de certa forma, era bom saber que meus músculos ainda funcionavam. Senti dor, mas não se comparava ao primeiro dia em que desmaiei, o que significava melhora. Havia mais mortos por perto e majoritariamente eu e Hector quem tratamos deles, enquanto Guilherme e Carlos infiltravam-se com agilidade nas casas que não estavam trancadas, levando tudo que pudessem encontrar.
Quando chegou a minha vez e precisei saquear uma casa, o que encontrei estava longe de ser esperado. Demorei até alguns segundos para compreender o que era aquela forma pendurada por uma corda, exalando um cheiro tão pútrido quanto os carniçais que nos rondavam. Quando percebi que Guilherme virou o rosto para evitar manter os olhos naquilo, veio-me como um atropelo a realização de que se tratava de um morto, mas um diferente do que víamos até então. Não havia sido comido por zumbis, morto pela doença, ou sequer por um acidente. Seu ceifador fora ele mesmo, talvez acreditando que até mesmo aquilo fosse melhor do que o sofrimento de vagar por um mundo dominado pelo medo.
Talvez estivesse certo.
Guilherme colocou a mão com simpatia em meu ombro quando terminei de vomitar, coisa que eu não fazia há algum tempo. Logo após, envolveu meu corpo bambo em um abraço forte, como se tentasse manter-me protegida daquela sensação estranha. Acho que estava se tornando cada vez mais fácil para nós dois encontrarmos segurança um no outro.
O cheiro de podridão estava em vários lugares, principalmente nas cozinhas, onde grande parte das coisas estavam infestadas de larvas e insetos. Nem abríamos mais as geladeiras, que nunca mais funcionariam após a luz elétrica ser cortada. Frutas que reuniam moscas em seu apodrecer eram as nossas companhias na longa tarefa de procurar em armários, balcões e depósitos qualquer coisa que pudesse nos servir para algo. Alimentos adquiridos em um mercado comum, talvez por famílias comuns, que agora saqueávamos para garantir a nossa sobrevivência.
Logo ficou claro que começar a divagar era prejudicial para mim.
Além de comida e mantimentos, buscamos tudo o que poderia nos servir como armas. Facões e machadinhas eram rapidamente perdidos quando não conseguíamos arrancá-los do crânio de um zumbi, por isso quase sempre recorríamos a golpes de longa distância e precisávamos substituir os pedaços de madeira quebrados ou canos de ferro entortados.
Graças a isso, agora também tínhamos uma arma de fogo.
A falsa segurança que me dava vendo Hector embainhado-a no coldre sempre que saíamos para saquear casas me fazia questionar como eu não lembrei daquilo antes. Como não pensei um pouco mais quando mencionei o policial amigo da minha avó, quem me deu e ajudou a adestrar a Mei.
Eu frequentava muito a casa dele quando era mais nova porque sua filha, Olivia, era minha amiga. Por isso eu sabia onde ele morava, quais janelas nunca ficavam trancadas, ou que guardava uma pistola em um cofre no quarto (essa parte minha amiga me contou um dia, entre sussurros, naquela mistura de medo e curiosidade infantil).
Mas a coisa que eu jamais esqueceria era o aniversário de Olivia, um dia antes do meu. Por isso acertei de primeira a combinação de quatro dígitos do cofre: 1401.
Me recusei a pensar muito nela, em seu pai, no fato de ter encontrado sua casa vazia, sem o carro na garagem. Não pensei se tentaram fugir (mas não fazia sentido ter deixado a arma para trás) ou se sequer conseguiram voltar. Quando Carlos perguntou sobre a senha, falei que foi sorte.
A única sorte foi um de nós realmente saber lidar com uma arma.
Hector perguntou para Melissa e Alana quando estivemos em suas casas se tinham armas, além de ter mencionado outras vezes sobre a importância de arranjarmos uma. Quando Alana expressou receio, ele mencionou algo sobre seu pai ter lhe ensinado a lidar com uma arma de fogo, mas acho que ninguém o levou a sério.
Naquela tarde, observamos enquanto ele a manuseava com destreza: liberou o pente, contou as balas, encaixou-o novamente, examinou a trava de segurança e, por fim, travou-a. Todos pareciam um pouco surpresos.
— Você sabe mesmo mexer nisso? — Carlos perguntou, tentando não parecer acusatório.
Hector arrumou os óculos. A expressão confiante parecia absolutamente natural em seu rosto.
— Meu pai era policial. Ele tinha arma em casa e me ensinou a mexer desde cedo, até me levou para atirar algumas vezes. — Ele olhou para a arma em suas mãos — Por sorte, essa é uma Glock, bem parecida com a do meu pai, inclusive, então conheço bem.
— Achei que era porque você jogava muito CS — Guilherme brincou.
Hector a princípio o olhou com seriedade, mas logo abriu um sorriso.
— Não, mas eu também era muito bom no CS. — Ele olhou em volta, guardando a pistola cuidadosamente no coldre que trouxemos juntos. — Mais alguém sabe usar uma dessas? — Era uma pergunta educada e ele já sabia a resposta. Ainda assim, valorizei o respeito que ele teve em indagar. — Acredito que o melhor seja que eu fique com ela, então.
— Acho que é o melhor mesmo. — Concordei.
— Mas não achem que vou usá-la. — Hector continuou, chamando a nossa atenção. Um semblante completamente maduro e sério. — Acredito que será útil ter uma arma de fogo à mão, mas não deixem que isso os relaxe. O som que isso faz na vida real é bem diferente dos filmes, é assustadoramente alto. As ruas estão um caos, mas um som desses vai ecoar fácil e pode ser o suficiente para atrair uma montoeira de zumbis. Eu vou carregar ela por segurança, mas só deve ser usada em casos de extrema necessidade, ok? — ele cruzou o olhar sério com cada um de nós.
Ficamos em silêncio por alguns instantes, mostrando que entendíamos. Era chocante como Hector pensava rápido e sempre estava a vários passos à frente de nós. Era bom tê-lo ao nosso lado, sua aparência muito mais segura e firme em comparação aos primeiros dias, onde ele sequer conversava conosco. Ver a forma como interagia com todos e não hesitava em dar suas opiniões, ao mesmo tempo que cultivava amizades. A forma como ele se aproximara de Guilherme, por exemplo, em uma eterna troca de farpas e conversas sobre jogos, como se fossem irmãos.
Não encontramos mais nenhum sobrevivente ou indício de que alguém fugira com vida durante desde que chegamos à minha casa, o que não havia sido qualquer surpresa. Perguntava-me, enquanto fazíamos uma relação com as comidas em conserva ou enlatadas que poderíamos levar na viagem, se realmente seríamos os únicos que conseguiram sobreviver. A ideia parecia improvável, mas a crescente solidão era incômoda e incisiva. Lembrava-me do professor Rogério, de Davi e de Faber, que sobreviveram conosco pela maior parte do tempo no colégio. Onde estariam? Teriam conseguido?
A resposta me assustava.
Todos nós começávamos a desenvolver um senso de sobrevivência cada vez mais aguçado. Melissa nos ajudara mais do que uma vez na busca por mantimentos, além de se mostrar extremamente útil fora das "linhas de frente", mantendo um estoque organizado e listado de alimentos, itens de higiene, sobrevivência e armas. Com esmero quase militar, organizou nosso planejamento, estabelecendo os horários até o dia em que partiríamos. Dessa parte, quem cuidou foi Hector, que pediu ajuda de todos para cuidadosamente rascunhar um mapa tão acurado quanto conseguira, estabelecendo qual seria a melhor rota para seguirmos, tentando antecipar que ruas e lugares seriam mais e menos perigosos.
Victória esforçava-se para ser útil, oferecendo-se até mesmo para ir às ruas conosco. Acompanhou-nos um dia, matando um zumbi no trajeto, mas ainda se mostrava muito receosa. Não obstante, tentava estar presente de outras maneiras, ajudando Melissa ou Hector, mostrando interesse em qualquer ensinamento que Alana pudesse compartilhar. Mas sua maior participação foi com seu espírito calmo e paciente, muitas vezes ajudando-nos com a simples tarefa de nos manter sãos, ouvindo nossos desabafos e validando nossas dores. Talvez Victória tenha ouvido todos daquela casa, inclusive eu, sem nunca mostrar qualquer receio ou julgamento, somente a sincera vontade de ajudar da maneira mais empática que pudesse.
Alana passou a maior parte do tempo estudando as grossas apostilas do seu curso, que trouxe consigo no dia em que saímos da casa de seu pai. Também ensinou Victória da melhor forma que conseguiu sobre como evitar infecções, como higienizar corretamente objetos médicos, as melhores formas de estabilizar a pressão, dentre outros conhecimentos.
Para ser sincera, lentamente o posto que pertencia a mim, Carlos e Guilherme de "linha de frente" mostrou-se obsoleto. Conforme o mundo que conhecíamos nos deixava, a ânsia por sobrevivência impulsionava todos que, sem nenhuma surpresa, mostraram-se tão corajosos quantos nós. Melissa e Hector principalmente, mas até mesmo Victória e Alana não hesitavam em se oferecer para ajudar na hora de reunir mantimentos (mesmo que logo tenha ficado decidido que Alana era a prioridade máxima para protegermos, uma vez que, como enfermeira, era significantemente mais útil estando viva e inteira).
Quanto a Carlos, aqueles foram dias desconfortáveis, que sequer sua presença os tornavam desagradáveis para mim. Como se selado um acordo silencioso, nenhum de nós tocou naquele assunto ou tentou se aproximar mais do que o necessário do outro. Lentamente, consegui afastar um pouco o medo que sua presença me trazia, tendo certeza que, independente de ter se arrependido ou não, ele entendeu o quanto a minha ameaça era séria.
Guardar o acontecido para mim era uma escolha que não me interessava saber se havia sido correta ou não. Somente pensar em dividir aquilo com alguém trazia-me o desconforto da vergonha, a sensação ultrajante da traição. Além do mais, em um momento tão tenso, não me parecia prudente criar caos. Para o bem ou para o mal, era algo que eu lidaria sozinha.
Além disso, um sentimento que me ultrajava pela sua ousadia em ocupar a minha mente era de manter aquilo longe do conhecimento de Guilherme. Eu não achava que Carlos havia contado pra ele, pois a gostosa tensão entre mim e Guilherme se mantinha forte — mesmo que estivéssemos tão ocupados que sobrava pouco tempo para gastarmos com flertes joviais. Quando tínhamos tempo para compartilhar, este acabava destinado à constante tarefa de confortar um ao outro quando alguém precisava, seja por medo, por nervosismo ou por antecipação.
Porque, de certa forma, com o afastamento de Carlos de todos e de qualquer tarefa que não se resumisse a matar zumbis e saquear casas, sentimo-nos um pouco quebrados. O tempo em que passamos como um "trio" havia sido curto, mas inexplicavelmente intenso. Quando você luta pela sua vida ao lado das pessoas, os laços que se formam são diferentes de qualquer coisa possível experienciar em um mundo sem errantes canibais.
O problema eram os pensamentos que me assolavam junto com a realização de que partiríamos ao amanhecer do dia seguinte, rumando para o que quer que nosso futuro nos reservava. Como Carlos se comportaria agora? Era impossível negar que a sua participação e determinação em manter todos vivos havia sido imprescindível para que nós sobrevivêssemos. E se ele não quisesse mais se doar tanto? E se ele guardou rancor de mim?
E se ele quisesse partir?
Era incômodo pensar nisso, porque apesar do amargo gosto do ódio no fundo da minha garganta, eu havia entendido um pouco do seu ponto naquela noite. Antes do beijo forçado, antes da ameaça ao Guilherme, antes que ele perdesse a razão... Pensando com calma, eu conseguia decifrar seus sentimentos. Carlos era altruísta e não tratava a vida de ninguém com pouco caso. Talvez sentisse que, por isso, as mortes pesavam mais em seus ombros. Eu não concordava com ele, mas entendia porque achava ultrajante que qualquer decisão que não fosse a nossa pudesse ser aceita, já que achava que era seu dever manter todos a salvo.
De qualquer forma, não havia mais motivo para tentar decifrar o acontecido. Cada um de nós carregava as próprias marcas carimbadas a ferro em nossas mentes pelo apocalipse, mas independente de tudo, ninguém podia se permitir sucumbir ao medo, ao ódio, à loucura... se não, você virava um problema, igual aos zumbis.
Antes que eu pudesse me perder mais naqueles debates morais, meus devaneios foram interrompidos por uma voz bem-vinda.
— Acordada até tarde, então? — Aproveitei que ele não via meu rosto e deixei um pequeno sorriso se desenhar conforme a voz de Guilherme chegava até mim.
Não era por qualquer motivo que eu estava em pé depois do horário em que normalmente dormíamos. Eu tinha as minhas razões para ficar sozinha na escuridão da cidade, somente acompanhada das incontáveis estrelas no céu e do constante rosnado que já não era mais nem relevante ser mencionado, pois agora ele fazia parte do ambiente. Mei sempre ficava no quarto da minha avó quando eu pulava a janela para chegar até a varanda, para evitar passar por dentro da casa e acordar os outros. Guilherme conhecia o meu caminho particular porque me encontrara ali fora outras noites e, dessa forma, também sabia onde me procurar.
Eu já esperava que ele "não conseguiria dormir" e me encontraria na varanda, como já fizemos em diversas outras noites. Havia algo que sequer nos importávamos em nomear entre nós, e de alguma forma aquela noite também parecia significar nossa última chance. O que quer que encontrássemos ao deixar a minha casa estaria longe da tranquilidade que permitira que nosso desejo crescesse.
— É, acho que eu não estou com muito sono — Dei aquela desculpa pífia e virei para ele com um sorriso inocente no rosto.
Guilherme estava casualmente apoiado na parede e usava somente uma bermuda larga que outrora pertencera a meu irmão, sem camiseta. A visão inesperada de seu torso exposto atraiu meu olhar e um sorriso convencido se desenhou em seus lábios. Ele era mais magro que Carlos, mas seu corpo era bonito e definido.
Meus olhos voltaram para suas íris verdes e o vi repetir o movimento, mas não antes de arrastar o seu olhar pelo meu corpo inteiro, demorando-se em minhas pernas expostas pelo pijama curtinho. Quando finalmente nos encaramos, ele abriu um sorriso que flutuava entre sacana e inocente, que podia ter sido criado somente para combinar com seu rosto.
Então, diante daquela troca de olhares, me senti depois de muito tempo como uma adolescente normal. Flertar inocentemente era algo que eu imaginava que nunca mais poderia fazer, quase como a certeza de jamais provar um sorvete de novo. O gosto era tão doce quanto.
Quando a manhã chegasse, voltaríamos a ser sobreviventes lutando pelas nossas vidas, mas por enquanto poderíamos ser somente adolescentes com o mais singelo dos sentimentos.
— Eu também não estava com muito sono. Com menos ainda agora. — Ele lançou a frase sem o menor escrúpulo, piscando casualmente e me fazendo perder a postura. Senti meu rosto esquentar um pouco. Era injusto fazer esse tipo de jogo com Guilherme, pois ele sabia muito bem como ganhar.
Abri a boca, mas não soube o que responder e senti minhas bochechas esquentando um pouco mais. Então, parecendo satisfeito pela forma como me deixou sem palavras, seu sorriso convencido foi finalmente substituído por uma expressão doce e ele se aproximou de mim.
— No que você estava pensando? — perguntou, como se tivesse vindo até ali apenas para uma conversa despretensiosa.
Essa eu sabia responder, mesmo que não com o mesmo charme de Guilherme. Então, fui apenas sincera:
— Em como vai ser amanhã. — Fixei meus olhos nas estrelas, tentando fingir que ignorava a movimentação ao meu lado enquanto Guilherme se apoiava no corrimão da varanda. Tentei mais ainda ignorar o calor que vinha de seu corpo próximo ao meu. — Voltar a correr de zumbis, lutar pela vida... O de sempre.
— O de sempre. — Ele concordou. — É engraçado como esse virou o nosso pensamento corriqueiro, né? Ao invés de pensar em que rolê ir no final de semana, sei lá... — Guilherme me pegou tão de surpresa quanto da primeira vez, agora com um devaneio completamente livre de segundas intenções.
— Ao invés de pensar que tem prova de matemática na quinta e de história na sexta. — Brinquei, lembrando de quando esse era o nosso maior tipo de preocupação.
— Putz, realmente, você me lembrou que eu prefiro os zumbis.
Dei uma risada sincera.
— Você tem cara de quem não era muito bom no colégio mesmo. — Embora realmente estudássemos no mesmo ano e no mesmo colégio, não é como se tivéssemos qualquer proximidade antes de... bem, antes.
O sorriso voltou ao seu rosto.
— Que feio, Rebeca, julgando pelas aparências. Para a sua informação, eu era muito bom nas exatas. Pode perguntar pro Carlos. — Ele jogou o cabelo para trás, em um movimento exagerado. — Eu sei que a minha aparência incrível só pode dar a falsa impressão de que eu sou um jogador idiota, mas você está completamente enganada.
Ri ainda mais de sua atitude caricata.
— Realmente, que culpa eu tenho de ter sido enganada por tanta beleza? — Entrei no seu jogo e percebi que ele corou um pouco, não esperando aquilo de mim. Sorri para ele. — O que mais você fazia antes, seu playboyzinho?
Dessa vez ele quem riu, pego de surpresa por eu chamá-lo assim.
— Eu jogava futebol, muito bem também. Provavelmente melhor do que eu era em exatas. — Ele olhou para o céu, parecendo perder-se em lembranças. — Eu passava a maior parte do tempo no colégio mesmo, ou estudando, ou no treino. No final de semana eu dava algum rolê com o pessoal... Nada de mais. — Então subitamente arregalou os olhos, parecendo lembrar-se de um detalhe importante: — E eu era muito bom em jogo de tiro, sério.
Tranquei o riso.
— Não pode ser, você jogava jogo online? — Perguntei, genuinamente surpresa.
— Eu destruía nos jogos, Rebeca. — Ele deu ênfase.
— Uau! Que sexy... — Fingi suspirar, ajustando a minha cabeça nas minhas mãos para olhar para ele e piscar os cílios exageradamente.
Ele me olhou feio e só pude estender mais o meu sorriso.
— Desculpa, vencedora. Para que coisas nesse mundo você dava a graça da sua atenção? — Guilherme desviou os olhos do absolutamente estonteante céu estrelado para olhar apenas pra mim. — Você ouvia metalcore e ia beber vinho com seus amigos góticos perto do cemitério, né?
Naquele momento eu realmente terminei gargalhando, pega completamente desprevenida com aquela declaração. Distraidamente, passei o dedo pela parte de dentro da alça da minha regata, desvirando-a e os olhos de Guilherme acompanharam meu gesto, cheios de atenção. Quando apoiei os cotovelos novamente no corrimão, nossos braços se encostaram.
— Por que você pensa isso de mim? — questionei, divertindo-me.
— Ah mano, sei lá... Você era toda na sua, o cabelo e as roupas pretos, cheia de atitude. Tinha certeza que longe do colégio você usava aquelas meias rasgadas e andava com um canivete no bolso. — Tentei disfarçar o sorriso que a ideia de que Guilherme já havia reparado em mim no tempo do colégio me trouxe.
Balancei a cabeça em um sinal de "não".
— Errou. Acho que era só uma garota normal. Eu jogava handebol, muito bem também. Estava sendo cogitada para ser capitã do time oficial da cidade. — Sua expressão de surpresa me trouxe um sorriso ao rosto. — Bom, eu era boa na maioria das matérias, mas gostava de escrever redações... e quando eu não estava no colégio, eu lia bastante. Senhor dos Anéis, Game of Thrones, essas coisas. Também gostava pra caramba de HQ, sabe? Super-herói e tal...
— Não! — Ele atraiu a minha atenção com a força de sua negação, fingindo incredulidade. — Eu não acredito! — Rebeca, você era uma... nerd! — Seus olhos estavam completamente arregalados, fixos nos meus.
Dessa vez precisei cobrir a boca com as mãos para conter a gargalhada, se não acabaria atraindo todos os zumbis da cidade. Naquele momento, nada disso importava. Eu queria continuar ali rindo com Guilherme para sempre.
— Eu sou nerd? Você que destruía nos jogos online — falei com sarcasmo e virei para encará-lo de frente.
Dessa vez foi ele quem ficou um pouco vermelho, desviando o olhar. Como eu queria beijar ele naquele momento.
— Tá bom, essa não foi a coisa mais genial que eu já falei pra impressionar uma mulher... — Ele apoiou as costas no corrimão, também virando para mim. Mesmo parecendo um pouco envergonhado, aquele sorrisinho sacana não havia abandonado seu rosto por mais de dois segundos.
— Faz parte, até porque você não é exatamente sutil. — Desci meus olhos pelo o seu torso exposto, dando um sorriso divertido.
Imaginei que agora seria minha vez de deixá-lo sem jeito. Seu olhar, no entanto, permaneceu firme, perigosamente preso ao meu e ele cruzou os braços.
— Nem você, com esse decote. — Ele abriu outro sorriso, divertindo-se.
De novo sua resposta afiada me pegou de surpresa e de novo corei, sem saber como responder. Seu sorriso só cresceu vendo como eu ficava constrangida. Gui era normalmente tão tranquilo que era quase surpreendente ver como ele não tinha o menor pudor quando queria.
— Há, seu sonho. — Menti descaradamente, fingindo que não havia me olhado por algum tempo no espelho, pensando se aquele pijama era adequadamente chamativo. — Eu só uso para dormir porque o tecido é gostoso, ok?
Então os olhos de Guilherme pousaram nos meus, com aquela expressão divertida. Como se eu tivesse dado a brecha que ele esperava, ele se aproximou de mim e meu coração começou a bater com força.
— Quero ver se é mesmo. — Quando falou, sua voz saiu arrastada.
A poucos centímetros de mim, ele me fitava profundamente com o sorriso ainda emoldurado pelo rosto bonito. Quando pousou sua mão sutilmente em minha cintura, senti a eletricidade daquele toque percorrer todo o meu corpo — e ele percebeu o arrepio que causou, pela forma como deixou um riso escapar. Depois de segundos de tortura, segurou minha cintura com um aperto firme, trazendo-me para mais perto. Sentia o calor da sua mão em contato com um pequeno pedaço de pele exposto sob a barra da minha blusa.
— E o que achou do tecido? — perguntei, sem pensar, como se realmente estivesse interessada nesse assunto.
— Que nem você falou... — ele disse, quase em um ronronar enquanto aproximava seu rosto de mim. — Bem gostoso. — Senti seu aperto em minha cintura se intensificar e vi estrelas.
Inconscientemente, molhei os lábios com a ponta da língua, com a certeza de que não aguentaria manter aquele flerte por muito tempo. O que parecia ser recíproco, pois aquele foi o último segundo antes de Guilherme juntar o corpo ao meu e me fazer erguer o rosto em busca dele.
Quando nossos lábios se encontraram, por um breve segundo, houve aquela sensação leve do frio na barriga se desfazendo, o gosto doce de uma primeira experiência. Nossas bocas se tocaram com calma, conhecendo-se, e somente no tempo certo, abri passagem para que virasse um beijo de verdade.
Mais rápido do que eu jamais imaginaria, transformou-se em algo intenso, quase desesperado, conforme a ardência daquele novo calor invadia nossos corpos. Não foi gradual, mas isso provou-se não ser o que procurávamos — ou precisávamos — naquele momento, a ansiedade que a antecipação criou imediatamente queimando-se como pólvora encontrando fogo, almejando aquela sensação febril.
A queimação ardia em minha boca, meu rosto, espalhando-se implacável por todo o meu corpo. Sentia o calor do seu torso exposto mesmo sobre a regata fina que eu usava e esforcei-me para colar mais os nossos corpos. Em uma compulsão quase descontrolada, explorávamos o corpo um do outro com a mesma avidez que nossas línguas se tocavam. Suas mãos, gélidas e famintas pelo contato, pela queimação da pele, driblavam o empecilho que minhas roupas impunham.
Senti o toque de Guilherme subir, passando por todo o meu corpo, até chegar a minha nuca. Logo seus dedos entrelaçaram-se em meus cabelos, fechando-se em um aperto convidativo que servia para me aproximar ainda mais dele — como se isso fosse possível. Não era somente a luxúria que nos guiava, conforme o corpo de Guilherme me guiou até a parede com sua língua invadindo vorazmente a minha boca, mas o vazio desesperador da necessidade.
Percebi que eu estive congelada por todo esse tempo. O frio da angústia, que tornou meu ser tão desprovido de emoções quanto os mortos que nos predavam, agora derretia sob o incêndio que criamos pelo contato sedento. Seguindo seu movimento, entrelacei meus braços em volta do seu pescoço, apertando-me contra ele, sentindo a mão em minha cintura retribuir o aperto, quase sendo doloroso o suficiente para me incomodar. Quase.
Quando nos separamos para buscar ar, senti o vento da noite gélido em contato com a minha pele em chamas. Abri os olhos preguiçosamente, minha visão enevoada pelos meus sentidos encontrando os olhos quase famintos de Guilherme, angustiado por aquela separação. Em um movimento quase combinado, ele ergueu minha cintura para que eu envolvesse seu corpo com as pernas. No instante em que seu corpo me pressionou contra a parede com intensidade, voltamos a nos devorar.
Apenas um resquício de autocontrole nos impediu de continuar. A sensação da sua ereção contra o tecido fino do meu pijama mais de uma vez me arrancou gemidos sufocados com a fricção criada por nossos corpos. Se não fosse aquela tênue linha de responsabilidade, a lembrança de que estávamos do lado de fora da minha casa enquanto os outros dormiam, certamente nenhum de nós seria responsável pelos próprios atos.
Quando eu quase podia sentir que perdia a consciência, meu corpo tão quente que o frio da noite se tornava doloroso, pela última vez buscamos ar, a necessidade da separação fazendo-se presente somente para evitar a tortura que aquilo se tornava, conforme os limites foram estabelecidos. Assim que Guilherme me soltou, quase perdi o equilíbrio, buscando algum suporte na parede da minha casa. Nossas respirações pesadas seriam acusatórias o suficiente caso qualquer pessoa as escutasse naquela escuridão.
No primeiro momento, mal consegui encarar seus olhos verdes. Minha nossa, aquilo havia sido... Indecente. Sentia a ardência das marcas feitas pelas mãos de Guilherme em minha cintura, que se tranformariam em hematoma, e tinha certeza que a sensação que ele sentia era a mesma, vinda dos arranhões que agora se desenhavam em suas costas.
A segunda ação que eu tomei, com urgência, foi descer a minha regata, que estava enrolada acima dos meus peitos — até onde Guilherme a ergueu —, deixando-os expostos. Passei a mão pelo meu rosto, afastando os fios de cabelo grudados na testa pelo suor, sentindo minha pele pegar fogo.
Felizmente, quando nossos olhos se encontraram, Guilherme também estava visivelmente afetado. As bochechas estavam tão vermelhas quanto as minhas e percebi que ele casualmente mantinha o braço na frente do corpo, tentando disfarçar a ereção.
— Bem gostoso o tecido mesmo... De boa qualidade. — Ele brincou, afastando qualquer possibilidade de haver um clima estranho entre nós. Era fácil rir quando eu estava junto com ele. Era possível esquecer o apocalipse.
— Olha, essa blusa custou uns 20 reais, o tecido com certeza não é de boa qualidade. — Com o coração um pouco agitado, estendi a mão para ajeitar alguns fios do seu cabelo que estavam completamente bagunçados sobre seu rosto.
— Caramba, você me pegou. Eu não prestei atenção no tecido, na verdade.
Minhas bochechas começaram a doer de tanto que eu sorri naquela noite. Em um ímpeto que eu não pude — nem queria — controlar, estiquei-me nas pontas dos pés para deixar outro beijo em seus lábios, este suave e sem quaisquer segundas intenções. Para a minha surpresa, Guilherme envolveu os braços em minha cintura, estendendo aquele beijo.
Eu queria que aquela noite durasse para sempre, mas infelizmente o amanhã e as incertezas que ele carregava sempre estariam à nossa espreita.
Nota da autora:
Todo mundo vivo até aqui?
Minha nossa como eu amo esse capítulo 😭 Ele já era enorme antes da revisão mas eu precisei estender ele mais ainda...
de nada 🥰
Como eu amo fazer um flertezinho fofo-meio-cringe entre adolescentesssss aaaa que ódio eu amo esses dois.
Espero que tenham gostado, e me perdoem por atualizar depois da meia noite. Dessa vez a culpa não foi minha — o site ficou fora do ar!!!
De qualquer maneira, amanhã temos mais dois capítulos!
Um beijo e não sejam mordidos até lá.
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