Capítulo 27.
Assim que terminamos de jantar o risoto feito com o resto dos legumes e vegetais que já começavam a ficar velhos, coloquei-me de pé, chamando a atenção de todos. Estávamos distribuídos pela mesa de jantar (pequena demais para todos) e os sofás da sala, iluminados pelas fracas luzes de velas, um murmurinho baixo sendo nosso único som. Guilherme e Carlos ergueram os olhos para mim, cientes do meu objetivo. Nem ao menos troquei olhares com Carlos, ainda rancorosa com o que aconteceu naquela tarde.
— Er, oi. — Comecei, subitamente sentindo a pressão cair sobre mim. Era um assunto difícil de ser introduzido, embora necessário. — Desculpa incomodar, gente, mas tem algo que acho que precisamos conversar.
Aqueles que ainda comiam, baixaram seus garfos. Victória e Melissa já me olhavam, tendo terminado de comer seus pratos com pouca comida há algum tempo. Até mesmo Mei, que mastigava alto os últimos grãos de ração misturados com a nossa comida, ergueu as orelhas.
— Então, como todo mundo sabe, a comida está acabando. De novo. Mesmo que estejamos racionando ao máximo. Também logo vai faltar papel higiênico, pasta de dente, absorventes, temos poucas roupas, e sei que está se tornando realmente incômodo ficar na incerteza. Vamos precisar sair de novo em buscas, no máximo amanhã, para que possamos ficar bem por mais alguns dias. Só que as casas mais próximas que ainda não invadimos, ou que não têm zumbis dentro, ou que estão completamente trancadas, estão diminuindo de número e daqui a pouco teremos que nos afastar mais para procurar por mantimentos.
Todos me olhavam atentos, sem adicionar nada.
— E isso tudo me leva a crer que não temos mais como fugir desse assunto: o que faremos a partir de agora? Acho que já podemos nos chamar de "sobreviventes", mas não temos mais notícias de fora e faz tempo que as únicas coisas "vivas" — Fiz aspas no ar. — que vimos são somente zumbis. Ninguém sabe o que está acontecendo com o mundo... eu simplesmente não consigo aceitar a ideia de que vamos ficar aqui presos para sempre, sozinhos, tendo que sair todos os dias para buscar mais suprimentos. Deve haver lugares melhores para ficar, tem que existir... — Deixei a frase pairar no ar, incerta se deveria continuar.
— Outras pessoas vivas. — Melissa concluiu, entendendo meu raciocínio.
Assenti e em seguida aguardei, ansiosa. Esperava que alguém quisesse adicionar algo, concluir o meu pensamento ou somente dar uma sugestão, porém todos permaneceram em silêncio, os olhos atentos em mim.
— Bom, nem eu sei direito o que estou tentando dizer... Só acho que esse assunto teria de ser levantado uma hora ou outra e acho que é o momento certo. Uma hora a comida vai acabar, uma hora não teremos mais onde buscar suprimentos e... ainda estamos no meio da cidade. Estamos seguros, mas por quanto tempo? Existem incontáveis dessas criaturas na rua.
— Rebeca, perdão, mas você está sugerindo que devemos sair daqui? — perguntou Alana, enrolando uma mecha de seus cabelos azuis e no dedo. Ela não parecia particularmente assustada ou receosa, como eu imaginava sua reação.
— Na verdade, eu queria estender essa discussão a todos. Eu tinha uma ideia para quando eu chegasse em casa e reencontrasse minha avó, mas agora... não depende mais só de mim. Eu, Guilherme e Carlos — nem sequer troquei olhares com ele, mas sua súbita movimentação mostrou a surpresa comigo mencionando seu nome. — achamos que ficar aqui não é mais uma boa ideia. A casa serve de abrigo, mas não é grande o suficiente para que consigamos viver bem. Os suprimentos acabam muito rápido, por algum tempo conseguimos viver reunindo o que encontrámos nas outras casas, mas por quanto? Semanas? Com sorte um mês?
— Mas sair daqui também implica em reunir essas mesmas coisas: comida, água... Porém sem termos um lugar como base. — Victória constatou, chamando minha atenção pelo seu interesse em participar.
— Acho que seria possível, principalmente porque ainda estamos em uma cidade. Talvez com viagens curtas, sempre evitando os centros mais habitados e o anoitecer, conseguimos avançar de dia e encontrar algum lugar para passar a noite. — Guilherme falou, passando a mão em uma barba fina que começava a nascer em seu queixo. Senti um pouco de vergonha por reparar nisso naquele momento. Meu Deus, eu era uma idiota.
— Sim, concordo com vocês. Seria difícil, mas possível. Considerando que sempre estaríamos em movimento também, não conseguiríamos esgotar o "estoque" disponível em uma região. A verdadeira questão é: para onde estaríamos indo? — Hector perguntou.
Um súbito silêncio se instalou na sala, sem que ninguém soubesse responder. Para onde deveríamos ir? Que objetivos se tem em um mundo que caminha para a completa ruína? Somente a sobrevivência já era um objetivo válido? Hector não tinha essa intenção, porém acabei me sentindo muito deslocada depois de sua pergunta, como se eu não tivesse menor capacidade de manter aquele debate.
Depois de vários segundos de silêncio, Carlos se pronunciou:
— Para longe da cidade. É o melhor a se fazer. Nós moramos em uma capital com quase 500 mil habitantes, quantos desses viraram zumbis? Quando saímos do centro, o número dessas coisas também diminuiu, talvez quanto mais nos afastarmos da cidade grande... mais tranquilo seja. Talvez a gente não precise viver cada segundo tendo medo de morrer.
— Eu não acho que isso seja mais possível. — Alana adicionou, com pesar. — Mas de qualquer forma, entendo o que você quer dizer. Caso outra coisa como a explosão da ponte se repita, pode mover incontáveis dessas criaturas de novo. Ficar perto de grandes centros é perigoso, e estamos bem na capital...
— Mas "para longe da cidade" é algo bem genérico, mesmo assim. — Melissa adiantou-se. — O quão longe iríamos? Vamos para outra cidade ou vocês sugerem que, sei lá, vivamos acampando? Porque eu acho essa segunda ideia horrível. Não quero ser a pessoa que apresenta mais problemas, mas estamos em abril e o calor é insuportável, mas não esqueçam que eventualmente o inverno vai chegar. E aqui no sul isso não é brincadeira, principalmente se nos afastamos do litoral.
— Eu pensei nisso também. — Hector participou. — Quando o inverno chegar, precisaremos estar preparados. Pelo menos com roupas adequadas para sair na rua e lugares aquecidos para dormir, independente de onde isso seja. Isso envolve reunir cobertores, um possível lugar para acender uma lareira, mais espaço... Com todo o respeito, Rebeca, sua casa nos serviu muito, mas é um lugar pequeno para que sete pessoas e um Pastor Alemão consigam viver confortavelmente por muito tempo.
Nesse momento, achei que seria válido introduzir a minha ideia inicial, a que eu planejava seguir ao me reencontrar com minha avó.
— Antes de chegarmos aqui, eu tinha uma ideia. — Chamei a atenção deles. — Eu pretendia ficar escondida com a minha avó até o caos inicial passar, que foi basicamente o que nós fizemos. Depois disso, queria tentar chegar ao extremo oeste do estado, para o interior. A minha família por parte dessa avó é de lá. Não espero encontrar mais alguém vivo, mas pensei que o número de pessoas lá é menor, existem campos abertos, é possível criar animais e plantar... Não que eu tenha qualquer experiência com esse tipo de coisa, mas na hora me parecia uma ideia boa.
Hector assentiu, pensativo. Seus dedos estavam entrelaçados na altura de sua boca, com os cotovelos apoiados na mesa, dando a ele uma aparência séria, como se estivesse pensando na próxima estratégia de venda de sua multinacional.
Guilherme retomou a conversa:
— Eu acho uma boa, também. Quanto mais para o interior formos, seguindo essa lógica, melhor vai ser. Agora, uma coisa importante: como nós vamos para lá?
Um silêncio caiu sobre a sala e Guilherme se viu obrigado a continuar:
— Digo, levamos quase quatro dias para chegar do colégio até a casa da Rebeca, mesmo levando em conta, bem, a ponte e tal. Mas isso é algo que devemos sempre ter em mente: pode haver imprevistos em qualquer lugar. Nos mover a pé é uma realidade dentro da cidade, mas dentro do estado? Porque, fato é, ninguém aqui sabe dirigir.
— Bom, meu tio me ensinou algumas coisas quando estivemos no campo. Mas não tenho a menor confiança em fazer isso sozinho. — disse Hector. — E acho até mais arriscado "aprender" agora: todas as estradas, todos os lugares estão obstruídos por acidentes, zumbis, corpos mortos...
— A gente não pode só atropelar eles? — Guilherme ergueu uma sobrancelha e recebeu um olhar gélido de Hector:
— Claro que não. Você sabe o que é um acidente de carro? Atropelar um zumbi é atirar um peso de 70, 80 quilos contra o carro. É óbvio que não podemos só atropelar eles.
Guilherme encolheu os ombros, um pouco sem jeito. Se não estivéssemos em um momento tão importante, eu pararia para consolá-lo. Foco, Rebeca.
— Bom, é claro que ir de carro seria a melhor opção, mas também chamaria atenção, pelo menos dentro das cidades, né? — Mudei o rumo da conversa.
— Não precisamos decidir isso agora, se chegarmos em um consenso de que devemos sair daqui logo. — Carlos, para minha surpresa, quem me respondeu. — Eu sei que é arriscado, mas nós já nos viramos bem nas ruas, pelo menos o suficiente para chegar até aqui. Evitando as partes mais habitadas, nos movendo com cautela, conseguimos pelo menos nos afastar o suficiente da cidade... continuar até um bairro mais afastado, talvez um condomínio... Chegando lá, nos estabelecendo, podemos decidir o que fazer. — Não que eu quisesse admitir, mas Carlos parecia estranhamente calmo. Eu não esperava nenhum pedido de desculpas vindo dele, somente o fato de não se aproximar de mim sendo o suficiente para que eu não quisesse matá-lo.
Todos ficaram em silêncio, pensando sobre o que Carlos dissera, até que Melissa se pronunciou:
— Gente, só uma coisa: Hector, Alana, Carlos... Vocês têm, tinham casas aqui, né? Vocês não querem ir para lá? Sabe, pegar algo, ver se... — Melissa iniciou, mas deixou a frase morrer no ar. Ver se mais alguém sobreviveu, era o que ela queria dizer, mas não teve coragem. Ela não queria assumir a responsabilidade pela esperança criada.
— Não. — Carlos respondeu somente isso, inclinando-se na cadeira.
Alana pareceu hesitar, encolhendo os ombros. Olhou para Hector, mas eu não soube dizer o que ela esperava dele. Desde que chegamos, os dois começaram a passar bastante tempo juntos, tanto trocando ideias e conhecimentos quanto horas intermináveis de assuntos banais. Tive certeza que eles já conversaram sobre aquilo, e nessa hora senti um frio correr pela minha espinha, com medo somente da possibilidade deles pensarem em ir para casa sozinhos.
— Eu... Bom, quando meus pais se divorciaram, minha mãe e minha irmã voltaram para Minas Gerais. Meu pai era daqui e eu fiquei para terminar a universidade... E depois do que aconteceu com meu pai, eu meio que não tenho mais família aqui. Não tenho motivos para querer voltar para onde eu morava. — ela falou, mantendo os olhos em Hector.
A princípio, não acreditei no que meus olhos viram. As mãos de Hector tremiam, os dedos ainda entrelaçados. Percebi então que todo o seu corpo tremia um pouco. Por trás das lentes de seu óculos, seus olhos estavam fechados. Ele tentava respirar para se acalmar, porém estava falhando: queria segurar o choro. Uma lágrima solitária deslizou pela sua bochecha.
Alana colocou uma mão amigavelmente nas costas de Hector, em um movimento de carinho, oferecendo-lhe apoio. "Calma, calma..." falou, a voz baixa. Eu e Guilherme trocamos olhares surpresos. Na verdade, ninguém esperava ver Hector assim. Tive o impulso de falar alguma coisa, mas nada me surgiu à mente. Carlos permanecia impassível, observando a situação.
Victória esticou-se sobre a mesa, colocando a mão magra sobre os dedos entrelaçados de Hector. Ele abriu os olhos, brilhantes pelas lágrimas, e pode ver o sorriso carregado de empatia da menina à sua frente.
— Tá tudo bem, se você quiser falar sobre isso depois, não tem problema.
Hector sorriu para ela, respirando fundo mais algumas vezes. Em seguida, retirou os óculos e começou a limpar as lágrimas que se formaram, em silêncio. Melissa foi até a pia buscar um copo de água (da torneira mesmo, uma vez que a água da bombona havia acabado há dias).
— Desculpa, eu... — Hector começou, tomando um gole de água. — Obrigado, gente. Eu só... Pensei bastante nisso ultimamente. — Ele colocou seu óculos no lugar, passando a mão pelos fios de cabelo acobreados. Algumas gotas de suor escorriam por seu rosto. — Meu pai morreu baleado em serviço há 1 ano. Ficamos eu, minha mãe e minha irmãzinha. — Hector respirou fundo, mais uma vez. — Depois que ele faleceu, minha mãe quis voltar para a casa da minha avó, em Antônio Carlos — Referia-se a um município a mais ou menos 30 km do meu bairro — enquanto eu continuei no nosso apartamento para terminar os estudos.
Hector bebeu mais um gole d'água, deixando-nos na expectativa. Todos prestavam atenção na sua história com certo pesar, deixando-o um pouco desconfortável. Não estava acostumado a ser o centro das atenções em momentos tão vulneráveis.
— Eu pensei nisso essa semana inteira... Sobre voltar. Eu acho que é tarde, sendo realista. Há alguns dias eu preferiria voltar independente do que iria encontrar, mas depois do que aconteceu com a Rebeca... — Ele teve dificuldade em terminar a sua frase. — Pensando com clareza, eu acho que seria arriscado tentar voltar, vendo como as ruas estão, como as últimas notícias que tivemos acesso terminaram... E tenho medo de só encontrar coisas que eu não quero ver.
Olhei de canto de olho para Carlos, quase desejando ver uma cara de surpresa, vendo como todos do grupo pareciam ter, de uma maneira ou de outra, concordado em seguir a ideia. Como estavam dispostos a fazer sacrifícios para o bem de todos. Eu esperava que ele se sentisse mal.
— Eu entendo, cara. Sinto muito por tudo e entendo pelo que você está passando. — Guilherme colocou a mão no ombro dele, aproximando-se um pouco. — Mas se você mudar de ideia, também podemos te ajudar a chegar até lá. Você...
— Não. — Hector cortou Guilherme. Firme, porém gentil. Fungou mais uma vez e ajeitou os óculos. — Eu entendo, obrigado, mas não precisa fazer isso. Quero sobreviver, quero que todos fiquemos vivos. — O seu tom já estava diferente, voltando a concentrar-se em que estratégia deveríamos seguir. — Vamos nos concentrar em nos afastar da cidade. Talvez até para outro município... Não precisa ser Antônio Carlos, mas outros próximos, na direção do Oeste. Vindo para cá, passamos perto de um posto de gasolina, podemos parar lá e arranjar um mapa, depois ver para onde seguir. Como ainda estamos perto da praia, acho que podemos continuar próximos do mar, contornando as áreas habitacionais, até sair da cidade. Depois seguir de vez para o oeste, ver como estão as estradas principais.... quando conseguirmos nos estabelecer melhor, decidimos se vamos realmente até o extremo oeste ou...
À medida que Hector começava a falar, desenrolando cada vez mais o nosso novo plano e trazendo mais frescor à memória que eu tinha dele, consegui sentir um pouco de alívio. Partiríamos em breve e, claro, era algo para o qual eu precisaria me preparar, mas havia uma chama de esperança.
Éramos sobreviventes, afinal.
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