Capítulo 26.
— Ah não! — Ergui a voz, fazendo as orelhas de Mei levantarem. Estávamos apenas as duas na parte de trás da minha casa e, apreensiva, ela manteve os olhos grudados em mim.
— Eu não aguento mais uma barriguinha tão gostosa! — Agarrei minha cachorra com força, puxando-a para o meu colo. Mei imediatamente deitou-se com a barriga para cima, seu enorme rabo balançando com força. — Eu vou ter que fazer cosquinha! — Minha voz soava idiota enquanto eu coçava sua barriga, fazendo Mei bater a pata em desespero. — Eu vou comer essa cachorrinha inteira! — Aproximei o rosto de sua barriga, fazendo um som alto de "nhom nhom nhom" que deixava Mei maluca.
Minha cachorra não conseguia controlar a emoção, sacudindo-se no meu colo enquanto eu gargalhava com gosto. Era bom finalmente estar melhor para dar a atenção e carinho que Mei merecia. Ainda era como se meu coração estivesse preso em um bloco de gelo, mas aos poucos sentia que ele derretia.
Só percebi a presença de mais alguém quando identifiquei Carlos pelo canto dos olhos a alguns metros de distância e tentei disfarçar o susto que aquela súbita aproximação me deu. Ele tinha um sorriso no rosto enquanto me assistia brincar com Mei e senti as bochechas ardendo de vergonha por ter sido pega naquele momento, falando com a voz boba que eu usava apenas com minha cachorra. Dei dois tapinhas nas costas de Mei, indicando que a brincadeira havia acabado e ela me olhou completamente desolada.
Eu não havia falado com Carlos desde nossa briga de 2 dias atrás. Em determinado momento, ele até se ofereceu para ir sozinho buscar mais comida nas casas vizinhas — o que é claro que eu e Guilherme negamos e insistimos para acompanhá-lo, mas eu tinha certeza de que ele não teria hesitado em ir completamente sozinho. A maior parte daqueles dias ele passou afastado de nós, lendo algum livro que encontrava na minha casa ou ajudando quando solicitado pelos outros em alguma tarefa. Seu comportamento recluso chamou atenção dos nossos outros colegas, e o clima delicado passou a afetar a todos. Percebi que principalmente Victória teve dificuldades para se adaptar, passando muito tempo de cama, na companhia de Alana.
Embora ainda irritada com o que Carlos falara naquela noite, eu não tinha interesse em continuar com aquele desentendimento idiota. Se ele não tivesse vindo falar comigo, provavelmente eu mesma teria ido até ele, eventualmente. Tentei dar-lhe um sorriso gentil, não deixando minha vergonha por ter sido pega em um momento tão constrangedor transparecer.
— E aí? — perguntei, mecanicamente, tentando parecer casual, enquanto fingia que mantinha a atenção em Mei.
— De boa. — Carlos se aproximou de mim, ficando em pé ao meu lado. Dei os últimos dois tapinhas na cabeça de Mei e me levantei para olhá-lo do mais igual que os quase 15 centímetros a mais dele permitiam. Ele estava de braços cruzados, mas a expressão parecia calma.
Permanecemos em silêncio por alguns segundos, enquanto eu esperava que ele começasse a falar (afinal, fora ele quem viera até mim). Sua postura parecia relaxada, mas não conseguia disfarçar a dificuldade em encontrar as palavras:
— Escuta, foi mal pela forma como eu agi antes — falou, sem fazer contato visual comigo. — Não queria ter sido grosseiro com você.
Demorei alguns segundos para encontrar uma resposta, talvez um pouco frustrada pelo pedido de desculpas tão simplista.
— Tudo bem, mas acho que você deveria pedir desculpas para o Gui também. — Sugeri, tentando ser gentil, mas senti que sua postura ficou um pouco mais rígida. — Espero que você entenda que não falei aquilo apenas para te contrariar, mas porque realmente acredito em cada palava.
— Não se preocupe, eu gosto disso em você. — Pela primeira vez, seus intensos olhos escuros pousaram sobre os meus. — Você não tem medo de falar, sabe se virar e também pensa nos outros... Por isso sua opinião é importante.
Senti uma onda de satisfação ouvindo aquelas palavras. Apesar de tudo, Carlos era um sobrevivente admirável e era impossível não apreciar que ele me reconhecesse daquela forma. Além disso, suas palavras sugeriam que ele pelo menos refletiu sobre o que eu falei.
— Bom, obrigada. Eu realmente acho importante que os outros também se sintam assim, porque vai ajudá-los a desenvolver o espírito de sobrevivência de quem faltar. — Comecei a falar, percebendo que Carlos mudou o peso do corpo em um movimento que o fez se aproximar mais de mim. — A-até porque eles podem nos ajudar em assuntos que terminam em impasses, como o de ontem.
— Sim, acho que você tem razão.
Carlos mantinha seu olhar em mim e sua expressão era difícil de ler. Estava com um sorriso preguiçoso no rosto e, de alguma forma, apesar de reconfortante ouvir que ele finalmente concordava comigo, parecia estranho aquela súbita passividade depois de discordamos tanto sobre aquele assunto.
O silêncio se estendeu e a nossa proximidade começou a me incomodar. Tentando parecer natural, dei um passo para trás a fim de criar uma distância, mas imediatamente senti minhas costas se encontrando com a parede. Quase como em resposta, Carlos se aproximou mais um pouco, os olhos ainda fixos nos meus.
— E eu também acho que formamos uma boa dupla. Podemos fazer o que você acha melhor sobre tomar as decisões, mas não pode negar que os outros olham para nós como líderes. — Falou, tranquilamente, enquanto apoiava o braço na parede atrás de mim e se aproximava um pouco mais. — Acho que eu e você temos muita sintonia.
Desviei os olhos dele, sentindo meu coração acelerar, pois só então percebi que devia ter dado os sinais errados... Eu gostava de Carlos como um amigo, mas dificilmente passaria disso. Era impossível negar sua beleza ou charme, mas a frieza e seriedade não eram coisas que me atraíam. O que apenas piorava quando ele se tornava nervoso ou até agressivo. Será que em algum momento ele me flagrou olhando e entendeu tudo errado?
Por alguns segundos, não soube o que dizer, torcendo para que meus movimentos hesitantes e a constante negação em manter contato visual servissem para que ele entendesse minha falta de interesse. Antes que eu pudesse encontrar as palavras certas para não magoá-lo demais, Carlos diminuiu ainda mais a distância entre nós.
Meu coração apertou quando senti o calor dos seus lábios sobre os meus. O contato físico não era ruim, mas o fato de eu não sentir aquele tipo de interesse por ele tornava a experiência estranha. Querendo esclarecer tudo, coloquei as mãos em seu peito para afastá-lo e virei meu rosto.
— Carlos, espera. Eu...
Fui pega de surpresa quando ele não recuou, mas uniu novamente nossas bocas em um segundo beijo. Eu não havia sido clara o suficiente? Tentei ser mais incisiva dessa vez, empurrando o seu peito com força para afastá-lo, não querendo mais depender de suas interpretações.
E senti a força contrária de Carlos, ignorando completamente meu esforço. Lentamente, a realização de que ele não estava sendo ingênuo, porém fazia aquilo intencionalmente, começava a cutucar o meu coração como a ponta de uma agulha. Aquele sentimento de traição conseguia ser ainda pior do que sua língua tocando na minha. Carlos continuou forçando seu corpo contra o meu, pousando uma mão na minha cintura para me manter no lugar.
Senti vergonha por ser tão desrespeitada, então nojo e até mesmo medo, mas tudo se condensou em um único sentimento: raiva. Sentir sua mão passeando pela pele exposta da minha cintura, ver como ainda mantinha as pálpebras fechadas, apreciando tudo... Eu só queria que ele me largasse, mas Carlos era muito mais forte e não demonstrava qualquer dificuldade em me manter presa ali.
Sabendo que eu não venceria aquela disputa de força e motivada pelo meu ódio crescente, recorri à única outra solução possível. Fechei o punho, cravando as unhas na pele para suportar o ódio e o afundei na altura do seu estômago. Nem batendo em zumbis eu havia usado tanta força.
Uma lufada de ar entrou na minha boca conforme o mesmo ar escapou de seus pulmões. Carlos fraquejou, finalmente me libertando do peso do seu corpo. Levou suas duas mãos para a barriga e se curvou, arfando. Mei começou a latir, sem entender o que acontecia. Provavelmente não considerou Carlos como uma ameaça porque, assim como eu, até então achava que ele era um amigo.
— Qual é o seu problema?! — Vomitei as palavras, ainda sem acreditar no que havia acontecido. Limpei minha boca com as costas do braço, tentando afastar qualquer resquício dele. — Você é imbecil ou os zumbis comeram a merda do seu cérebro?
Carlos não me respondeu e manteve o corpo dobrado, envolvendo a barriga com os braços e respirando com dificuldade. Talvez eu tivesse exagerado na força, porém não senti nenhum pingo de remorso.
— O que está acontecendo com você? — Continuei, sem erguer a voz. Nada daquilo era culpa minha, mas não podia evitar de me sentir humilhada e desrespeitada, e não queria que mais pessoas soubessem. — Eu normalmente relevo a sua atitude babaca porque você é um membro importante desse grupo e sabe que é. Eu não posso nem imaginar o que esse apocalipse está fazendo com a sua cabeça, porque está fodendo a sanidade de todo mundo, mas eu não vou aceitar que você pense que pode fazer o que bem entende!
Mei estava ao meu lado, atenta e esperando por algum comando. Eu bem que gostaria de mandá-la dar uma mordida nele, mas eu só queria que aquilo acabasse logo.
— Só vou te dizer uma vez: recomponha-se e peça ajuda ou o que você achar melhor! Porque se você pirar, vai foder com todo mundo e isso eu não vou permitir. — Dei-lhe as costas, indo em direção à porta. Senti um alívio indescritível quando alcancei a maçaneta e olhei uma única vez para trás a tempo de ver seus olhos inexpressivos focados nos meus. — E se você encostar em mim de novo, eu te mato.
Instintivamente olhei em volta para me certificar de que mais ninguém havia presenciado aquele momento. Tudo o que eu menos queria era que mais alguém tomasse conhecimento daquilo e imaginava que, depois de ser rejeitado, Carlos não falaria para ninguém. Não pensei em consequências ou sequer em expor suas atitudes para o resto do grupo, pois a nossa situação já era difícil demais tentando sobreviver.
A verdade é que eu só estava cansada e humilhada.
Chamei Mei para entrar junto comigo e fechei a porta atrás de mim com um baque, deixando Carlos sozinho do lado de fora.
Nota da autora:
Finalmente chegamos no capítulo divisor de águas 👀
(pelo menos um deles)
Espero não ser agredida.
Não consegui postar o capítulo ontem, mas nada temam pois teremos atualização TRIPLA hoje.
Não sejam mordidos e até logo!
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