Capítulo 22.
A primeira coisa que percebi é que não havia paz após a morte.
Somente dor e medo.
A segunda foi que aquela não era a morte.
Afinal, nem mesmo ela era capaz de ser tão horrenda.
Quando abri os olhos, deparei-me com um quarto familiar, mas de um ângulo diferente. Não porque eu nunca havia deitado naquela cama, mas sim porque era o lado que a minha avó dormia. Reconheci as paredes amarelo-claras e o paninho florido sobre a mesa de cabeceira e, de alguma maneira, aquilo acalmou meu coração acelerado.
A outra visão reconfortante era a de um Pastor Alemão enrolado em torno de si mesmo no chão, dormindo tranquilamente ao meu lado.
Queria abraçá-la, mas tive a decência de permanecer parada, pois mesmo completamente imóvel o meu corpo já doía como o inferno. Eu tinha medo de ser rasgada pela dor caso tentasse me mexer.
A última coisa que eu percebi foi que eu não era um zumbi — ainda, pelo menos. Então uma tristeza inconsolável invadiu o meu corpo, lembrando o motivo pelo qual eu estava naquela cama, a visão horrenda de minha avó transformada em um monstro.
Foi um turbilhão de emoções confusas e imagens difíceis. Por sorte, não precisei me concentrar nelas ou sequer sofrer com aqueles sentimentos, afinal, tão subitamente eu havia acordado, de maneira igual eu apaguei.
Quando acordei de novo, percebi que a dor estava exatamente igual.
A sensação que eu tive foi que a segunda vez apagada foi mais longa. Olhando para baixo (ainda somente movendo os olhos, sem a coragem necessária para executar um movimento de verdade com meu corpo), percebi que eu não estava usando as mesmas roupas — mas eu não saberia dizer se da primeira vez que acordei eu já estava assim.
Eu usava uma camisola de algodão e a minha pele estava limpa. O pensamento de que alguém me limpou enquanto eu estava desacordada era vergonhoso, mas sentia-me anestesiada de tal forma que aquilo sequer pairou em minha cabeça por muito tempo.
Há quanto tempo eu estava apagada? Por quanto tempo fiquei sozinha?
Senti a boca completamente seca e meus lábios doloridos, talvez com feridas de desidratação. Estiquei a mão por reflexo, em busca do copo de plástico com canudo que eu sempre deixava ao lado da minha cama quando ia dormir.
Para a minha alegria, de fato eu encontrei água, porém em um copo de vidro na cabeceira da minha avó.
Meu ombro direito pareceu explodir em dor com aquele movimento. Foi uma agonia apenas trazer o copo à boca, mas o alívio em hidratar meus lábios secos era igualmente indescritível. Mesmo assim, quando tentei falar, foi como se eu estivesse tentando engolir areia:
— Mmmm... — o som saiu arranhando a minha garganta, mas eventualmente consegui formas as palavras que eu queria, minha voz tão fraca quanto um sussurro: — M-mei.
Mesmo baixo, foi o suficiente para que a ponta de duas orelhas pretas aparecessem na minha linha de visão. Em segundos, Mei saltou para cima da cama e começou a me lamber, eufórica. Tive que me mover para acalmar o seu ataque de carinho e somente colocar meus braços em volta da cabeça dela doeu tanto que fez meu estômago revirar.
Assim que ela se deitou ao meu lado e apoiou a cabeça na minha barriga, os olhinhos escuros atentos em mim, minhas lágrimas começaram a sair em descontrole. Meus sons de choro inicialmente a confundiram, pois não deveria imaginar qualquer motivo para que eu me sentisse aflita depois de nosso reencontro.
Fiquei tantos dias pensando em Mei e agora que ela estava em meus braços, tão feliz quanto seu coraçãozinho de cachorro conseguia aguentar, eu nem sequer me sentia capaz de comemorar com ela. A dor de faltar somente uma pessoa para que tudo ficasse perfeito era indescritível. A saudades do sorriso carinhoso e dos gestos calmos da minha avó.
Eu não queria pensar naquilo, mas simplesmente não era possível. Imaginava a minha avó terrivelmente confusa e apavorada diante de tantos seres monstruosos, que se para mim já eram difíceis de assimilar, quanto não deveria ter sido para ela? Imaginar a dor que ela sentiu quando foi atacada, o quanto, em meio a tudo isso, não estava preocupada comigo? Meu Deus, ela havia se dado ao trabalho de levar Mei consigo, mesmo que minha Pastor não fosse tão obediente quando não estava comigo.
Enfiei o rosto nos pelos macios da minha cachorra, a culpa me sufocando. Eu não consegui chegar a tempo, eu não consegui salvar nenhuma das pessoas que precisou de mim e agora estava completamente sozinha no mundo. Chorava pela morte da minha avó, mas não tinha qualquer noção do paradeiro do meu pai ou de Vinícius. Nem mesmo era capaz de cuidar de Mei naquele momento, tão confusa com o repentino desespero que me consumiu.
Apertei mais seus pelos, em busca de qualquer conforto, mas só conseguia me sentir um lixo.
Àquela altura eu já havia perdido a noção do tempo. Só saberia encontrar alguma cronologia no fato de que, quando Alana entrou no quarto, eu ainda estava abraçada na Mei.
Ela foi gentil, pediu licença e sentou ao meu lado, trazendo alguns apetrechos consigo. Por mais que eu sentisse vontade de retribuir a gentileza, eu não encontrava em mim forças para conversar. Nem ao menos queria ela lá, só queria ficar sozinha.
Alana tirou a minha temperatura, testou os reflexos dos meus olhos, mediu a pressão e apertou um pouco o meu corpo, perguntando onde doía. Respondi quando necessário com acenos de cabeça, falando somente quando não havia outra forma. Ela me explicou que já haviam se passado 24h e, apesar de ter tido febre, esta havia baixado e mais nenhum sintoma da doença apareceu, então podia ser apenas resultado da exaustão. Que era o caso da dor extrema que eu sentia, o esforço daquele dia resultando em algumas distensões musculares. Alana deu a entender que esteve no quarto outras duas vezes, para me oferecer analgésicos e colocar gelo nos lugares distendidos, embora eu realmente não tivesse qualquer lembrança daquilo.
Ainda que eu não respondesse, conforme percebeu que meus olhos estavam preguiçosamente pousados nela, continuou falando, explicando que eu ficaria bem e ela voltaria em breve para me examinar. Todos estavam cientes da minha situação e a postos caso eu precisasse.
Qualquer movimento doía, por isso, quando ela foi embora, eu permaneci imóvel a maior parte do tempo, deitada de lado sobre um travesseiro. Não somente pela dor, mas eu não sentia qualquer vontade de me mexer, além dos raros casos em que fazia carinho em Mei. Infelizmente, a agonia não era somente física, meu coração afundado em uma angústia que eu nem mesmo saberia descrever. As lembranças da minha avó, do risco em que coloquei meus amigos, das minhas falhas durante aqueles dias, tudo se repetia infinitas vezes em minha mente como um filme eterno. Não importava o quanto eu me esforçasse, não conseguia desviar, nem mesmo por um segundo, a minha mente daquelas lembranças.
A paz só chegava quando eu dormia, mas infelizmente nenhum sono foi eterno. Junto com a angústia excruciante, um permanente sentimento de torpor tirava toda a vontade que eu tinha de levantar-me da cama. Eu somente esperava o tempo passar, dividindo as minhas horas entre sofrer, chorar ou não sentir nada.
Eventualmente, alguém além de Alana me visitou. Victória trouxe uma bandeja com um prato fundo fumegante e um copo d'água. Assim que nossos olhos se encontraram, ela abriu um sorriso tímido, os óculos dourados escorregando pelo nariz. Parecia um pouco cansada e estava ainda mais magra.
Ela me ofereceu comida, que recusei sem me preocupar em ser muito educada. Meu estômago estava completamente vazio e doía de fome, porém a simples ideia de colocar qualquer tipo de alimento na minha boca já fazia todo o meu estômago se embrulhar. A sensação era péssima.
Victória entendeu e me deu mais algumas horas sozinha, mas inevitavelmente voltou, dessa vez também o pote de ração da Mei. Senti o impulso de fazer uma piada, perguntando se aquilo era para mim, mas não tive ânimo de colocá-la em palavras. Ainda gentil, porém mais insistente, disse que agora não teria jeito e que eu precisaria comer.
Toda a experiência foi terrível, mas Victória foi calma e paciente. Ajudou-me a sentar, o que já me causou pontadas de dor, e ofereceu ajuda para dar comida na minha boca. Em qualquer situação normal eu repudiaria a ideia, mas naquele momento nada mais realmente parecia importar. Melissa fez uma sopa de ervilhas, aproveitando ao máximo o que havia dentro da minha casa antes de colocar qualquer pessoa em risco para procurar mais comida. O gosto era bom, mas a sensação de algo sólido em minha língua fazia meu estômago embrulhar e a garganta trancar. Demorei quase meia hora para conseguir comer menos da metade do prato de sopa, mas em nenhum momento Victória ficou aborrecida.
Ao invés disso, contou que Melissa estava organizando tudo e fez um inventário de toda a comida que tínhamos e de como conseguiríamos aproveitá-la por mais tempo. Alana estava cuidando da parte médica (embora toda a sua atenção realmente estivesse em mim). Os quartos foram divididos e ela, Melissa e Alana estavam dormindo no meu, enquanto Hector ficou no quarto do meu irmão, que só tinha uma cama e Guilherme e Carlos estavam na sala. Sabiam que, em breve, alguém teria que sair para encontrar suprimentos, mas queriam adiar aquilo ao máximo. A luz ainda funcionava, assim como a televisão, mas a maioria dos canais estavam fora do ar e os que não estavam, apresentavam somente reprises de filmes. Quando perguntei, ela me informou que 6 dias já haviam se passado desde quando saímos do colégio. Aquela havia sido a única vez que eu participei da conversa.
Comi até deixá-la satisfeita e tomei toda a água. Ela certificou-se de que Mei também estava hidratada e alimentada e a levou para fazer xixi. Após isso, deixou-nos novamente sozinha, com um "boa noite" respeitoso. Mais ninguém foi me ver naquela noite.
Na manhã do dia seguinte, a luz acabou de vez. Enquanto eu focava o meu olhar em absolutamente nada do lado de fora da janela, o abajur que me iluminava e o relógio digital apagaram subitamente, seguidos de várias vozes em uníssono do lado de fora. Mei ergueu as orelhas, mas não saiu do meu lado.
Os dias seguintes se arrastaram, sem que eu prestasse atenção neles. Passei a maior parte do tempo na cama, até que lentamente a dor foi se tornando suportável (ou eu somente me acostumava com a tortura). Victória ou Alana costumavam me trazer comida e remédios e Melissa perguntou se eu queria ajuda para tomar um banho, mas recusei todas as vezes. Sempre que precisava usar o banheiro, saía do quarto e voltava o mais rápido possível. Embora não quisessem transparecer, a cada dia a minha situação trazia mais nervosismo à cada uma delas.
Enquanto começava a me recuperar da dor, às vezes andava pelo quarto. As paredes clarinhas, os anjinhos de porcelana, os paninhos de crochê, tudo me fazia lembrar da avó Amélia e de seu jeitinho carinhoso. Quando abri o armário de madeira e o aroma do perfume floral chegou até mim, tive uma crise de falta de ar. Deitei no chão, abraçada nas pernas e chorando compulsivamente, e Mei imediatamente desceu da cama e se aconchegou ao meu lado, quase como se aquele fosse um comando que ela já conhecesse.
No quarto dia (mas eu não tinha certeza se era o quarto mesmo), Hector apareceu para conversar comigo e perguntar como eu me sentia. As meninas foram respeitosas e deram espaço ao meu luto, mas em nenhum momento fui questionada diretamente. Olhei para ele, quase com raiva, mas não tive coragem de falar qualquer coisa ruim. Pensei ter sido sincera quando falei que queria morrer ali e que se eles quisessem podiam ir embora, mas ele categoricamente ignorou as minhas besteiras. Depois falou que provavelmente perdeu a mãe, mas que talvez fosse uma benção não a ver transformada em um monstro e que sentia muito por mim. Ele não era sutil ou bom com as palavras, mas de qualquer forma, sua coragem em vir conversar comigo me trouxe alguma alegria.
— Eu e o Guilherme vamos sair amanhã. — ele disse, mudando de assunto. Virei o rosto em sua direção — A gente decidiu que não era uma boa ideia que ele e Carlos fossem juntos, porque ficaríamos vulneráveis aqui caso algo acontecesse, então eu me ofereci. Não sei se vou ser muito útil, mas não vamos muito longe, só vasculhar as casas da rua para procurar qualquer coisa útil: comida, remédios, papel higiênico, sei lá.
— Tomem cuidado — murmurei. — Eu devo ter atraído metade dos mortos da cidade ontem. — Falei "ontem" por engano, sabendo que vários dias já haviam se passado. De qualquer forma, ele entendeu.
— Guilherme me contou. Ele disse que você também deve ter matado metade dos mortos da cidade naquele dia. — Ele deu de ombros, como se fosse mais um dia normal, mas tinha um sorrisinho no rosto. — Guilherme está preocupado com você. Carlos também, mesmo que não demonstre. O Gui queria conversar com você, mas achou melhor respeitar seu tempo... Eu também, na verdade, mas hoje foi por uma questão diferente. Precisamos pensar como vamos fazer para sobreviver.
Assenti, ciente de que estava sendo egoísta ao continuar trancada naquele quarto, mas ainda sem vontade de sair de lá. A dor estava presente, mesmo que só um reflexo da agonia e ansiedade que me dominaram nos primeiros dias. Os remédios para os músculos faziam efeito e eu começava a comer melhor.
— Quando vocês voltarem, vamos pensar no que fazer daqui pra frente — falei, sem saber se realmente tinha interesse em fazer aquilo, mas Hector pareceu satisfeito em ver pelo menos algum brilho de resistência nos meus olhos.
Conversamos — ou, pelo menos, Hector fez um monólogo — sobre como seria agora que a luz havia acabado e que provavelmente comidas perecíveis se tornaram inúteis rapidamente. Na verdade, tudo teria que mudar de agora em diante. Assenti em todas as suas observações, eventualmente verbalizando uma resposta, mas ainda assim era difícil ter qualquer vontade de realmente participar do assunto.
Depois de algum tempo, ele se levantou e disse que me deixaria descansar, então nos despedimos. Desejei-lhe toda a sorte do mundo para o dia seguinte e, depois de dias, meu coração pesou com um sentimento diferente. Ao invés de me concentrar só na agonia, percebi que sentia muito carinho por aquelas pessoas que se abrigavam na minha casa.
Percebi também que éramos mais do que colegas colocados juntos pela pressão do apocalipse e me senti grata pela preocupação e cuidados que recebi. Então, um pouco da minha dor foi substituída pela preocupação por esse grupo. Pela lembrança de que eu precisaria ser forte por eles também.
Nota da autora:
Olá amigos 💜
Há séculos atrás, quando eu estava atualizando esse capítulo, deixei uma foto da minha festa de aniversário de 22 anos (o tema era Naruto hehe) e esse final de semana vou fazer a minha festa de formatura da faculdade kkk como o tempo passa!
Hoje o meu dia está uma correria, então só vou ter tempo de atualizar esse capítulo. Ainda assim, espero que tenham gostado!
Um beijo e até segunda-feira!
Não sejam mordidos até lá.
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