Capítulo 21.
— Vó? Vó Amélia? — chamei, empurrando a porta que dava acesso à sala de estar.
Assim que abri uma pequena fresta, Mei adentrou, atropelando uma de minhas pernas e começando a cheirar cada canto da casa. Meus chamados eram somente para desencargo de consciência, pois sabia que minha avó não estava lá. Quando encontrei uma bacia de água cheia até quase a boca e o saco de 20kg de ração cuidadosamente rasgado de modo que a ração continuasse a cair conforme fosse consumida, tive certeza que vovó preparara tudo para ficar longe de casa, deixando um plano B para Mei, caso algo desse errado. O portão meio aberto me deu essa certeza.
Mei entrou em cada um dos três quartos, banheiro e circundou duas vezes a mesa da cozinha antes de voltar e parar sentada em minha frente, servindo como testemunha de que não havia ninguém. Acariciei a sua cabeça, sentindo seus pelos macios.
Apoiei o bastão na parede e deixei a porta da frente aberta, convidando os outros a entrarem. Minha casa era simples, muito menos incrível que o apartamento de Melissa, mas decorada com carinho pela minha avó. Talvez se o mundo ainda fosse o mesmo, eu teria sentido um pouco de vergonha em trazer essas pessoas, que eu conhecia somente como sendo os populares do colégio, para a minha casa. Agora eu me sentia um pouco imbecil por já ter pensado assim, tanto por não conhecê-los mais apenas daquela maneira tão esdrúxula, como também tendo a ciência de que a minha casa, em toda a sua simplicidade, era aquilo que nos manteria vivos pelas noites seguintes.
Victória, Melissa e Guilherme pediram licença antes de entrar, fazendo-me sorrir. Quase parecia que estávamos apenas nos reunindo para um grupo de estudo. Talvez se nossas roupas não estivessem completamente sujas de sangue e nossos rostos transparentes a respeito de nossa exaustão, eu poderia ter me enganado.
— Podem entrar, gente. Sintam-se em casa, por favor. Alguém sabe me dizer que horas são? — perguntei, indo em direção ao banheiro. Enchi as mãos de água e lavei vigorosamente meu rosto, pescoço e braços, afastando o sangue seco e restos de terra.
— São 17h — informou Victória, olhando para a tela de seu celular.
Carlos mexeu nos interruptores da sala, iluminando o cômodo que ainda estava claro pelo sol e sorriu.
— Luz e água ainda funcionam. É bom que aproveitem, porque do jeito que está, tenho certeza que logo vão ser cortadas.
— Então coloquem os celulares para carregar, se ainda acharem que terão utilidade — informei, voltando para a sala. — Podem tomar banho também, mas eu só tenho um banheiro. Tem três quartos na casa, um colchão inflável, o sofá, e podemos montar camas com edredom, então acho que todo mundo vai dormir bem. A minha avó fez as compras do mês essa semana, por isso tem bastante coisa. Podemos fazer uma janta boa, para variar.
Enquanto falava, abria minha mochila para me livrar do dispensável, como as toalhas e meu casaco, para deixá-la mais leve. Deixei apenas uma garrafa de água, uma barrinha de cereal e meu celular, no silencioso. Peguei de volta o bastão e antes que eu continuasse caminhando, Carlos parou na minha frente.
— Por que você está se arrumando? — Encarava-me com uma sobrancelha levantada e de braços cruzados, então percebi que a sua pergunta era dispensável: ele sabia o que eu tinha em mente. Todos olharam para mim.
— Você sabe. Chegamos até aqui e encontrei a Mei, mas agora vou atrás da minha avó. — Sustentei seu olhar, sem recuar. — Não estou pedindo que ninguém venha junto, eu posso dar conta.
— Você sabe que não vamos te deixar ir sozinha — Guilherme falou, olhando-me com o semblante sério. Era óbvio em seu rosto que não queria sair dali.
— Não, eu não sei. Vocês não tem motivo para sair, mas eu tenho! E sei que não vou demorar, minha avó falou que estava na casa de uma amiga que é a duas ruas daqui, vou e volto com ela antes de anoitecer. — Ignorei os olhares dos meus colegas que me fitavam como se eu fosse completamente louca. — Preciso que cuidem da Mei enquanto isso. Ela vai ficar enchendo o saco, mas não posso levá-la junto, é muito arriscado.
Percebi, de canto de olho, que Carlos revirava os olhos.
— Vamos logo, então, eu, você e o Guilherme. Chegamos lá, pegamos a sua avó e voltamos. — Ele tirou a mochila das costas e pegou novamente a barra de metal que ficou menos de um minuto longe de sua mão. Guilherme não parecia ansioso, mas pegou um pedaço de madeira sem questionar.
Contive o impulso de protestar. No fundo, sabia que não estavam indo apenas por educação: éramos um grupo agora e, na mesma medida que eu precisava deles, eles precisavam de mim. Nenhum de nós queria perder alguém.
Ninguém falou nada conforme nos dirigimos para a porta da frente, por isso Carlos passou algumas instruções: fazer um inventário com toda a comida, pegar as coisas necessárias para montar as camas e aproveitar o tempo para tomar um banho.
Abracei Mei com força, afagando sua cabeça, sem vontade de me despedir. Era frustrante que eu tivesse de dar tchau tão rápido para ela — e a própria já se mostrava indignada e inquieta, tendo percebido que aquilo significava que ela não podia ir — mas eu não poderia ser irresponsável com a minha avó, provavelmente a única família que me restava no mundo. Esforçando-me para não derramar lágrimas (e falhando), afastei-me de Mei e me despedi de todos com somente um aviso: já voltamos.
Por incrível que pudesse parecer, dessa vez eu não estava com tanto medo. Meu cérebro, focado somente em um objetivo para se dar ao luxo de pensar em outra coisa. Saímos do terreno, olhando ao redor com cautela, mas o cenário era o mesmo: a rua estava praticamente vazia, não fossem três zumbis a alguns metros.
— É duas quadras para lá, uma para cima. — Indiquei a direção. — Provavelmente terá mais deles, porque é mais perto da rua principal.
— Vamos derrubar aqueles três ali e seguir por esse cruzamento — Carlos sinalizou com a barra de ferro. — Eu vou chamar atenção deles, fiquem atentos.
Aquela foi toda a informação que trocamos antes de partir naquela direção, em silêncio. Carlos e eu seguimos na frente e Guilherme um pouco atrás, de olho na retaguarda.
Quando chegamos, tudo foi bem sincronizado: Carlos afastou-se alguns passos, fazendo barulho ao arrastar sua barra de ferro no chão para arrancar os zumbis de seu transe, em uma distância segura. Por sorte eram lentos, então conforme começaram a cambalear em direção ao meu amigo, eu e Guilherme pudemos contorná-los a fim de pegar os dois por trás. O golpe de Guilherme foi certeiro o suficiente para matar um, mas o meu precisou de um segundo. Carlos derrubou aquele mais próximo com um pontapé, finalizando-o com a barra no chão. Foi rápido e limpo, mas não tornava aquilo fácil. Meus braços ainda doíam e qualquer movimento errado certamente poderia significar a nossa morte.
Assim que terminamos, seguimos o caminho que eu indiquei. A primeira quadra estava limpa, a não ser por um carro largado no meio da rua com as quatro portas abertas e o banco do carona ensanguentado. Logo à frente, alguns mortos-vivos vagavam a esmo. Um poste de luz estava tombado, segurando-se somente pelos fios — agradeci por não ser dele que a rede elétrica da minha casa dependia.
Passamos correndo, meu corpo enchendo-se pela adrenalina de tal maneira que o cansaço já não estava mais presente. Eu sabia que seria mais sensato descansar, mesmo que um pouco, porém seria impossível para mim. E eu tinha noção que Guilherme e Carlos sabiam disso. Naquela situação, ninguém poderia me exigir sensatez.
Na quadra seguinte, a quantidade de mortos era um pouco maior, mas estavam tão separados que pudemos passar sem problemas. Nossos passos leves se perdiam em meio ao ruído do ambiente.
— Batam só se necessário, vamos seguir reto. — falei, baixo o suficiente para que apenas eles ouvissem. — Só quero ver a situação. Se for muito ruim, voltamos na hora.
Passamos pelos zumbis, acelerando o passo para evitar qualquer cerco quando alguns deles nos notaram. Foi necessário apenas que Carlos batesse em um, derrubando-o, imóvel. Para a nossa sorte, estavam muito espaçados, perdidos até então em seus devaneios mortais.
Era surpreendente como nosso trio se mostrava coordenado e confiante uns nos outros. Fazia somente três dias que estávamos juntos, mas era evidente como já tínhamos sintonia, inclusive por não terem hesitado em me seguir naquela missão egoísta e maluca. Eu era sortuda por tê-los ao meu lado. Caso tudo desse errado, tinha certeza que poderia contar com eles para que saíssemos vivos.
Em poucos minutos chegamos ao último cruzamento. Durante todo o percurso, esforcei-me para evitar pensamentos blasfemos, como a terrível ideia de chegar até a casa de Marta e encontrar a minha avó morta, ou até mesmo não encontrá-la. Sempre havia, no fundo do meu cérebro, um eco do meu pesadelo onde minha avó já estava transformada em monstro, mas lutei contra o medo durante todos aqueles dias para manter a esperança.
Por isso, a realidade foi dura como um soco no estômago.
Não precisei olhar em volta, nem duas vezes, quando viramos a esquina. Dentre mais de uma dúzia de mortos, a primeira imagem que invadiu meu campo de visão foi a dela.
Com seu cabelo branco curto e um vestido longo e simples, era minha avó. Uma caricatura cruel e nojenta da mulher que me criou com tanto amor, fitando-me com seus olhos esbranquiçados e vazios, hipnotizados pelo seu desejo mórbido. Sua mandíbula estava quebrada e se abria para o lado em um sorriso vil. O vestido rasgado do lado esquerdo até a altura do umbigo deixava à mostra o buraco onde um desses seres se alimentara, talvez recentemente, talvez minutos depois de termos desligado o telefone. Não houve suspense, não houve tensão, somente o sabor amargo da vida real arrancando toda a esperança do meu corpo.
Por três dias eu pensei em reencontrar a minha avó, sem saber que estava correndo atrás de um zumbi.
Eu queria ter morrido. Se eu tivesse a possibilidade, talvez uma arma em minhas mãos, seria tão fácil puxar o gatilho quanto fechar os olhos. Como eu não podia morrer, quis desviar o olhar, mas era impossível: como se um lado masoquista da minha existência me obrigasse a olhar meu fracasso, grudar os meus olhos naquele corpo nojento que mimicava tão absurdamente a imagem da minha avó. Seus óculos estavam pendurados pelo cordão de ouro, oscilando em frente ao buraco ensanguentado de seu peito. Os óculos que ela sempre botava quando eu lhe mostrava algo no celular ou nos livros que eu lia, pendendo ali, sujos de sangue, para nunca mais serem usados.
Cada centímetros daquele ser constituíam a imagem de um demônio saído do mais herege inferno, queimado no meu cérebro como um ferro em brasa que nunca permitiria que eu sonhasse ou fechasse os olhos sem revê-lo, como um gosto de sangue que jamais sairia da minha língua.
— Rebeca, eu sinto muito... — Poderia ter sido Guilherme ou Carlos a falar isso, eu não soube dizer. Também pouco me importava naquele momento. A sensação que antecede o desmaio me entorpeceu por segundos, minutos ou horas, mas eventualmente desfez suas amarras de meu corpo, mantendo seu nevoeiro somente sobre meus olhos, que não eram capazes de focar em lugar nenhum. Mesmo se fossem, só uma coisa estava em frente às minhas retinas: a horrenda imagem da duplicata maldita que assumia a forma da minha avó. — Rebeca, o que você ESTÁ FAZENDO?!
Eu ouvi, mas porque a última parte foi proferida com um grito. Somente assim pude ouvi-la por trás do meu próprio berro, que saiu rasgando a minha garganta. A dor consumia meu corpo conforme meu sangue tornava-se lava, atravessando lentamente minhas veias e colocando todo o meu ser em chamas.
Eu queria morrer, mas queria levar todos aqueles demônios para o inferno de onde saíram. Minha visão estava vermelha e minha cabeça latejava, mas me adiantei para frente a fim de não colocar os meus amigos no meio daquele suicídio. Eu sabia que aquele grito descontrolado ia atrair aquelas coisas — como imediatamente ficou óbvio quando todas as cabeças viraram em minha direção —, por isso manteria-me o mais longe possível. Tinha certeza que eles conseguiriam dar conta dos errantes que passassem por mim.
Pela primeira vez em dias, eu não estava com medo. O ódio era o único sentimento instalado em meu coração, borbulhando meu sangue. Senti o mais genuíno prazer quando o primeiro deles chegou perto, correndo como um desesperado, e enterrei o meu bastão de uma vez só em seu rosto, desfigurando-o completamente.
Eu nunca saberia dizer se eu havia parado de gritar ou não, conforme eles começaram a se aproximar, um bando formando-se à minha volta. Me movi rápido somente para garantir que eu mataria o máximo daqueles monstros grotescos. Os que correram foram mortos primeiro, cada qual me dando uma onda de satisfação sem igual conforme acertava suas cabeças nojentas, criando uma chuva de sangue, pedaços de carne e lascas de madeira. Tive o impulso de me mover somente para que os cadáveres que caíssem no chão não bloqueassem meu caminho.
Por puro egoísmo não pensei em Mei. Não pensei em meu pai ou meu irmão, nem sequer pensei em Carlos e Guilherme ou qualquer um de meus colegas. Para ser sincera, eu nem ao menos tinha ideia se os dois estavam vivos e lutando ou já haviam sido comidos. Minha mente era um turbilhão descontrolado de desespero e fúria, os pensamentos sendo completamente obstruídos pelas imagens vívidas e sanguinárias que eu mesma criava ao acertar o meu bastão repetidas vezes nos cadáveres que se aproximavam, sedentos pela minha vida.
Queria que fosse mentira ou até que fosse diferente dos outros, mas quando o rosto de minha avó apareceu em meio ao mar de mortos, somente tive o impulso de golpeá-la com o mesmo ódio dado aos outros, cessando sua nova meia-vida com a mesma brutalidade que teve início. Meu coração estourou em dor, como se aquele ato fechasse um caixão invisível em volta de mim que me sufocaria pelo resto da vida. Mas nem isso parou meu bastão, acertando o máximo de monstros que conseguia, destruindo suas cabeças horrendas.
Era impossível dizer se eu havia sido mordida, arranhada ou se algum deles já estava me comendo viva sem que eu percebesse. Todo o meu corpo queimava com a dor, já tendo chegado à exaustão muito cedo naquele dia e ainda assim sendo obrigado a ultrapassar seu limite. Se alguma hora eu parei de gritar, a agonia me fez abrir a boca novamente para expressá-la.
Primeiro pareceu que uma multidão de demônios me sufocaria, mas aos poucos minha visão da rua abandonada ia sendo desobstruída pelos golpes. Um tapete de corpos começava a se estender, obrigando-me a continuar me movendo para não cair entre eles.
Conforme os segundos, horas ou séculos se arrastavam e a exaustão terminava de devorar o meu corpo, comecei a ver o fim — e infelizmente não era o meu.
No começo havia muitos, depois somente 10 mantinham-se ao meu redor, depois cinco
e então três
até que dei o golpe final.
Todo o meu ser pareceu se desfazer com aquela última grama de esforço investida em mandar a criatura grotesca para o inferno. Respirei fundo uma, duas, três vezes, meus olhos passando pelo mar de sangue e corpos destruídos que se estendia pelo asfalto.
Em meio à destruição, não senti a satisfação que me iludiu a fazer aquilo. Parada entre tantos que um dia foram pessoas com sonhos, medos e desejos, dentre eles até mesmo a minha querida avó, senti somente a solidão.
Eu queria chorar, mas até isso doía. O mundo havia acabado e meu corpo permanecia vagando por ele, decompondo-se lentamente em uma assustadora semelhança com aquelas criaturas.
— Rebeca... — Uma voz familiar recobrou um pouco de consciência em mim. Não estava alarmada, tampouco arfante como eu soaria, se a minha garganta não estivesse destruída demais para falar. Só havia um sentimento que eu podia compartilhar naquela voz baixa: dor.
Quando virei a cabeça, senti meus cabelos pesados por estarem úmidos e vermelhos. Busquei os olhos verdes que me dariam alguma segurança, mas não consegui. Sabia que Carlos e Guilherme vinham em minha direção, mas minha visão começava a embaçar.
Conforme os garotos se aproximavam, senti as minhas pernas finalmente cedendo. Suas imagens eram somente borrões negros e, quando caí, não soube dizer ao certo qual dos dois me amparou.
Nota da autora:
Enfim, o último capítulo de hoje! Demorei um pouco para fazer um suspense :B
Nossa, como eu amo esse capítulo. Foi com certeza um dos mais difíceis de escrever na época e, pra mim, o capítulo que até então mais teve a cara que eu sempre quis dar para essa história. Eu espero que vocês gostem dele tanto quanto eu.
Pegaram a referência? 👀 "Minha mente era um turbilhão descontrolado de desespero e fúria", essa aí foi especialmente para a revisão kkk
No capítulo original eu fiz um "F.A.Q." nas notinhas finais, então vou aproveitar aqui também: tem alguma pergunta que vocês gostariam que eu respondesse aqui? Mandem que vou adorar 🖤
E por hoje é isso. Novamente, perdão por não ter atualizado ontem e amanhã voltamos à programação normal!
Um beijo para todos e não sejam mordidos!
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