Capítulo 18.
A paz passou a ser incômoda.
Há alguns dias, eu imaginava que nunca conseguiria me acostumar com a ideia de viver em fuga, correndo pela vida ou precisando lutar fisicamente contra seres que queriam me devorar. Logo, a ideia da calma passou a ser igualmente perturbadora.
Perturbadora porque ela era boa, mas sempre havia implícito aquele sentimento de que não iria durar.
E quando você está em paz, você pode pensar, e pensar também pode ser perigoso. Nos dá a oportunidade de rever os nossos erros, o que pode ser um aprendizado, mas também um martírio.
Se eu estivesse um pouco mais preparada naquela hora, se a Rebeca de alguns dias atrás fosse a mesma de agora, certamente Débora estaria a salvo.
Se eu tivesse sido mais corajosa, poderia ter salvo as duas garotas no banheiro.
Se eu tivesse mais malícia, poderia ter percebido que Laura não estava nas melhores condições e impedido-a de descer as escadas.
Se eu tivesse prestado mais atenção e fosse mais rápida, Renan e Helena estariam vivos.
Um calafrio passou pelas minhas costas. Ainda era doloroso para mim aceitar como eu, tão despreparada e medrosa quanto era, estava viva, enquanto Helena havia padecido de maneira horrorosa. Eu nunca seria capaz de esquecê-la.
Olhei para o horizonte, na vaga esperança de ver o barco de Carlos se aproximando, mas encontrei somente Melissa sentada no pequeno cais, os pés encostados na água enquanto ela olhava concentrada para a tela do seu celular, acompanhando o horário. Achamos importante deixar alguém de vigia enquanto reuníamos os galhos e folhas para a fogueira, mas a noite estava tão calma que não era possível ouvir nenhum som além de ondas batendo na areia.
Ouvi um farfalhar das folhas ao meu lado e imediatamente mirei a lanterna do celular naquela direção.
Mas encontrei apenas os olhos monólidos de Ana, que se estreitaram em contato com a luz. Com o nariz fino e a boca pequena, sua aparência me lembrava a de uma raposa. Em seus braços, segurava um punhado de galhos.
— Sou eu, Rebeca. — Quando ouvi sua voz, desviei a lanterna. — Eu encontrei bastante galhos para lá. — Apontou. — E não vi nada que parecesse perigoso por perto. Acho que essa praia é a parte mais segura para ficarmos.
Assenti, examinando os arredores. As ruas mais próximas eram iluminadas por postes de luz (alguns eventualmente piscando), porém toda a faixa de areia estaria completamente escura não fosse pela lua cheia, que delineava nossas silhuetas.
— Tudo bem, temos quase o suficiente. Vou reunir mais algumas folhas e podemos começar a montar a fogueira.
Ouvi um "ok" e esperei que Ana seguisse na direção de Melissa, mas ela continuou do meu lado. Juntas, começamos a reunir folhas caídas, próximas às árvores e arbustos.
Depois de quase um minuto ouvindo apenas nossos tênis chutando areia, Ana falou:
— Eu odeio esse silêncio.
Pensei em brincar com ela sobre conseguir ler meus pensamentos, mas não tínhamos intimidade para esse tipo de coisa. Também não saberia dizer se ela queria começar uma conversa comigo.
— Eu sei. Ele é quase tão incômodo quanto os rosnados. — Arrisquei, mantendo o foco nas folhas que eu juntava. Percebi que ela parou para olhar em minha direção.
— Eu acho que o silêncio é mentiroso — ela continuou e agora tive certeza que ela estava iniciando uma conversa. — Ele já era antes de tudo ficar mal, mas agora ele é ainda mais cruel. Ele nos faz pensar coisas ruins... — Percebi sua dificuldade em colocar as palavras para fora.
Reuni um punhado de folhas e apontei com a cabeça em direção ao cais, indicando que deveríamos voltar. Ela assentiu e me seguiu.
— O silêncio me faz lembrar sobre as pessoas que eu deixei morrer — falei, sem cerimônias, e vi que ela se espantou. — E das coisas erradas que eu fiz. Eu sinto saudades do que o silêncio significava antes, sabe? Paz.
— Nunca significou paz para mim — ela murmurou. Estava tentando me dizer alguma coisa, mas as palavras saíam com esforço.
— Por que você diz isso? — Tentei.
— Eu sempre tive pensamentos ruins quando ficava muito tempo sozinha, em silêncio. Era irônico, porque antes eu não tinha nada para me preocupar, minha vida era simples... Se comparar com agora, claro. Mesmo assim, eu sempre pensava coisas ruins. Que eu não era boa o suficiente, que as pessoas não gostavam de mim, que... Não valia a pena estar viva. — Ela ficou em silêncio por um instante. — A Melissa não entendeu quando eu disse isso, ela ficou brava... Mas eu gosto de correr pela minha vida. De uma maneira completamente distorcida, faz eu me sentir viva. Tipo, eu sempre estive viva, mas eu não me sentia viva. Isso é novo e agora não quero mais perder isso.
Tentei olhar nos olhos dela, mas a escuridão dificultava. Então ela estava falando sobre aquilo comigo porque suas amigas não a entendiam. O que me intrigava era o que a levava a achar que eu poderia ser mais solicita, justamente a pessoa que teria todos os motivos para guardar rancor dela.
— Você já tinha tentado falar com alguém sobre isso? — Arrisquei, um pouco em dúvida sobre como prosseguir.
— Claro que não, se eu falasse esse tipo de coisa para os meus pais, eu apanhava. E eu entendia eles. Era frustrante, sabe? Por que aquilo acontecia comigo? Eu tinha uma família boa, vários amigos, nunca me faltou nada... E mesmo assim a merda da minha cabeça não sentia felicidade! — Ela respirou fundo. — E eu sei que isso não é motivo e nem problema seu, mas por isso eu tinha ódio de tudo. Eu não queria, de verdade, ser tão escrota sempre. Hoje eu percebo que talvez aquela Ana não seja a Ana de verdade, sabe? E olha que idiota... O mundo inteiro precisou ir para o caralho e eu estar sozinha para conseguir me sentir um pouco mais como a Ana de antes... Antes do silêncio se tornar ruim.
Engoli a seco. Sua dor era quase palpável.
— Ana, não tem problema — falei, entrando em conflito com meus próprios sentimentos. Naquele mesmo dia eu havia chegado ao meu limite de tolerância com aquela garota e agora me parecia tão fácil perdoá-la. — É claro que eu nunca desejaria que isso tivesse acontecido, mas essa Rebeca com certeza é muito melhor do que a antiga.
— É só que agora... — ela tentou falar, mas ouvi barulhos que denunciavam seu choro iminente. — Eu estou tão assustada por me sentir assim... Victória e Melissa não me entendem e eu não queria afastar ninguém de mim! Não agora... E-eu...
Larguei as minhas folhas no chão e a abracei. O gesto foi tão repentino que até me surpreendeu. Esperei até que ela se acalmasse, garantindo que não havia nada de errado com o que ela estava sentindo. E mesmo se houvesse, quem seria eu para estabelecer isso?
Secando as lágrimas, ela se afastou de mim e agradeceu.
— Eu só precisava conversar com alguém... E aproveitar para pedir desculpas. Já que vamos ficar algum tempo juntas, não quero que tenha que sempre ser algo ruim... Porque eu não estou mais sentido as coisas ruins como antes. — Ela tentou sorrir, mas seu rosto estava marcado pelas lágrimas que refletiam o luar.
Com o clima um pouco mais leve, juntamos novamente as folhas e voltamos à praia. Sem demora, montamos da melhor forma possível a fogueira, intercalando as folhas secas com os galhos. Felizmente, o vento não era mais do que uma brisa, por isso o fogo não demoraria a pegar.
Após finalizarmos, nos juntamos à Melissa na ponta do cais. Por alguns minutos, ficamos apenas olhando para o mar, em busca de qualquer silhueta que denunciasse a reaproximação de Carlos.
O silêncio repousou entre nós por um tempo, mas fiz questão de tentar afastá-lo, em respeito à Ana:
— Então, Melissa... Matou o primeiro zumbi hoje.
Ela abriu um sorriso e, graças à luz da tela do celular, percebi que suas bochechas coraram.
— Matei, né? — Melissa se remexeu um pouco no trapiche, seus pés descalços batendo na água. — Meu Deus, Rebeca, eu fiquei com tanto medo! — disse, olhando para mim como se fofocasse algo normal.
— A primeira vez é a pior. Depois você se acostuma, sério — Ana murmurou. — mas mesmo que não se acostume, é importante que você não precise depender dos outros.
— É, eu sei... — A loira disse, apertando o botão que desligava a tela do celular, deixando-nos iluminadas somente pela lua cheia. — Eu fiquei muito triste quando Hector me considerou como alguém que "precisava ser protegida" hoje... Eu sei que não é mentira, mas eu queria me esforçar um pouco para começar a valer o meu próprio peso. Claro que não vou virar nenhuma Rebeca ou Carlos, mas só... Não ser um estorvo.
— Você não é um estorvo. — Interrompi. — Nem ouse pensar nisso. Tudo o que você fez pela gente até agora é mais do que eu poderia esperar de qualquer pessoa numa situação assim. Você não é menos que ninguém por não conseguir bater em um zumbi. Se você não tivesse tido a empatia e generosidade de oferecer a sua casa, nem teríamos sobrevivido.
Ela abriu a boca para responder, mas fechou em seguida. Dessa vez eu não precisei da luz do celular para dizer que seu rosto estava ainda mais vermelho.
— Você é bem foda também, Mel. — Ana disse. — Só por estar viva até aqui, aguentando. Teve muita gente que não conseguiu sequer se manter em pé para lutar.
— Obrigada mesmo, gente. — A loira deu um sorriso fraco, envergonhado. — Vocês não sabem o quanto
Suas palavras foram ceifadas pelo horror que saltou sobre nós. Meu coração quase parou com o susto de algo repentinamente saindo do mar, lançando água para todos os lados e agarrando-se às pernas de Ana com seus braços apodrecidos. Foi tão repentino que o grito demorou para subir aos céus, mas quando veio, fez-se presente da garganta da minha mais nova amiga como uma sinfonia de horror. Melissa, por reflexo, afastou-se, jogando seu corpo em minha direção.
Aquela criatura cravou seus dentes em suas coxas e, antes mesmo que eu conseguisse encontrar forças para me mover, vi a garota ser puxada para a água, seus gritos substituídos pelo barulho do afogamento.
Milênios poderiam ter se passado enquanto eu permanecia parada dentro de um corpo congelado, que não respondia a qualquer estímulo. A imagem se repetiu em minha cabeça e prestei atenção em cada centímetro da expressão horrorizada de Ana sendo engolida pelo oceano, até que o último de seus fios de cabelo sumiu de vista e a única prova de que algo aconteceu foram as ondas agitadas.
Meu transe poderia ter sido eterno, mas o grito de horror da loira com o corpo quase jogado sobre o meu foi o que descongelou meu sangue. Senti meu coração, antes disparado pelo susto, agora mantendo o ritmo pela adrenalina e, guiada pelo impulso inexplicável do momento, empurrei Melissa para o lado e tateei em busca do meu bastão.
Meus olhos estavam vidrados na confusão de bolha que se formava no lugar em que Ana afundou. A escuridão era tamanha que eu mal podia identificar mais do que movimentos sob a superfície. Quando o rosto da estudante reapareceu, lutando por ar pelos curso segundos em que alcançou a superfície, encontrei a coragem insana que me moveu.
— MELISSA, LIGA A LANTERNA! — berrei, a esta altura indiferente sobre todo o barulho que já havíamos feito.
Segurando com força meu bastão, atirei-me para a imensidão do oceano, sendo recebida pelo gelado da água contra a minha pele. Infelizmente, não pude impedir o último pensamento que tive antes de expor-me ao perigo: de já era tarde demais.
Tive cuidado de mergulhar a alguns metros de Ana, para primeiro tentar pensar de que forma eu poderia ajudá-la. Quando finalmente voltei para a superfície, deparei-me com a iluminação forte da lanterna do celular de Melissa. Ana também estava com a cabeça para fora da água, dessa vez com um pouco mais de estabilidade, mas ainda lutando contra algo que estava submerso. Consegui identificar uma cabeça grudada segurando-se com os dentes em sua cintura enquanto tingia toda a água em carmim. Sob esse cenário caótico, pude identificar que a criatura que atacava Ana um dia foi um homem.
Segurei o bastão com as duas mãos em seu comprimento, percebendo o quanto eu tremia contra a madeira rígida. O som que o bastão fez quando afundou-se na água e, após, na cabeça da criatura, foram soterrados pelos gritos histéricos que saíam da boca de Ana. A água desacelerou o golpe e fui obrigada a repetí-lo pelo menos outras duas vezes, esforçando-me para usar toda a força que meu corpo já não possuía mais.
A terceira batida afastou seu rosto desfigurado — e eu já não sabia se pela doença ou pela água turva de sangue — do quadril de Ana, não sem tornar-se claro que um pedaço dela estava faltando. Percebi, com uma onda nojenta de ânsia apertando meu estômago, que alguns dentes amarelados permaneceram cravados na sua pele após soltarem-se das gengivas pútridas da criatura.
Sua cabeça surgiu à superfície e a criatura arreganhou a boca em um horrendo grito que poderia ser de escárnio. Percebendo uma oportunidade, repeti o movimento do bastão, forçando-o contra sua boca aberta com toda a força que consegui. Seus dentes quebraram e, infelizmente, esse barulho eu ouvi claramente. Como já era previsível, nada disso pareceu causar-lhe dor o suficiente para parar sua investida.
Desesperada, tentei afastar a criatura fazendo pressão com o bastão contra sua boca. Seu rosto parecia franzido em ódio conforme ele não encontrava sucesso em roer a madeira firme do bastão, nem em afastar sua mandíbula daquilo que o impedia de cravá-la em mais carne humana. Todo o comprimento da madeira estava entre nós dois, porém ainda era necessário que eu vencesse aquele cabo de guerra para me manter viva. Além disso, havia Ana, a quem eu não conseguia dar atenção no momento e que certamente estava tão desesperada quanto eu.
Tentei pensar, obrigada a continuar forçando o bastão contra sua garganta para impedir que os braços esticados me alcançassem. Um líquido negro escapou pelos seus lábios rachados. Virei o corpo, guiando-o com o bastão para que sua cabeça fosse de encontro com uma das pernas de madeira do cais. Nesse ato, percebi que meu bastão estava suficientemente enterrado em sua boca para que não fosse fácil tirá-lo. Então aproveitei e puxei-o para mim, trazendo a cabeça da criatura junto só para empurrar com força, enterrando-a no trapiche.
A primeira vez não foi o suficiente, apenas fazendo o sangue escorrer pela madeira. O movimento requeria um esforço torturante, principalmente precisando conter os protestos do corpo velho, porém forte, daquele monstro. Conforme repeti-o mais duas vezes, meu gemido virou um protesto e, na quarta tentativa, um grito. O som de sua cabeça contra a madeira, seus ossos se partindo sob aquela repetitiva colisão, era blasfemo.
Meus braços tremiam quando percebi que a criatura não se mexia mais, sua aparência quase desfigurada pelos golpes. Todo o esforço necessário que eu precisei fazer naqueles poucos dias culminaram em uma dor brutal que se estendia por todo o meu corpo, mas precisei mover minhas pernas sob a água, apoiando os dois pés em seu corpo para fazer força contrária e resgatar meu bastão, enterrado em sua mandíbula.
Com um som bizarro de ossos cedendo, consegui arrancá-lo, indo para trás e criando ondas.
A boca do cadáver fechou de uma maneira estranha, toda a sua estrutura facial um pouco torta. Sem qualquer resquício de vida, ele afundou lentamente, deixando-me sozinha em meio ao vazio oceânico, agora levemente tingido de vermelho.
Por alguns segundos fiquei atordoada, sentindo a dor avassaladora que passava pelos meus braços. Meu olhar perdeu-se no ponto em que o corpo desapareceu, deixando somente um rastro de bolhas como prova que um dia estivera ali. Mesmo que a ação tivesse acabado, meu coração permanecia em um galope assustador, enquanto eu via somente pelo canto dos olhos vultos desesperados.
O som do choro me despertou. Um gemido torturado, que se misturava à fungadas frenéticas em dor e desespero.
Melissa segurava nos braços finos de Ana, ajudando-a como podia a se içar para o trapiche, longe da água. A garota estava com o rosto vermelho e lágrimas escorriam em torrentes, mas era impossível que outra coisa não atraísse meu olhar: em sua cintura havia um buraco horrendo de carne viva, quase do tamanho do meu punho. Era possível ver uma mistura apavorante de carne e pele, encharcada em um sangue aquoso e estranho. E eles ainda estavam lá.
Os dentes. Somente três, cravados em sua pele como pregos.
Aquela incômoda visão me arrancou do transe exausto. Nadei até minha amiga e abracei seu quadril, fazendo força ao erguê-la para que Melissa pudesse tirá-la da água. Ela gritou em protesto e sua voz perdeu-se devido a dor, porém conseguimos colocá-la sobre a madeira.
Quase não tive forças para subir de volta até o trapiche, todo o meu corpo tremendo enquanto eu saía daquele mar gelado e vazio de esperança. Quando consegui erguer o corpo sobre as tábuas úmidas, meus braços finalmente cederam e caí no chão, minha bochecha colada na a madeira fria. Agora, sem a adrenalina para me apoiar, somente restava a dor e o cansaço agarrados aos meus músculos. Meu corpo tremia, mas havia tantas emoções que eu não saberia dizer qual era o motivo.
— Ana, não fecha os olhos, fica olhando pra mim! — Melissa falava para a garota deitada em seu colo. Eu já não conseguia mais ver o machucado, pois Melissa retirou um pano de sua bolsa e pressionava contra ele. Ela segurava o rosto de Ana com carinho, mas seu próprio parecia contorcido de horror.
Vendo sua situação, me esforcei para levantar. Todo o meu corpo parecia estar em chamas e senti tudo girar ao meu redor, mas eventualmente consegui engatinhar perto de minhas amigas.
— Rebeca, me ajuda! Faz pressão em cima do machucado na perna, ela está perdendo muito sangue! — pediu, desesperada. Se movimentou com pressa para tirar uma segunda toalha da da mochila, mas achei ter visto um reflexo de incerteza enquanto ela tentava conter o segundo machucado. Minhas próprias lágrimas caíam em torrentes.
Eu não sabia pelo que Melissa chorava, mas eu o fazia porque sabia que era tarde demais.
— Ele veio da água, Rebeca! — A loira disse, com um fio de voz. Era assustador como nenhuma de nós sabia fazer nada nesse tipo de situação, somente segurar de maneira patética uma toalha para que machucados gigantescos fossem, por milagre, estancados. — Ele simplesmente veio da água e agarrou ela! — Melissa dizia, atordoada, tentando manter o rosto de Ana olhando para si. Concordei com ela, sabendo que a sua intenção em repetir aquelas palavras era somente constatar sua descrença. Ainda que a situação fosse apavorante, sentia que meu corpo começava a me abandonar, as dores musculares beirando o insuportável.
Lentamente, a vida se esvaía do corpo de Ana, seus gemidos e protestos transformando-se no silêncio que ela tanto temia. Perceber aquela ironia foi como se uma agulha perfurasse meu coração. Infelizmente, as nossas experiências anteriores, somadas à tentativa frustrada de Alana de conter aquela infecção, já nos dava um prenúncio do destino: era tarde. Tornou-se tarde no momento catastrófico em que aquela criatura conseguiu fincar seus dentes na pele de Ana.
Abraçada ao seu corpo, senti-me completamente idiota. As lágrimas agora queimavam minha pele com vergonha e tristeza pelos pensamentos ruins que eu já tivera a respeito dela. Há menos de algumas horas eu odiei essa garota, mas agora me via chorando sobre seu corpo desfalecido, logo após ter me arriscado cegamente para salvá-la.
Tudo parece tão efêmero quando nos confrontamos com a morte.
Aproximei-me de Melissa, ainda mantendo pressão sobre o machucado na coxa de Ana, para colocar meu braço em volta de seu ombro. A travessia para o seu lado foi lenta e me fez ficar tonta, mas tentei manter-me ereta. Ela chorava alto e apoiou sua cabeça em meu ombro.
— Obrigada por salv... Por ir atrás dela, Rebeca... E-eu congelei. — Suas palavras eram abruptamente cortadas por fungadas fortes. — Ele veio do nada... Da água! Ele veio a água, Rebeca! Ele veio caminhando por baixo da água... — Ela repetia, tentando buscar conforto ou conformação, talvez, mas seus braços tremiam e ela parecia pronta para desabar. Assim como eu mesma estava, sentindo minha visão ficando turva. A exaustão finalmente parecia estar comendo um pedaço de mim.
— Melissa... — Pensei em dizer que tudo daria certo, mas não ousaria mentir daquela forma tão desprezível. Também quis pedir desculpas, mas não sabia ao certo pelo quê. Confortá-la também parecia errado, uma vez que o peito de Ana insistia em movimentar-se para cima e para baixo, mesmo que de maneira lenta. Abri minha boca algumas vezes, mas no fim não consegui dizer nada, porque eu nem mesmo sabia se conseguiria me manter consciente por mais tempo.
— Pela água, Rebeca... Pelo mar. Poderia ter sido em mim ou em você... E nós nem teríamos visto... — Fiz carinho em suas ondas douradas, tentando oferecer qualquer tipo de conforto. Melissa parecia completamente atordoada e meus movimentos fraquejavam.
Quando minha cabeça deu uma fisgada, no momento em que quase me entreguei para a exaustão, Melissa percebeu:
— Rebeca, pode deixar — ela disse, a voz suave. Suas bochechas estavam vermelhas e marcadas por lágrimas e seu choro estava longe de cessar, mas sua incredulidade inicial finalmente se afastou. — Pode deixar, eu cuido dela. Ela vai ficar bem. — Diferente de mim, Melissa não se importou em mentir. Eu sabia que tudo aquilo era inútil, mas quis gritar quando ela soltou a toalha que pressionava contra a cintura de Ana, depois afastou as minhas mãos da coxa machucada. Tentei lutar, mas me sentia entorpecida. — Descansa um pouco, o Carlos já deve estar vindo...
Eu havia lutado contra a crescente sensação de torpor, mas quando ouvi aquelas palavras sussurradas, foi como se a parte que tentava impedir o inevitável desistisse. Meus sentidos estavam tão turvos que eu nunca soube dizer qual havia sido o momento em que eu transitei entre fitar os olhos cor-de-mel de Melissa e desmaiar.
Nota da autora:
Oi, amigos... Hoje sei que não está tudo bem.
Acho que esse é um dos capítulos mais lembrados pelos leitores de Em Decomposição. Foi muito triste de escrever, mas eu amo ele do fundo do meu coração. O que acharam?
Como sempre, agradeço muito por todos os comentários! Estou adorando ver as reações dos antigos e novos leitores. Me leva de volta à primeira vez que postei essa história aqui <3
Como será que a Melissa vai se virar? E, o mais importante: cadê o Carlos?
Não sejam mordidos e eu dou essas respostas 😉
Amanhã teremos live de leitura coletiva na Twitch para conversarmos sobre esse capítulo e muito mais 🖤 como sempre, estão todos convidados!
Até semana que vem.
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