Preciso de uma Dose de Você
"Sem essa de 'amar demais machuca'. O que dói é amar sozinho."
Entraram. Por dentro, era só majestade. Tetos altos, madeirame, grandes e compridos corredores, com muitas portas fechadas. A cozinha estava aberta, com gente trabalhando, todos vestidos de branco. As mulheres, com lenços brancos na cabeça, como se fossem todas técnicas de laboratório; mas eram técnicas de arte muito diferente.
Quando viu as variedades de comida e o cuidado com que eram preparados os diferentes pratos e ouviu a risada dos cozinheiros, descobriu que o que saísse dali teria a alquimia, o amor, o carinho e a perfeição de uma arte milenar. Os pratos já prontos do almoço davam água na boca. Ficou lá, tão embasbacada, que Ellyus precisou lhe dar um pequeno puxão para acordar e chegar até à mesa da recepção.
Ellyus e a moça do balcão começaram um papo animado.
Como serão os quartos?, pensou Elizabeth. Grandes e espaçosos. Um para cada um, é claro. E um bom banho de chuveiro. O bom mesmo seria acabar a tarde abraçada com Ellyus, mas esse era um pensamento perigoso, que não devia ter nunca mais.
Serviram uma xícara de café, enquanto ele e a recepcionista continuavam a conversar. Não era bem uma conversa. Um debate, uma discussão. Para sua surpresa, Elizabeth achou que já estava sabendo um pouco de croata. De cada sete palavras, entendia uma. É claro que Ellyus falava muito devagar, e era por isso que entendia, Ficou toda feliz. Logo percebeu que, de cada sete palavras, ele falava uma em inglês; daí seu súbito aprendizado da língua. Mesmo assim entendia bem o que se passava.
Finalmente os dois apertaram as mãos e Ellyus virou-se para ela, explicando tudo o que estava acontecendo.
— Há um banquete hoje e chegou muita gente. Estão sem acomodações. Em vez dos quartos reservados, eles nos deram um quarto normal e outro chamado quarto de trocar de roupa.
Gostaria de saber mais. Eram juntos? E para que saber isso? O que importava? Mas queria saber. Resolveu se comportar.
— O que é um quarto de trocar de roupa?
— Aqui na Iugoslávia, muita gente visita um lugar sem querer pernoitar. De passagem. Querem um quarto para dar uma descansada e trocar de roupa. É menor, mais simples e mais barato.
— Boa idéia. Podiam adotar isso em outros lugares. Eu não me importo de ficar com esse, pequeno.
— Tem certeza? Acho melhor eu ficar nele.
— Não. O seu tem o tamanho suficiente para trabalharmos, não tem?
— Com certeza. — Pegou-a pelo braço. — Quero ver o que arranjaram para você. Alguns desses quartos só servem para um bebê de seis meses.
Por uma razão qualquer, passaram primeiro pelo quarto de Ellyus. Era grande o suficiente para acomodar meia cidade de de um dos vilarejos de Verica. Tudo, até a cama, era de tamanho família. Imaginou cinco ou seis crianças brincando ali em cima, aos pulos.
Seria um desafio para Ellyus conseguir desarrumar aquilo tudo. Riu para ele. Os olhos se encontraram e ficaram presos. O coração de Elizabeth disparou e ela perdeu toda a vontade de rir. Queria era chorar, pois nunca seria dele. Mesmo que não fosse casado, não ia querer a mulher que julgava havia tentado destruí-lo, uma tola sem experiência de vida, uma boboca que havia acreditado em tantos boatos e fofocas...
A tensão era tão grande, que, de repente, podiam cair nos braços um do outro. Sentia que Ellyus estava querendo abraçá-la. Podia ver isso. E seria bom, nem que fosse um prazer de minutos, que não se repetisse nunca mais. Mas não foi um movimento que quebrou o feitiço. Foi a voz dele.
— Elizabeth, preciso contar uma coisa a você sobre minha... aquela que chamo de minha mulher.
Ela ficou imóvel. Esperou e esperou em vão. Nos olhos dele apareceu aquela expressão conhecida. Lá ia ele se fechar de novo em sua concha.
Resolveu reagir. Abalada pelas próprias emoções, balbuciou algumas bobagens sem sentido, como, por exemplo, já que tinha um quarto para trocar de roupa, o melhor era ir se trocar.
Conservando uma boa distância, foram ver seus aposentos no castelo encantado. Era o que esperavam: pequeno, com uma cama coberta com uma colcha de linho branco, o edredom de penas que não faltava nunca, uma mobília simples. Elizabeth disse que estava bom e Ellyus se fingiu aflito para saber se havia almoço para os dois.
Mesmo para os padrões iugoslavos o almoço foi tarde. Escolheram uma mesa com vista para o campo. O cardápio era enorme, próprio para um castelo, com brasão e tudo, os nomes dos pratos escritos em quatro línguas.
Ellyus deu uma olhada e perguntou se podia escolher para ela.
— Por favor. As escolhas são tantas, que não conseguiria mesmo me decidir. Além disso, não conheço a maioria das comidas, o que complica tudo.
Muita gente tomava um drinque vermelho. Elizabeth perguntou se podia experimentar.
— Boa idéia. É refrescante, medicinal e tem um pouco de álcool, é claro... Acredito que vai apreciar a experiência. — Caçoou ele, sabendo que ela não era lá grande coisa para beber. Pois os dois haviam se perdido tanto por causa da bebida como pela forte atração que sentiam um pelo outro.
Trouxeram. Ela tomou um gole maior do que queria, tossiu e engasgou. O gosto era amargo, e Ellyus consolou-a.
— É assim mesmo. Você se acostuma com os bitters de Istra. É só no começo.
Que diabo!, pensou ela. Como é que alguém pode gostar de tomar um negócio amargo assim...
Os dedos longos de Ellyus seguravam o copo e ele olhava, distraído, suas profundezas. Triste, calado, sério. Elizabeth sabia que estavam pensando a mesma coisa.
Tão bonito, assim vulnerável, de cabeça baixa, lendo tristezas no fundo do cálice vermelho... Tinham passado horas de intimidade, de calor, aconchego e promessas. E todas as vezes esses momentos lhes tinham sido tomados.
Roubados. Agora sabia que o relacionamento dele com a mulher não era normal. Havia algum segredo muito bem guardado entre os dois.
Mas não fazia diferença. Elizabeth tinha seus princípios e não podia ir contra eles. Não havia passado a vida inteira em uma cidade pequeno perdida no Canadá e depois ido viver em Los Angeles impunemente. Era uma antiquada. Mas doía fundo ver que ele estava pensando nela. E podia jurar que estava.
Ellyus acordou e perguntou se queria pedir outro aperitivo. Ela não aceitou e começou a beber o seu, aos golinhos. O amargo era acentuado por um gosto agradável e adstringente. Será que o amor era como os bitters de Istra?
Adstringente? Melhor tomar aos golinhos? Amargo no começo e depois gostoso?
Algumas vezes, tinha a sensação de que nunca descobriria.
Achou que era como alcachofra. A primeira mordida é sempre ruim e depois não há meio de se conseguir parar. Devia tomar o bitter como se come uma alcachofra. Devagarinho.
Olhou sua bebida e resolveu tratá-la com respeito. Estava aprendendo a respeitar muita coisa. Bitters de Istra, o fogão da ilha.
Um garçom e uma garçonete chegaram com a comida. Carnes frias sobre vegetais cozidos e enfeitados com verduras. Muito bem arranjado e bonito demais para comer. Dava vontade de fotografar, antes de arruinar a simetria e a graça. Era sempre assim com as comidas servidas em qualquer restaurante do mundo.
— Gosto de mostrar coisas novas a você, Elizabeth. E na verdade, não tinha ideia que seria assim.
— Obrigada!... — Disse ela, levantando o copo.
Recostou-se na cadeira, para apreciar a elegância com que ele a servia. Pôs um pouquinho de cada coisa da bandeja. Reparou numa vagem delicada e perfeita, sozinha no prato. Quis pegar. Ellyus empurrou a mão dela.
— Não, encoste nisso. — Era uma ordem.
Chocada, Elizabeth olhou para ele. Ninguém mandava nela desse jeito. Resolveu comer a inocente vagem. — Já disse para tirar a mão daí.
Elizabeth abaixou o garfo. Os dois se encararam, desafiando. A atmosfera mudou.
Não era mais de companheirismo alegre entre chefe e assistente. Uma tensão quase sexual envolvia os dois. As palavras escondiam segundas intenções. Os olhos dele mediam a mulher.
Elizabeth devolveu o olhar. A pobre e humilde vagem estava esquecida no prato.
Levantou o garfo para espetá-la, mas Ellyus tirou o garfo de sua mão.
— Nem tudo é o que parece, minha querida Eilis.
— Não sei do que está falando.
— Esta coisinha inocente é a pimenta mais ardida do Danúbio.
— Conheço vagem. Não sou boba.
— Se tivesse nascido na Sérvia e se criado comendo uma todo dia, talvez conseguisse engoli-la, como quer. — Mudou de tom. — Não sei por que teimam em botar essas coisas no prato. Ninguém vai comer mesmo! Acho que é para enganar os inocentes. Sempre tem alguém na mesa que não sabe como arde. Quase deixei você provar. Quase. Seria bem feito. Mas não queria estragar sua tarde. A maioria acredita que essa pimenta atiça o libido, dando aos casais uma experiência única.
— Como é que uma pimenta estragaria minha tarde? Um pouquinho de exagero, não é? E eu não acredito que uma simples pimenta possa fazer isso tudo.
— São dinamite. O bitter é refresco perto delas.
Tinham feito muita confusão por causa de uma pimenta, mas Elizabeth se sentia estranhamente alegre porque Ellyus se preocupava com seu bem-estar.
— Obrigada!... — Disse, tentando ser mais cordial e amável.
Enquanto brigavam, o céu começou a ficar nublado. Um ventinho forte começou a soprar, balançando os guarda-sóis. Elizabeth sentiu a mudança de temperatura e viu o pessoal se levantando, com os copos e xícaras nas mãos.
— Vamos embora. — Disse Ellyus. — Vai cair uma tempestade. Vamos pedir a sobremesa e o café no quarto.
Chegaram a tempo. Gotas grandes caíam no parapeito da janela. Elizabeth olhou para fora e conseguiu perceber como seria a vida do castelo. Soldados, empregados, vendedores, guardas, todos andando pelo pátio. E cavalos relinchando e...
Entraram com um carrinho de sobremesas. Ellyus cortou dois pedaços de torta de amêndoas e foi acender a lareira. Ela aceitou um cálice de tokay húngaro. Tudo no quarto a fazia sentir-se segura. Menos seus pensamentos. Não conseguia colocá-los no lugar. Podia perguntar se ele queria trabalhar, mas estava morrendo de preguiça. Gostaria de saber conversar coisinhas bobas, sem consequências para poder relaxarem um pouco.
Ficou olhando o modo como ele comia. Suas mãos finas e elegantes. Fazia tudo com economia de gestos. Simples, masculino. Estava à vontade. Dava pra ver o quanto Ellyus conhecia da cultura e da etiqueta de cada país que viajou quando era modelo. E qual era o problema dela? Bem que sabia. Queria uma coisa daquele homem e não conseguia.
Algo que ele não podia lhe dar e que devia parar de desejar.
Inconscientemente, fechou o botão da blusa, um gesto que traía seus pensamentos.
Não sei nada sobre ele, e quero pôr minha segurança e meu futuro em suas mãos!
Ele leu o que se passava na cabeça dela.
— Seria um lugar perfeito para uma cena de sedução, não é, Eilis? — A tristeza tinha voltado à sua voz. — Lindo e luxuoso quarto, comida deliciosa, a chuva lá fora impedindo um passeio... Mas não se preocupe; está segura comigo. Não seria tolo outra vez para cair em seus encantos femininos!
Ela também sentia voltar um pouco da melancolia. Não havia tocado no cálice de tokay e tentou culpar o maldito bitter por seu estado de espírito.
Mas era Ellyus que provocava nela sensações ambíguas e emoções extremadas. Rir, chorar, amar, odiar. O incidente da pimenta teria sido motivo de uma gargalhada, se não fosse com ele. Tinha ficado até abalada. E por quê? Por que na realidade desejava sentir os efeitos daquela pimenta, mesmo sabendo que eram mentiras. Desejava, não na verdade, ansiava por ter Ellyus enterrado dentro de suas entranhas novamente.
Achou uma razão para as suas reações; ele era um mistério para ela. Não sabia nada a seu respeito. Nem onde havia crescido, ou se tinha uma casa permanente... Sabia apenas o que as revistas de fofoca falavam sobre as suas aventuras. Mas nada disso era concreto ou lhe serviria para conhecer de verdade o homem que aprendeu a amar.
— Elizabeth, você está de olho grudado em mim.
— Jura? É que estava tentando imaginar você quando criança.
— Acho que era igualzinho ao que sou agora. Só que menor.
— Mas onde foi que cresceu? — Ficou mais animada. — Não sei nada sobre você. Só que...
— Só que as revistas de fofocas escreveram, sou resmungão e sério. Um pecado ambulante! Seduzo e abandono diferentes mulheres pelo mundo! Acertei?
— Mais ou menos.
A chuva não havia parado, mas o quarto ficou mais claro, porque a conversa era leve e estavam sendo francos um com o outro,
— Não pode me contar alguma coisa sobre você? Algo mais pessoal, talvez.
— É claro. Tive pai e mãe como todo mundo, e depois fiquei diferente das outras crianças. Pelo menos, minha educação foi diferente. Sabe que eu já lhe contei a minha história anteriormente. — Falava criticamente, como se estivesse descrevendo um personagem de um livro. — Meus pais biológicos eram diferentes. Tive todos os livros e todos os estímulos necessários para me tornar também um modelo. Mas nenhum deles pode desfrutar ou ver o meu sucesso, ou decadência. Foi rejeitado e adotado por dois homens maravilhosos. Que não tem nada haver com as minhas atuais escolhas!
— E onde aconteceu tudo isso? Sei, pelo seu trabalho, que nasceu na Iugoslávia.
— Não. É meu país adotivo. Cresci na Califórnia. Berkeley e Beverly Hills, para falar a verdade.
— Morou nos subúrbios então? — Achou graça em imaginá-lo de joelhos machucados, luvas de baseball e atrasado para a escola.
— Não, não. Nos morros de Berkeley por um tempo, onde os professores da Universidade criam os filhos. Ficam mais perto da natureza e dos professores particulares. Um para matemática, outro para astronomia. Um professor para cada coisa em que o menino do vizinho está interessado. Mas logo meus pais prosperaram e nos mudamos para Beverly Hills, onde descobri o melhor e o pior de mim!
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