Destino Desconhecido
"Sem essa de 'amar demais machuca'. O que dói é amar sozinho."
Depois que a balsa atracou e deixaram Verica para guiar no continente, o dia esquentou de repente. Elizabeth tinha escolhido uma blusa de algodão leve para usar com uma calça comprida. Foi a primeira coisa que pegou, depois da ordem de Ellyus. Pena que não fosse alguma mais colorida, mas, pelo menos, estava fresquinha e não ia ficar toda amassada na longa viagem. Se estivesse tão à vontade em espírito, também!
Ellyus não dava uma palavra e corria bastante.
Ao chegarem numa estrada maior, perguntou, bruscamente.
— Faz alguma idéia de onde fica Slavica? Pegue o mapa no porta-luvas, para poder acompanhar a viagem. A cada vez que me olha, sinto me questionado e pressionado.
Elizabeth fez o que ele sugeriu, abrindo o mapa nos joelhos.
— Slavica fica fora da fronteira de Danica e Verica! Uma localidade considerada mais afastada... — Comentou Ellyus. — Daí, você imagina quanto tempo de viagem ainda temos. O local é mais preservado e de difícil acesso.
A voz dele chegava a ela como a de um guia de turismo entediado. Mas, de algum modo, ela sabia que aquele tédio escondia uma emoção mais séria, mais negativa. Nenhum dos dois percebia a paisagem maravilhosa. Ellyus, concentrado nos seus problemas, e Elizabeth, concentrada nele.
Saindo de Gordana Central, começaram a subir. Ele avisou que logo estariam numa região de lagos. Um comprido e sinuoso lago aparecia toda hora no meio da floresta e, às vezes, podia-se ver as plácidas matas refletidas em suas águas.
Elizabeth olhou-o, de soslaio. Usava calça preta e camisa de malha, da mesma cor também. Apesar de toda a simplicidade, nada do que vestia seria encontrado em uma simples loja. Tudo caía muito bem, e via-se que eram roupas finas, feitas por um bom alfaiate particular e muito caras. Os artigos de couro que usava, como cintos, sapatos, relógio, eram sóbrios. Muito bom gosto. Devia ser gostoso acariciar aquilo tudo. Teriam o calor de seu corpo. Ora... esses pensamentos não levavam a nada!
O sobretudo escuro estava dobrado no banco de trás do carro, assim como uma mala pequena.
Com aquela roupa ou de jeans, era o mesmo homem simples. Mas, vestido assim, ela se lembrava de que ele era alguém neste mundo. E, taciturno daquele jeito, deixava-a mais tímida e insignificante do que nunca.
Lydia, sua irmã, costumava contar o caso de um rapaz que namorava, cujo maior prazer era dirigir. Dirigia com um ritmo natural, e andar de carro com ele era diferente de andar com qualquer outra pessoa. Elizabeth agora entendia o que ela queria dizer.
Ellyus era competente: mesmo quando ultrapassavam outro carro, mesmo correndo muito acima da velocidade permitida, havia a segurança de que não iria bater.
Quem sabe poderia perguntar a ele qual o problema? Achava que estava infeliz, mas talvez toda aquela seriedade fosse porque ia a Slavica conversar sobre o filme, resolver algum ponto que o preocupava. Ficou acumulando coragem para perguntar, assim, à queima-roupa, se aquela viagem tinha algo a ver com sua mulher.
Lembrou-se de como havia sido infeliz por pensar que Arnold tinha os mesmos interesses que ela, os mesmos objetivos. Só porque cresceram juntos, acreditara no que queria acreditar. Se tivesse perguntado a ele, ficaria sabendo que eram duas pessoas completamente diferentes. Com sonhos e desejos totalmente diferentes um do outro, e talvez ambos não tivessem perdido tanto tempo.
Mas não dava para perguntar a Ellyus. E ele não falava por vontade própria...
— Não muito longe daqui há um hospital, onde um amigo meu é o diretor agora. Anteriormente o mesmo também foi um modelo, mas na verdade o seu grande sonho era ser Médico vascular. — Disse, inesperadamente. Era a primeira coisa que dizia, em quilômetros e quilômetros. — Preciso ter uma conversa com ele. Não me demoro... — Acrescentou, como adivinhando que Elizabeth não adoraria a idéia de ficar sentada no hospital depois de tanto tempo no carro.
Preocupava-se com os outros. Era educado. Se fosse um pouco mais extrovertido...
Passavam por uma região de campos plantados, muito diferente do que ela tinha visto até agora. Nas estradas de terra, de vez em quando passava uma galinha, e os latidos dos cachorros eram tão alegres, que logo se via a novidade que era um carro para poderem correr atrás.
Acostumada com o EUA e com o Canadá, Elizabeth estranhou o tamanho das fazendas. Tão pequenas!
— Não são fazendas, são?
— Sítios e chácaras desse tamanho alimentavam gerações, mas, agora, a maioria dos jovens trabalha na cidade e vem aqui só para dormir. Mas, há também diversas mansões construídas pelos ricos, sabe eles buscam um pouco de paz e isolamento. Aqui ninguém viria incomodá-los.
— Mas não há nenhuma cidade por perto...
— É o que você pensa!... — Disse Ellyus, rindo, primeiro sinal de vida naquela manhã. — É por isso que a Iugoslávia é interessante. Não é porque você não vê, que não está lá. As coisas aqui se escondem, até que apareçam numa esquina e trombem com você. Sempre amei essa peculiaridade nesse país.
De repente, como ele havia dito, a paisagem mudou; apareceu uma cidadezinha de bom tamanho. Que o carro levou quase trinta minutos para cruzar.
— De que é que vivem?
— Lá para trás, há uma usina que emprega muita gente. Camponeses de pequenas fazendas trabalham aqui, também. Um dia, gostaria de mostrar a casa de um deles. Quando fiquei aqui fiz questão de conhecer a vida desde dos mais ricos até do mais pobre, para ter uma noção da realidade a minha volta. E posso lhe afirmar com toda a certeza, nas casas mais simples e pobres, ali reside a paz e a felicidade. — Para Elizabeth, as casas mais pareciam barracas. Às vezes, têm tudo o que há de moderno, lá dentro. Questão de gosto. Outros preferem fogão a lenha, lampião... enfim, cada um escolhe a maneira que deseja viver!
— Pelo jeito, quase todos gostam de viver à moda antiga.
— Não julgue um livro pela capa... Todos desejam apenas paz e conforto para viver.
Ela olhou, achando que queria dizer alguma coisa mais. Mas não. Estava só conversando, mesmo.
Ao continuarem a viagem, Elizabeth ficou contente por terem cortado a tensão.
Agora, podiam ficar quietos sem problema, pois já havia um elo de comunicação.
Ellyus tratava-a como um anfitrião educado trata uma hóspede inteligente; já era alguma coisa.
Se começasse a ditar, talvez esquecesse seus problemas. Mas, pelo jeito...
A estrada continuou reta, até uma ponte por onde Elizabeth jurou que não passaria um carrinho de mão. Ellyus saiu para espiar.
— Está em boas condições. Dá para passar.
Vinda sabe-se lá de onde, apareceu uma carroça, querendo atravessar em direção contrária, cheia de feno e puxada por dois cavalos grandes. Os dois meninos que estavam na frente fizeram sinal para o carro passar, mas Ellyus esperou um minuto. A carroça não perdeu tempo e avançou. Antes que se dessem conta, estavam os dois veículos, frente à frente, no meio da ponte vacilante.
Elizabeth surpreendeu-se, ao ver Ellyus dando risada e gritando com o homem que dirigia, em sua língua. O outro berrou de volta.
— Não podemos dar uma marcha à ré? — Perguntou ela.
— Não. O homem diz que é uma questão de honra. Precisamos ficar no meio da ponte e resolver a questão aqui. Como deve imaginar cada povo, cada nação tem as suas tradições e por mais estranha que possa ser, devemos pelo menos respeitá-las.
— Você não vai fazer isso, imagino. — Estava com ele para o que desse e viesse, mas a perspectiva de morrer naquela água, coberta de feno, não a atraía muito.
No meio do impasse, dois motociclistas passaram raspando na carroça, fazendo os cavalos relincharem, em protesto. Para controlar os animais, o homem saiu da ponte, que ficou livre.
— Graças a Deus! Espero que isso não aconteça sempre! Pois vou infartar se isso acontecer constantemente!
Ellyus ria. E, agora que via como o incidente tinha sido bobo e sem maiores consequências, Elizabeth começou a dar risada também.
— Deixa só chegar a hora de estocar o feno. Aí, então, a coisa fica preta.
Continuaram a viagem e, como estavam em pleno campo, ela achou que ainda demoraria a aparecer uma cidade que comportasse um hospital. Mas o país de eternas contradições provou que estava errada.
Ellyus entrou numa estradinha menor ainda, que não tinha saída. Surgindo do nada, apareceu uma graciosa construção branca. Podia ser uma casa ou uma escola. Não tinha aspecto de hospital.
Ele desceu e pediu que ela esperasse no saguão pequeno, arrumado com móveis rústicos. A recepcionista, que não falava uma palavra de inglês, ofereceu a ela chá de camomila e pão de gengibre. Elizabeth ficou comendo, distraída, olhando pela janela. Fez sinal de que não queria mais e folheou umas revistas. Revistas de hospital eram sempre a mesma coisa, no mundo inteiro! Quem será que lia aquilo tudo?
Impacientou-se. Detestava ficar parada, esperando. Resolveu dar umas voltas e explicou à mulher, através de mímica, que só demoraria uns quinze minutos. Pela janela, tinha visto um pequeno bosque e foi até ele. Não resistiu à tentação de colher umas flores do campo. Margaridas de hastes duras, muito brancas, de miolo amarelinho. Outra flor parecida com narciso, mas da qual não sabia o nome. Foi pegando uma aqui e outra ali; quando viu, tinha uma braçada.
Voltou correndo, com medo de estar atrasada, e a recepcionista achou ótima a idéia do ramalhete. Aprovou, com risinhos, falas e abanos de cabeça, e embrulhou em papel de seda.
Elizabeth ficou contente ao ver que alguém também dava valor àquelas florzinhas do campo e pensou se ela aceitaria uma gorjeta. Não sabia como as pessoas reagiam em relação ao dinheiro, num país socialista...
Tentou pagar, mas a mulher ficou tão magoada, que Elizabeth lhe deu as flores.
Isso a fez sorrir, mas, por gestos, mostrou que o buquê era dela para sempre.
Ficaram muito satisfeitas por estarem se entendendo perfeitamente, sem uma única palavra. Com certeza, teriam entrado num papo divertido, não fosse Ellyus aparecer.
A cara dele mostrava que o encontro havia sido um fracasso. O médico se recusara a responder ou fazer o que ele queria. Foram indo para o carro. Ela bem que precisava lavar as mãos, sujas do azul de umas flores, mas por nada no mundo se atreveria a atrasá-lo. Sentados, ele olhou para ela. Afogueada, os cabelos soltos no rosto, a blusa desabotoada, deixando ver o começo dos seios, um monte de flores nos braços, era o próprio retrato de uma camponesa, em cores que iam do vermelho ao branco e azul.
Ellyus a olhou tanto, que ela ficou sem jeito. Teve vontade de limpar a mão suja de barro na calça, mas aguentou firme. Ele pegou a mão e ficou segurando.
— Elizabeth, você é tão refrescante como a água de uma fonte. Obrigada por estar do meu lado e... Ele de repente parou de falar e fixo o seu olhar em seus olhos.
Ela estava tão confusa, que não entendeu.
— Passei por uma nascente de água fresquinha, mas não tive coragem de beber.
Ele riu, baixinho.
— Não é isso. Eu disse que você é tão refrescante como a água de uma fonte pura e...
Como é que podia ser idiota a ponto de achar que aquele homem era frio e distante? Dizendo aquelas coisas tão bonitas para ela! Se não fossem as flores no colo, teria se abraçado ao pescoço dele e estalado um beijo na bochecha.
Elizabeth deixou transparecer suas emoções, Ellyus fingiu não perceber. Só bateu a mão no volante e decidiu rapidamente.
— Já fiz você passar por maus pedaços, hoje de manhã. Slavica vai ser divertido. Prometo.
Slavica não só foi ótimo, como totalmente diferente do que ela esperava.
Pensou que fosse uma cidade. Essa mania de pensar! Se pelo menos parasse de pensar um pouco, as coisas dariam mais certo! Slavica não era cidade coisa nenhuma, e, sim, um castelo. Restaurado, era usado como estalagem. Perfeito para locação de filmagens. Quem sabe, estaria errada o tempo todo, e Ellyus tinha vindo mesmo para resolver seus assuntos de cinema? Logo descobriria.
Ele parou o carro e entraram num pátio, onde muitos visitantes estavam sentados em mesinhas. Elizabeth estava louca para entrar pela porta principal do castelo, encimada por um brasão antigo. Ellyus puxou-a para o lado e subiram uma pequena elevação. Dali, podiam ver a construção inteira e o rio mais verde do mundo. Ela não perdeu tempo e correu até ele.
— Meu Deus! Nunca vi nada tão verde na minha vida!
— O povo diz que o rio Krka é dessa cor porque é muito raso. Outros diz que é por causa dos micro organismo presente em suas águas. Eu já acredito na segunda opção.
Qualquer que fosse a razão, Elizabeth se apaixonou pela corrente de água aveludada. Dali, via-se o castelo muito bem. Perguntou a Ellyus.
— Isso acontece sempre? — E fez um gesto com as mãos que englobava a região toda. Seu entusiasmo e interesse animavam os movimentos de seu corpo.
— Já sei o que quer dizer. O castelo está mesmo numa situação privilegiada. Não acontece sempre, não. É bonito, não é?
Elizabeth concordou. As fortificações, o campo, tudo era uma beleza! Romântico, próprio para namorados saírem passeando de mãos dadas.
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